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Fundamentos morais da ciência
| Foto: Belova59/Pixabay

Em A Visão a partir de lugar nenhum, o filósofo Thomas Nagel coloca algumas boas perguntinhas para a presunçosa confiança de alguns cientistas no método científico. Sabemos que muitos deles acreditam que a ciência tem o poder de explicar toda a realidade. O que, convenhamos, seria um verdadeiro contrassenso. Afinal, quais das coisas descritas e explicadas pelas teorias científicas sou eu? A resposta não é um jogo de palavras: não sou eu o objeto da descrição científica que eu mesmo apresento acerca do e ao mundo.

O eu a partir do qual descrevo cientificamente o mundo não se confunde com os objeto da própria explicação. Para gastar todo o meu filosofês, isso significa dizer o seguinte: a subjetividade impõe um limite que não pode ser explicado pelo da ciência. Uma espécie de horizonte de eventos que, assim como num buraco negro, estabelece uma fronteira inacessível para a experiência científica.

A ciência não pode descrever a experiência das relações entre sujeitos, não faz parte da sua vocação, do seu método, dos seus resultados

O “meu eu” – agora com aspas – não se coloca como um objeto externo passível de ser investigado por cientistas e suas poderosas máquinas de observações e suas complexas planilhas de dados. O “meu eu” constitui uma perspectiva em primeira pessoa, a perspectiva interna referente a um sujeito presente em todo ato descritivo do conhecimento de coisas externas que jamais pode ser compreendido por tal metodologia.

A ciência busca estabelecer um conhecimento seguro do mundo que se sustente de forma rigorosa e objetiva. Em outros termos: o conhecimento independentemente dos vícios da subjetividade. Reconheço que o conhecimento objetivo seja, de fato e de direito, possível desde que compreendamos que não é possível conhecer a totalidade. Não alego que todo conhecimento científico seja relativo aos interesses de alguém, ou que a pretensão objetiva de verdade da ciência seja algo impossível. Também abomino relativistas, negacionistas e cartomantes. O que estou defendendo é que a minha subjetividade coloca um limite ao conhecimento científico, de estatuto de realidade.

A presença de um ser autoconsciente não é tolice subjetivista. A autoconsciência está pressuposta em todo ato de conhecimento, embora não possa, por tais métodos, ser conhecida. Nenhum conhecimento que eu venha a ter acerca da minha própria subjetividade se manifestará como fenômeno para o conhecimento do tipo construído pela metodologia científica.

Autoconsciência consiste em experiência direta da minha presença para mim mesmo. E o mais importante é que não se trata só de um postulado teórico, pois, para mim mesmo, o “meu eu” vivência experiências de ordem ética. Nesse caso, também vale para conhecimento – e o relacionamento – que eu tenho de outras pessoas. Eu sei que os outros existem não por um ato de descrição objetivo dado pelas ciências naturais. A experiência ética se fundamenta em relações interpessoais.

Muitos cientistas esquecem que dar opinião sobre ciência em coluna de opinião de jornal não é fazer ciência

Como eu não posso ultrapassar meu horizonte de experiência subjetiva e ter uma experiência subjetiva direta compartilhada com outra pessoa, as minhas experiências da subjetividade de alguém precisam ser postuladas – tanto do ponto de vista teórico como, e sobretudo, do ponto de vista ético. Agir com outras pessoas que também são inobserváveis para o método científico significa formar uma comunidade de pessoas que não podem jamais se tornar “ratinhos de laboratórios” para terceiros.

Roger Scruton, em O Rosto de Deus, escreve o seguinte: “o sujeito é um princípio inobservável pela ciência, não porque ele exista em outro domínio, mas porque ele não é parte do mundo empírico. Ele está à margem das coisas, como um horizonte, e nunca poderia ser aprendido ‘do outro lado’, o lado da subjetividade”. Não há acesso científico à subjetividade de outra pessoa; o acesso ao outro só pode ser dado pelo relacionamento ético.

A ciência não pode descrever a experiência das relações entre sujeitos, não faz parte da sua vocação, do seu método, dos seus resultados. Categorias como “eu” e “você” – e todas as outras categorias derivadas daí como “senso de dever”, “autointeresse”, “intenção” e “liberdade” – não estão disponíveis ao cardápio de temas tratados pelas ciências. Isso significa dizer que a ideia de “revisão de pares”, a rigor, se fundamenta, antes, numa experiencia ética, isto é, de como a própria comunidade de cientistas se autocompreende como comunidade de pessoas.

De fato, a ciência visa objetividade, rigor, clareza, coerência, precisão, verdade. Mas as relações entre os cientistas e os não cientistas são construídas a partir de experiências subjetivas compartilhadas. Em outras palavras: sob a perspectiva das relações interpessoais, a comunidade científica também é uma comunidade moral em que cada membro precisa assumir suas responsabilidades perante todas as outras pessoas e muitas vezes deve responder não como cientista, mas simplesmente como pessoa.

Enfim, infelizmente, muitos cientistas esquecem que dar opinião sobre ciência em coluna de opinião de jornal não é fazer ciência; e que o debate público tem, vamos dizer, regras distintas das regras formuladas pela comunidade da pesquisa científica.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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