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O bicho-papão da política está solto. É medo imaginado, de carne e osso. Às vezes de vento, para onde sobra a fantasia. Depois do resultado das urnas no último domingo, veio a ressaca. Nem só de pão vive o homem, mas de todo tresloucado desejo de poder. Como dirá Santo Agostinho, “dois amores erigiram duas cidades, Babilônia e Jerusalém: aquela é o amor de si até ao desprezo de Deus; esta, o amor de Deus até ao desprezo de si”. Dizem que política é um mal necessário. Uma disputa pelo poder e mais nada. Não duvido. Minimizo com a ideia de que é a arte de administrar ódios. Alguém precisa fazer bem feito o trabalho mundano. O problema é que, historicamente, depois de Maquiavel, sobrou só o amor de si e o desprezo de Deus. Depois de Hobbes, deus virou Estado. Hoje, o desafio da política, um mal necessário, é não ceder à tentação do bem absoluto para combater o mal absoluto.

Um dos maiores problemas da política não é a mentira, mas o desejo de poder. Tal desejo vem conjugado com o mau uso da linguagem que faz mentira parecer verdade.

Entre nós, uma palavra ganhou força: nazismo. A fim de despejar nos adversários o medo mais do que imaginado, ele só pode ser “nazista”. Ninguém quer estar associado ao mal absoluto. Como minhas ideias são boas, o mal absoluto só poderá estar no meu inimigo. Portanto, meu inimigo é nazista e a gente não vota no Hitler. Quem vota é fascista sanguinário. O que é fascista? Respondeu George Orwell: “Por ‘fascismo’ eles estão se referindo, de maneira grosseira, a algo cruel, inescrupuloso, arrogante, obscurantista, antiliberal e anticlasse trabalhadora”. Ou seja: qualquer um que eu considere um troglodita contrário a minhas ideias é fascista, um simpatizante de Hitler.

Nada como arrancar das palavras o seu significado. Victor Klemperer observou de perto a chegada do nazismo ao poder. Viu como o partido de Hitler era perito no empobrecimento da linguagem. Deveria servir de alerta, sobretudo para quem acusa a todos, indiscriminadamente, de nazista e fascista.

Ele escreve assim em seu livro A Linguagem do Terceiro Reich: “se puder se expressar com liberdade, qualquer língua consegue dar conta de todos os anseios humanos. Elas se prestam à razão e ao sentimento, são comunicação, diálogo e monólogo, oração e súplica, ordem e invocação”, mas a linguagem adotada pelo Terceiro Reich era diferente. Era pura invocação que “pretende privar cada pessoa de sua individualidade, anestesiando as personalidades, fazendo do indivíduo peça de um rebanho conduzido em determinada direção, sem vontade e sem ideias próprias, tornando-o um átomo de uma enorme pedra rolante”. Por isso, o fanatismo em massa das redes sociais precisa tomar cuidado para não entrar no coro da invocação tóxica.

Fiquei intrigado. O El País publicou um texto muito sugestivo de Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais na Fundação Getúlio Vargas (FGV), chamado “Por que votamos em Hitler”. Stuenkel, indiretamente, relaciona a ascensão de Hitler à de Jair Bolsonaro.

Abro parêntese. Não morro de amores pelo capitão brasileiro. Já escrevi alguns textos preocupados com o fenômeno que pode ser mais do que uma mera reação ao PT. Mas entre ver perigo na política como esperança e sair por aí acusando qualquer um de nazista é um passo exorbitante. Já escrevi algumas vezes: demonologia não é política. Política, antes de tudo, busca garantir o funcionamento das instituições a fim de administrar conflitos e divergências sociais em prol do bem comum. Se de início há temor catastrófico diante da possível ascensão do mal absoluto via processo democrático, é porque já não mais acreditamos nessas mesmas instituições. Fecho parênteses.

Stuenkel começa assim: “Ao longo da década de 1920, Adolf Hitler era pouco mais do que um ex-militar bizarro de baixo escalão, que poucas pessoas levavam a sério. Ele era conhecido principalmente por seus discursos contra minorias, políticos de esquerda, pacifistas, feministas, gays, elites progressistas, imigrantes, a mídia e a Liga das Nações, precursora das Nações Unidas. Em 1932, porém, 37% dos eleitores alemães votaram no partido de Hitler, a nova força política dominante no país. Em janeiro de 1933, ele tornou-se chefe de governo. Por que tantos alemães instruídos votaram em um patético bufão que levou o país ao abismo?”

Para responder a essa pergunta, ele apresenta sete razões. Primeira, “os alemães tinham perdido a fé no sistema político da época”; segundo, “Hitler usava um linguajar simples, espalhava fake news”; terceiro, “muitos alemães sentiram que seu país sofria com uma crise moral, e Hitler prometeu uma restauração”; quarto, “apesar de Hitler fazer declarações ultrajantes — como a de que judeus e gays deveriam ser mortos —, muitos pensavam que ele só queria chocar as pessoas”; quinto, “Hitler ofereceu soluções simplistas que, à primeira vista, faziam sentido para todos”; sexto, “as elites logo aderiram a Hitler porque ele prometeu — e implementou — um atraente regime clientelista, cleptocrata, que beneficiava grupos de interesses especiais”; e, sétimo, “mesmo antes da eleição de 1932, falar contra Hitler tornou-se cada vez mais perigoso”.

Conclusão, 12 anos depois o Holocausto e as 50 milhões de pessoas mortas na Segunda Guerra Mundial. Vai o alerta: cuidado na hora de votar no Bolsonaro, esse homem de “soluções simplistas” que pretende combater “uma crise moral” e “restaurar uma grande nação”.

Parece mágico. Sete pontos muito semelhantes segundo o imaginário dos críticos. Mas o fato é o seguinte: embora seja possível suspeitar de uma disposição totalitária entre os dois dos nossos postulantes à Presidência, as conclusões de Stuenkel não seguem de suas premissas e, pior que isso, intoxicam o debate público com o coro de uma “enorme pedra rolante”. Tirando uma série de outros elementos que ele esqueceu de mencionar sobre Hitler — por exemplo, ser, além de um obcecado pelas ideias políticas, nacionalistas e estéticas de Richard Wagner, um artista frustrado que foi preso depois de tentar imitar a Marcha sobre Roma de Mussolini em um fracassado golpe de Estado conhecido como Putsch da Cervejaria —, destacaria outros três pontos:

Primeiro. Desconsiderar coisas importantes como a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial, que foi ultrajante para os alemães. O ressentimento causado pela humilhação na guerra foi avassalador. Nada se compara com isso em nossos dias. Talvez, como disse um amigo, a derrota de 7 a 1 da seleção brasileira para a seleção alemã.

Segundo. O antissemitismo não foi consequência desses sete pontos que ele elencou. Nada se compara com a força do discurso antissemita construído bem antes da guerra e da Solução Final. Os alemães começaram a imaginar um mundo literalmente sem judeus antes da guerra. Nada se compara a isso aqui no Brasil. Nada. O extermínio dos judeus foi previsto como um sentimento profundo de destruição construído em progresso ano após ano.

Terceiro. Stuenkel trabalhou de maneira grosseira com conceitos de “minorias” para tentar buscar semelhanças com o discurso de Bolsonaro contrário às políticas identitárias. Ele errou feio. Bolsonaro tem uma dificuldade enorme de criticar as políticas identitárias, mas não há nada comparado a um Mein Kampf dele destilando ódio contra “o perigo das minorias”. No contexto do nazismo, “outsiders sociais” ou “desajustados” são um termo mais adequado e precisam ser analisados a partir da ideia de “eugenia” como resposta a uma percepção muito obsessiva da modernidade como “decadência”. A mentalidade eugênica pretende expurgar da sociedade pessoas consideradas inadequadas para a autodeterminação de uma comunidade racial ariana.

O caso é o seguinte: não dá para ser leviano com o uso dos termos. Portanto, se os críticos da “direita” usam o termo “democracia” com o mesmo zelo, rigor e precisão com que usam o termo “nazista” para atacar seus adversários políticos, é possível traçar uma ideia mais ou menos segura do zelo, rigor e precisão que eles têm pela democracia. Atenção para a simetria ideológica: isso também serve para os críticos da “esquerda” que usam com o mesmo zelo, rigor e precisão o termo “comunista” e “Venezuela”. A pedra angular de todo sistema democrático é o embate discursivo. Mais do que poder do povo, é o poder de discursar livremente. A exigência básica de toda comunidade discursiva numa ordem democrática é ser capaz de não esvaziar o significado dos termos, não banalizar a linguagem para não banalizar o mal. Essa também sempre foi a maior fragilidade do ambiente democrático.

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