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Foto: Divulgação/Netflix
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Florence Given, feminista inglesa que eu não faço a menor ideia de quem seja, iniciou uma petição on-line para impedir o lançamento da série Insatiable pela Netflix. Em poucos dias, mais de 100 mil pessoas assinaram a petição exigindo que a série não seja estreada. Notem um detalhe importante: todas essas pessoas não estão pedindo que a Netflix cancele a série, que por si seria um absurdo. Muito pior do que isso: essas pessoas exigem que a Netflix não lance a série. É um pensamento preventivo, de convicções inabaláveis.

O enredo da série não tem qualquer complexidade. Insatiable é uma comédia fanfarrona que despreza o politicamente correto. Patty, a adolescente que sofreu bullying na escola por ser gordinha, resolve se vingar depois de ficar magrinha e insaciável. Quem nunca ofendeu um “gordinho” no colégio que atire a primeira pedra. Então, ninguém ouse duvidar das nobres razões desses censores que acusam, sem assistir, a série de ser gordofóbica. Onde já se viu, em pleno século 21, alguém criar a história de uma garota que era humilhada por ser gorda e só é capaz de se vingar depois de ficar magra?

Segundo o texto da petição escrita por Given: “Por muito tempo, as narrativas falaram às mulheres e jovens garotas influenciáveis que, para ser popular, ter amigos, para se tornar desejada pelo olhar masculino e, em alguma medida, para ser um ser humano de valor, é preciso ser magra. A toxicidade da série é maior do que esta série em particular. Este não é um caso isolado, mas parte de um problema muito maior que, posso garantir, todas as mulheres enfrentaram em sua vida, sentadas em algum ponto da balança que avalia o valor de seus corpos, para serem objetos desejáveis ​ao olhar masculino. Isso é exatamente o que esta série faz. Ela perpetua não só a toxicidade da cultura da dieta, mas a objetificação do corpo das mulheres. Ainda temos tempo para impedir que esta série seja lançada e cause a devastação de insegurança nas mentes de jovens meninas que irão pensar que, para serem felizes e valiosas, precisam perder peso”.

Como podemos ver, censores não são movidos pelo desejo de poder. Longe disso, acima de qualquer suspeita, não se trata de um desejo tirânico; eles querem fazer o bem, proteger os mais fracos e defender os humilhados daquilo que supostamente pode acontecer com eles caso assistam a uma série como essa. É bom lembrar que, nesse caso, os limites à liberdade também surgem de um ardente e antecipado desejo de justiça. Quem se importa com a liberdade de alguém produzir uma comédia tosca quando o assunto é bem mais grave?

Em nome de algo maior é que séries como essas não deveriam ser exibidas e muito menos produzidas. Reparem nesta frase: “a toxicidade da série é maior do que esta série em particular”. Insatiable, que nem lançada foi, apenas representa um estado de coisas, pois é o exemplo particular de uma cultura tóxica que também perpetua a objetificação do corpo das mulheres. A luta do censor é urgente: “temos tempo para impedir que esta série seja lançada e — muita atenção! — cause a devastação de inseguranças nas mentes de jovens meninas que irão pensar que, para serem felizes e valiosas, precisam perder peso”. A pergunta é: como eles sabem que uma peça de comédia de gosto duvidoso — insisto nisso: que nem lançada foi — cause tanta desgraça no mundo? Eles sabem e ponto!

Cada um que assina a petição está tomado pela ideia delirante de que, ao impedir o lançamento de uma comédia, pode fazer algo muito bom para o mundo e para todas as pessoas humilhadas hoje, ontem, amanhã e sempre. Mais que um pensamento seguro de ter para si o poder, cada assinatura representa a certeza alucinante e inabalável de poderes que devem ser usados para proteger os mais fracos de ideias tóxicas. Essa petição é exemplo perfeito daquilo que Hannah Arendt chamou de “ideologia”: um pensamento total, seguro de si, que explica tudo de antemão e nada tem a aprender porque já sabe demais e sempre tem razão. Toda ideologia precede o real com um fundo ético seguro de suas pretensões salvadoras.

A autora e os assinantes dessa petição são incapazes de enxergarem o nível da estupidez em que estão envolvidos. Uma série de comédia não endossa os comportamentos que apresenta na trama. Isso é básico. Se a série fosse um drama trágico mostrando que, para uma mulher se dar bem na vida, ela deve ser magra e gostosa, e que a única virtude memorável é a vingança, até vai lá. De fato, são valores realmente questionáveis e reprováveis, embora não legitimem a censura prévia.

Não pretendo defender a série antes de assistir a ela. Só ideólogos têm bola de cristal para julgar tudo de antemão. De qualquer maneira, é preciso colocar as coisas nos devidos lugares. A série é um tipo de obra de arte dramática. Na clássica definição de Aristóteles, a função da arte dramática é “contar o tipo de coisas que poderiam ocorrer e são possíveis em termos de probabilidade ou necessidade”. Arte não documenta, mas cria mundos possíveis na imaginação a fim de antecipar uma emoção na consciência — isso é um resumo grosseiro, peço perdão aos leitores. Enquanto a tragédia se refere à “imitação” de ações nobres e de pessoas admiráveis, a comédia imita pessoas inferiores e ações reprováveis.

Nesse caso, fazem todo sentido as palavras de Debby Ryan, atriz que interpreta Patty, a ex-gordinha vingativa: ela foi “atraída pela proposta dessa série sobre o quão difícil e assustador pode ser existir em um mundo com o seu corpo, seja porque você está sendo elogiada ou criticada por seu tamanho”. Ela pode dizer isso com tranquilidade exatamente porque uma comédia não endossa o comportamento que representa, mas revela o quão patéticas são pessoas que acham que, para ser feliz, uma mulher deve ser magra e insaciável. Para que não virem tragédia, se tem uma coisa que não pode ser imitada, exceto como comédia, é o delírio dessas pessoas excessivamente boas convencidas de si mesmas. Portanto, nesse caso específico, o mais prudente e honesto é esperar a série ser lançada para julgá-la.

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