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Uma das cenas mais chocantes que eu presenciei na vida foi a de uma jovem correndo e gritando desesperadamente no meio da rua enquanto seu cabelo, rosto e pele eram consumidos e desfigurados pelo fogo. Na época, eu tinha uns 14 anos e esse episódio me marcou profundamente para o resto da vida. Para piorar, só tinha ido comprar pão em um fim de tarde qualquer. Mas a partir daí, descobri que pessoas que são gentis com você em um dia podem, no dia seguinte, ser as responsáveis pelas piores atrocidades.

Conhecia tanto a vítima quanto a agressora. A vítima era amante do dono de um mercadinho perto de casa, em Mogi das Cruzes. Praticamente o bairro todo sabia das “puladas de cerca” do marido com a jovem funcionária; só não imaginávamos o trágico desfecho. Quando meus amigos e eu saíamos da escola, sempre passávamos nesse mercadinho para comprar Tubaína e algumas besteiras. As duas mulheres trabalhavam juntas. Elas nos agradeciam e às vezes até riam das nossas bobagens. A amante devia ter uns vinte e poucos e trabalhava como “caixa”. A mulher do dono, uns 35. Embora nunca tenha sido antipática com a gente, acho que o seu trabalho era “olhar desconfiada” para qualquer moleque que entrava ali. Por outro lado, nunca olhávamos desconfiados para ela. Quem imagina que a “tia do mercado” atearia fogo na própria funcionária?

Não dá para saber por quanto tempo as pessoas suportam seus fantasmas interiores. O fato é que a esposa do dono do mercado descobriu a traição do marido e armou uma emboscada para pegar a amante de surpresa. Infelizmente tudo saiu como o planejado. Há vantagens quando a razão e o ódio trabalham juntos e em silêncio. Em um surto calculado de fúria, a mulher conseguiu amarrar a amante dentro de um guarda-roupa e, tomada pelo ódio, ateou fogo na mobília com a intenção objetiva de se vingar. Sem sucesso, também tentou matar o marido. Diziam os vizinhos, que sempre dizem demais, que o desejo dela era esquartejá-lo. Lembro-me que cumpriu pena por tentativa de homicídio.

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Até esse dia, nunca pensei que uma pessoa que me dava “bom dia” e “boa tarde” quando eu ia comprar refrigerante pudesse ser capaz de botar fogo em sua colega de trabalho. Na minha cabeça de menino, pessoas comuns não matam pessoas comuns. Raciocinem comigo: para um menino de 14 anos, a “tia do mercadinho” não poderia se igualar ao Jason Voorhees de Sexta-feira 13. Para os ingênuos, o mal cheira carniça e não perfume.

De qualquer maneira, uma coisa é você ler essas histórias nos jornais ou assisti-las em filmes de suspense. Em um primeiro momento, parecem distantes, coisas que só acontecem numa realidade virtual, longe do nosso dia a dia. São tantas as reportagens relatando casos em que pessoas são vítimas de violência que a gente chega até a esquecer do que pessoas como a gente são capazes de fazer com os seus semelhantes; principalmente quando tomadas pelo ódio e guiadas pela razão. No mundo virtual, distante do nosso, vilões tentam matar mocinhos e heróis servem para proteger mocinhos dos vilões. Tudo é bem demarcado, e nutrimos a crença de que nunca prejudicaremos os outros.

Quando você consegue ver uma tragédia dessas com os próprios olhos, ver que o ódio pode ser produto do seu vizinho, aquela pessoa gentil que recicla o lixo e leva o cachorro para passear, tudo vira de ponta cabeça. No imaginário de vilões e mocinhos, o ódio é um produto de vilões com cara de vilões — afinal, só os vilões odeiam. Aqui, perto da gente, o ódio passa a ser uma substância que pode ser não só do meu vizinho como uma parte essencial do que eu mesmo sou.

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Ao retratar fatos dessa natureza, o mundo virtual subtrai a maior parte da realidade. Ficamos com a imagem residual e julgamos o mundo a partir dela. No caso da violência, que é um produto direto do ódio, podemos até construir uma ideia difusa, longe dos nossos corações, pois perdemos a textura, o cheiro, o movimento e os motivos interiores do ódio. Porém, violência não é uma ideia, um conceito inerte e distante. Violência é o que pessoas como eu, você, um vizinho, um professor, um aluno, um amigo, enfim, pessoas que possuem narinas, olhos, orelhas, braços, mãos, voz, vontade e razão, podem fazer com as outras.

Os sentimentos humanos de menosprezo, impotência, angústia e fraqueza podem dar vazão às mais desequilibradas formas de perversidades e violência. Não há nada de estranho nisso. Nada. O ódio e a perversidade são obras tão humanas quanto o amor e a bondade. Os algoritmos que disparam o gatilho da violência são inseparáveis de cada um de nós assim como os que disparam a coragem, a amizade e a justiça.

Ao considerar as variadas formas da mente humana para casos envolvendo paixão, perda, ressentimentos e frustrações, os motivos de um crime bárbaro apontam mais para a natureza dos seres humanos em geral do que o moralismo ideológico pretende demarcar quando mapeia a violência como uma fantasiosa disputa entre vilões e mocinhos. Há tantas razões para odiar e não podemos nos esquivar do fato de que cada um de nós — homens, mulheres, brancos, negros, pobres, ricos, religiosos ou ateus — comunga uma porção generosa desse ódio nosso de cada dia.

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