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Na clássica definição de Max Weber, o “Estado é uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território (…) O Estado é uma relação de homens dominando homens, relação mantida por meio da violência legítima”. Em resumo: o Estado moderno detém monopólio do direito e da coerção. Coerção política precisa desse traço de “legalidade” ou, simplesmente, da violência justificada pelo direito para legitimar o poder do Estado. Quase um círculo vicioso. Mas e se a fórmula dessa legitimidade fosse a de um Estado — e, em consequência, de uma relação de homens dominando homens — que assume para si não apenas o monopólio da violência, mas também o monopólio da dignidade e de verdade absoluta?

Não é à toa que o Estado moderno se apresenta como fim de toda ideologia política com inspirações totalitárias. O problema, nesse caso, não estaria no Estado propriamente dito. Afinal, quais ideólogos não gostariam de deter em suas mãos, com êxito, o direito de usar a força física para remover todos os seus inimigos depois de desconsiderá-los como dignos de viver? O monopólio da dignidade conjugado com o da violência seduz a arte de fazer política enquanto luta perpétua do “amigo-inimigo”. Portanto, com o perdão de qualquer alarmismo, é a natureza da própria ideologia o problema. Da velha arte do possível para a arte de declarar guerra total contra “os nossos inimigos” foi um passinho conquistado sem qualquer pudor. Seria o preço pelo ressentimento de uma esquerda que ficou décadas no poder? Não está mais aqui quem perguntou… O fato é que o militante virtual já não mais teme dizer, em alto e bom som, o próprio nome e muito menos teme estar seduzido com os efeitos alucinógenos da própria voz.

Era de conhecimento notório que velhos sonhadores marxistas desenvolveram uma complexa perspectiva de que política é conflito, de que a sociedade é caracterizada por pesada luta entre grupos, de que a economia de mercado gera mais desigualdade e mantém a mente alienada presa na ordem de exploração social, de que os indivíduos são subprodutos dessa ordem e de que a história inevitavelmente caminha para um final feliz desde que recebe um empurrão dos agentes libertadores do partido. No comunismo, a equação “paz e liberdade” será, enfim, possível. A ciência revolucionária da história é uma grande petição de princípio: partem do conflito de classes e esperam viver num reino sem classes e sem conflitos. Conhecemos os resultados dessa história que continua se repetindo como como tragédia e como farsa.

Mas há outros tipos de sonhadores. E eles também olham para a política como duelo entre “amigo e inimigo”. De um idealismo ligeiramente envergonhado, fazem do medo o impulso legitimador para estragar qualquer almoço de domingo entre a família. Cadê o pragmatismo político? O espectro que rondava a Europa agora ronda a América. E há o espectro que ronda a aldeia global — o espectro do globalismo. Meu Deus! A guerra deve ser justa. Precisa ser justa. É justa. Foi justa. A mitomania deve ser alguma força oculta e onipresente para criar os resultados de profecias autorrealizáveis. É a nova cruzada, portanto. Não a cruzada espiritual contra fantasmas interiores que se resolve com oração, jejum e mais orações, mas a cruzada pelo poder — que nunca se resolve, embora tenha ladainha e rito próprio, para autoafirmação, e os discursos demolidores, para humilhar os adversários. Quem não entendeu o que está em jogo deve ser tratado como inimigo. A palavra “inimigo” escrita, claro, em caps lock e ponto de exclamação. A palavra “entendeu” com letras miúdas. Nada como o máximo de ênfase e ambiguidade.

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Meu conceito de ideologia é muito próximo do que o filósofo Francis Bacon atribuiu ao termo “ídolo”. Ídolo é uma imagem que bloqueia a luz do intelecto. Imagem que seduz e aprisiona. Deforma a visão de nós mesmos. Bacon classificou de maneira primorosa e adiantou qualquer debate sobre fake news.

Há quatro tipos de ídolos: caverna, fórum, teatro e tribo. Grosso modo, o ídolo de caverna é o erro de percepção, um problema gerado pela nossa condição individual. O ídolo do fórum é mais complicado, pois tem a ver com os erros da linguagem e de como as palavras — os “lugares-comuns” — circulam e são gastas no espaço do debate público. Diz Bacon: “as palavras forçam o intelecto e o perturbam por completo. E os homens são, assim, arrastados a inúmeras e inúteis controvérsias e fantasias”. Os ídolos de tribo fazem parte da “vida em bolha” — para usar a palavra da moda. Vivemos em grupo como tristes figuras paroquiais e projetamos na realidade, de maneira distorcida e corrompida pelos excessos de amor próprio, o que vemos de dentro dessa pequena “casa de espelhos”. É uma imagem atraente. Por fim, o ídolo de teatro. Um dos mais perniciosos. Pois “imigraram para o espírito dos homens por meio das diversas doutrinas filosóficas e pelas regras viciosas da demonstração”. É o fascínio pela autoridade exercido por “filosofias adotadas ou inventadas” como “são outras tantas fábulas, produzidas e representadas, que figuram mundos fictícios e teatrais”. Numa palavra: o charlatão tratado como mestre infalível.

A partir disso, é possível refletir sobre os problemas do imaginário político. Trata-se da confusão entre estes dois campos distintos: o mundo real, vivido, e o mundo imaginado, desejado. O mundo em que vivo e o mundo em que gostaria de viver são coisas distintas na realidade, mas vinculadas pela minha imaginação e pela imaginação da minha paróquia. Pois o sistema de “ídolos” funciona como a mediação simbólica entre o que temos e o que desejamos, entre experiências, memórias e expectativas.

As ações políticas bloqueadas pelo fascínio do “ídolo” tornam-se a imagem em movimento do ideal distante e querido de um mundo bom, o mundo que eu desejo. É o perigoso jogo da política como esperança. Nesse ato político, o ideal, que seria o horizonte dos nossos desejos, realiza-se no espaço de experiência concreta. Não precisamos do Estado para ver aqui e agora, em pequena escala, o exercício do monopólio simbólico da dignidade e da violência. Na verdade, é só dar uma espiada nas atitudes políticas dos indivíduos que vivem para a realização desse objetivo. Ninguém precisa esperar o resultado das eleições para saber que vivemos no caos da guerra política. O interior de cada militante revela, mediante seus atos de fala, a forma ideológica de um Estado em miniatura.

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