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Cena da animação “Está chovendo hambúrguer”.
Cena da animação “Está chovendo hambúrguer”.| Foto: Divulgação/Netflix

Nos meus últimos textos, levantei algumas reflexões a partir de filmes que, à primeira vista, parecem desprovidos de grandes temáticas filosóficas. Fiquei muito feliz com o feedback positivos dos leitores. Nada mais importante para um colunista que a aprovação de seus leitores. A desaprovação pública, mais conhecida como polêmica, pode até gerar engajamento, mas não satisfaz a mais importante função da escrita: o prazer da boa reflexão.

Está chovendo hambúrguer, animação de 2009, dirigida por Phil Lord e Christopher Miller, é uma dessas animações que até podem parecer um mero filminho para a criança, mas que, no fundo, trazem uma série de insights críticos sobre a condição social intoxicada pelo hiperconsumo. Estou longe de ser um crítico ferrenho do capitalismo. Aliás, longe disso, também procuro me beneficiar de todos os caprichos, de todos os confortos e todas as facilidades que só a sociedade de consumo pode oferecer. Está chovendo hambúrguer é uma crítica aos nossos excessos.

O filme se passa na fictícia cidade de Boca Grande, uma pequena comunidade pesqueira isolada em uma ilha no Oceano Atlântico. Lá, a vida é monótona como deve ser a vida de toda ilha no meio do Oceano Atlântico. Os habitantes vivem, literalmente, de sardinhas enlatadas como sua principal fonte de alimento. A propósito, a sardinha é o totem dessa monotonia comunitária. Ou seja, há senso de pertencimento e propósito de vida em virtude da pesca de sardinha. Nunca fui chegado a sardinha: dos peixes, prefiro anchova; das carnes verdadeiras e suculentas, o bife ancho.

Muitos cientistas, mais do que explicar e compreender o mundo, resolveram transformá-lo

A história do filme gira em torno de Flint Lockwood, um jovem todo atrapalhado, inventor sonhador e que está determinado a criar uma invenção capaz de mudar sua vida e a vida da cidade. Se é para melhor, recomendo ao leitor que assista ao filme. De fato, trata-se de um pequeno cientista engajado a mudar o mundo. Muitos cientistas, mais do que explicar e compreender o mundo, resolveram transformá-lo. A contemplação é coisa de gente ociosa. Flint é tudo, menos ocioso.

A trama se desenrola quando o jovem inventor cria uma máquina chamada “FLDSMDFR” (que significa “Máquina de Comida” na linguagem fictícia do filme), e que tem a capacidade de transformar água em comida. A cidade fica numa ilha. Não há dificuldade de imaginar o resultado. Assim, as coisas saem completamente do controle quando a máquina começa a produzir alimentos em excesso e em proporções gigantescas. A cena de Flint olhando para sua máquina funcionando pela primeira vez é a expressão mais pura do fascínio das máquinas.

Uma chuva de hambúrgueres, pizza, almôndegas e outras comidas deliciosas despenca do céu. A cidade, inicialmente encantada com essa reviravolta social e econômica, sofrerá os dramas do excesso. As relações pessoais serão transformadas. O senso de comunidade, destruído. Não à toa Flint, sem querer, destrói o monumento gigante da praça da cidade. Trata-se de um aquário gigante com uma única sardinha. Símbolo da união daquela pacata cidade.

O excesso traz felicidade, sem dúvida. Porém, as relações pessoais começam a ser corroídas. Além disso, há os interesses políticos. O que eu mais gosto é da relação de Flint com o pai, Tim Lockwood. Tim é o único a compreender os perigos existenciais e sociais da invenção do filho. Particularmente, acho o ponto forte da trama. Porque é o pai que ainda simboliza a consciência moral de um jovem que vê sua invenção fugir do controle.

Por outro lado, há o prefeito Shelbourne, um líder carismático, mas ganancioso. Para ser bem preciso, um populista que quer se aproveitar da invenção de Flint para a manutenção de sua vida política. A fome da cidade se transforma em distração; a fome de Shelbourne é a de todo demagogo. A fascinante vida de não precisar mais trabalhar para comer, já que basta apertar um botão e uma deliciosa sobremesa despenca no prato, transforma-se rapidamente em tragédia e lixo. A principal tragédia social é a do enfraquecimento das relações pessoais. O senso de comunidade é destruído. Do outro lado, o poder político, muito carismático, mas com uma única fome: o poder. O que parece o paraíso na terra indica o nosso inverno.

Tim é o único a compreender os perigos existenciais e sociais da invenção do filho. É o pai que ainda simboliza a consciência moral de um jovem que vê sua invenção fugir do controle

Tudo isso me lembra a descrição que o sociólogo Gilles Lipovetsky faz da sociedade do hiperconsumo:

“A civilização do bem-estar consumista constituiu o grande coveiro histórico da ideologia gloriosa do dever. Ao longo da segunda metade do século, a lógica do consumo de massas dissolveu o universo das homilias moralizadoras, erradicou os imperativos rigoristas e engendrou uma cultura onde a felicidade se impõe como mandamento moral, os prazeres ao proibido, a sedução à obrigação. [...] O culto da felicidade em massa veio generalizar a legitimidade dos prazeres e contribuir para a promoção da febre da autonomia individual.”

Até que ponto a experiência febril de nossa autonomia individual também não é a de nossa queda no vazio? Está chovendo hambúrguer é uma ótima reflexão sobre esse problema.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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