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Há muitas propostas de solução para o Brasil. Quem não tem uma? Eu tenho duas dezenas de projetos brilhantes empoeirados na gaveta; garanto que são promissores. Meu leitor deve ter alguns. Meu vizinho fatalmente tem os seus. Até minha filha mais velha, de 9 anos, já deu uns pitacos sobre como tornar nosso país um lugar melhor — juro de pé junto não ser coisa de pai coruja. Certamente que cada ideia de solução para o Brasil é muito bem-intencionada e tem origem no fundo do coração de cada alma brasileira — cada alma penada que vive os dramas de um país inseguro e prestes ao colapso social. Noutras palavras, prova de que, se dependesse das boas intenções, o país não caminharia literalmente para o inferno.

Mas cá entre nós, não importa a ideologia, o partido político, a visão de mundo, o time de futebol ou a igreja, o caso é o seguinte: se a gente não entender que um dos principais problemas que assolam o país está longe de ser de natureza política, ideológica, jurídica ou econômica, e que em um primeiro momento as crises não têm a ver com educação, saúde, segurança pública e transporte, a gente pode dar o pitaco que quiser nesses assuntos que não fará a menor diferença para tirar o país da lama. Não há necessidade de miraculosas soluções e heroicos líderes políticos antes de entender que o que se passa aqui no chão da existência é muito mais concreto e diz respeito a experiências muito mais vitais do nosso cotidiano.

Estou convencido de que o problema do Brasil está bem longe de ser abstrato e distante, ou seja, não um problema do “mecanismo”, mas um problema de cada um de nós. É algo pessoal e tem a ver com relações interpessoais. Cada dia mais, na vivência do meu dia a dia, chego à conclusão de que há uma camada muito explícita que faz o brasileiro ter o país que merece. Muitas pessoas lutam com grandes fantasmas abstratos, mas esquecem do básico. Nossos flagelos sociais como violência pública, corrupção, crise econômica ou a trágica situação da saúde não são as causas dos nossos dramas. Na verdade, todas elas são consequências de uma dimensão aquém das grandes e distantes preocupações. Sem grandes alarmismos, ultimamente tenho desconfiado de que o problema do brasileiro, isto é, o meu problema, está em um nível elementar de convívio: o convívio com o próximo — e por “próximo” me refiro literalmente àquele que ocupa o mesmo espaço de convivência que o meu.

O que eu quero dizer é o seguinte: nós, brasileiros, somos um povo extremamente mal-educado. Falo daquela educação que vem do berço, de coisas bobas como “não incomodar meu vizinho com música alta no domingo à noite”, por exemplo. A falta de gentileza e do sentido básico de que eu não posso invadir o espaço do outro, a incapacidade de respeitar a privacidade alheia e de não entender que a intimidade é um precioso e intocável bem são manifestações de um mesmo sintoma muito mais sério e sutil: somos brutalmente grosseiros e maliciosamente estúpidos. Cordialidade é um mito. Brasileiro é bárbaro. Nossa tirania não é política. Antes da política, vivemos a tirania do desrespeito interpessoal.

Fantasiamos lutar contra crises públicas gigantescas, quando o que realmente nos deforma é a incapacidade de controlar os pequenos vícios privados que nos fornecem a matéria prima para o convívio e um senso básico de vida em comunidade. Ninguém precisa ler Aristóteles e Tomás de Aquino ou Marx e Foucault para saber dessas coisas. Quantos e quantos ideólogos da justiça social e de propostas magníficas para um mundo melhor, que sabem como projetar o destino último da história e que têm planos sublimes para a realização do progresso da humanidade, são incapazes de um simples gesto de gentileza com o porteiro do prédio? Quantos e quantos ideólogos da alta cultura, da restauração dos clássicos e da luta de resistência pelos valores eternos da civilização ocidental não reagem de maneira semelhante ao que dizem combater? Não é coisa de erudito ou iletrado, é coisa de gente tosca, prepotente e mal-educada.

O problema é que a defesa de valores abstratos — não importa se são os permanentes da alta cultura ou os direitos humanos da cultura marginal — parece ter ofuscado a noção de que um “muito obrigado” e “não vou incomodar meu vizinho” constituem um dos pilares éticos do homem público civilizado. Não se trata de nobres hábitos domésticos mascarados de virtudes públicas. Trata-se apenas de lembrar que a coexistência humana exige o reconhecimento sincero de que o centro de gravidade das minhas relações sociais intersubjetivas não pode ser a satisfação imediata do meu ego.

Há uma anedota em um livro do historiador da arte Erwin Panofsky que mudou minha compreensão a respeito dos pequenos gestos humanos: poucos dias antes de morrer, Kant recebeu a visita do médico. O grande filósofo alemão estava velho, doente e quase cego. E mesmo assim, com muito esforço, levantou-se da cadeira e ficou de pé, tremendo de fraqueza e murmurando em um alemão cansado. O médico compreendeu que Kant não se sentaria até que ele, uma visita, também o fizesse. Assim que se sentaram, Kant retomou as forças e expressou: “O senso de humanidade ainda não me deixou”. Os dois homens se comoveram até as lágrimas.

Em português contemporâneo não temos mais o sentido que a palavra “humanidade” tinha para Kant no século 18, que significava uma virtude próxima de “civilidade” e “polidez” ( não como disfarce de gente vaidosa e interesseira, mas como a substância do homem simples e sincero). Infelizmente, essas noções foram sequestradas tanto pelo esteticismo vazio de pretensiosos nobres salvadores da pátria, quanto pelo hedonismo vulgar dos estúpidos.

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