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Uma possível e consistente definição do que vem a ser filosofia pode ser aquela conjugada com a ideia de liberdade: “a filosofia consiste em afirmar a liberdade e em sustentá-la até as últimas consequências”, diz o historiador e filósofo francês Rémi Brague. A origem, o método e o propósito da filosofia podem ser definidos “sob a rubrica da liberdade”. Isso não é diferente do que defendia Platão. O filósofo grego definia a mais elevada das disciplinas filosóficas, a dialética, como “a ciência dos homens livres”. Dois milênios depois, o grande filósofo do idealismo alemão, Schelling, dizia que “o alfa e o ômega de toda a filosofia é a liberdade”. Simpatizo com essa tradição, definir a filosofia é como definir a liberdade.

Quanto à sua origem psicológica ligada à experiência concreta de uma pessoa que se dispõe a questionar suas próprias crenças e opiniões, a filosofia surge do diálogo franco em que qualquer ser falante e racional pode tomar parte. Primeiro o diálogo franco consigo mesmo, pois não seria o pensamento um diálogo travado no silêncio da interioridade antes de ser constrangido pelo ruído do falatório público?

A filosofia depende de um contexto em que qualquer ser humano pode questionar qualquer coisa. Esse primeiro contexto é a consciência que se abre para o ilimitado universo do discurso. Noutras palavras, não há limites temáticos para o livre exercício da razão. A totalidade se apresenta como a matéria prima da filosofia. Como diz Heráclito: “Caminhando não encontrarás os limites da alma, mesmo se percorreres todas as estradas, tão profundo é o seu Logos” (numa tradução livre: discurso racional). Sendo assim, dizer que um determinado assunto não pode ser questionado é uma aberração que só faz sentido na cabeça oca de gente covarde e preguiçosa. Para a filosofia, literalmente tudo pode e deve ser questionado.

Nesse aspecto, as comunidades virtuais, públicas e acadêmicas que se formam para debater qualquer assunto só se beneficiam com a transcrição entre liberdade cultivada na vida interior e liberdade social, que passa a ser pautada a partir de regras simples da razão, do bom senso e do reconhecimento de que os únicos fatores limitadores da filosofia são a covardia, a preguiça e, em última instância, a violência. Nada de amarras exceto o saber da energia pessoal que se gasta para investigar os fundamentos das próprias opiniões.

Em virtude dessa essencial parceria com a liberdade, o discurso teórico da filosofia se transpõe em prática. Que não se confunda aqui prática filosófica com prática revolucionária. A revolução da filosofia é a do mundo interior. Filosofia não é conto de fadas e promessas vazias. A atividade filosófica exige o equilíbrio moral e a disposição existencial cujo propósito último é o de combater, acima de tudo, os vícios privados para saber resistir às ameaças públicas. Pois a pior tirania é aquela que vem de dentro.

No que se refere ao método, a liberdade em filosofia se apresenta em dois aspectos: um negativo e um positivo.

O aspecto “negativo” refere-se ao seguinte: a filosofia tem o poder de libertar o nosso pensamento dos lugares-comuns em que apoiamos nossas crenças e juízos. Muitas vezes, no nosso dia a dia, reproduzimos jargões para facilitar e agilizar a conversa e poupar energia do pensamento. Nesse sentido negativo, a filosofia pede para suspendermos as nossas opiniões — todas elas. É a parte mais “chatinha”, vamos dizer assim, pois tudo o que não está claro e consistente ao pensamento deve ser questionado até suas últimas consequências. Nesse caso, filosofamos dizendo “não” para nossas crenças. Principalmente para deixar de sermos prisioneiros de nós mesmos.

No aspecto “positivo”, a postura filosófica é a de perseguir a realidade, reabilitar o contato com a realidade das coisas. Em outras palavras, olhar para a realidade tal como ela se apresenta para nós, sem os filtros mentais, ideológicos e teóricos. Não que a teoria não seja importante, mas o fundamento das coisas não é a teoria, é a experiência. Tudo está aí “dado” e cabe ao filósofo “receber esse dado tal como ele se dá livremente”. A teorização vem depois. Sendo assim, a filosofia se constrói como busca de uma experiência elementar e primitiva, porém ainda indeterminada no plano teórico e conceitual. Como diz o filósofo alemão Edmund Husserl: “voltar às coisas mesmas” a fim de superar o divórcio que distancia o mundo da teoria do mundo da vida. Deixar de viver só no mundo como ideia para viver também é sobretudo no mundo como experiência.

Por fim, gostaria de falar um pouco a respeito do propósito da filosofia. A filosofia pretende a universalidade e “atingir verdades que valem para todos”. Não é literatura e opinião política. A consequência dessa pretensão — que arrepia os céticos e, principalmente, a cultura do relativismo — significa que o espaço aberto pelo ilimitado universo do discurso rompe todas as barreiras impostas por dogmatismos e opiniões sem fundamento. A busca da realidade só pode se apresentar como a abertura radical e honesta da alma e cujo alicerce é a liberdade — ou a reflexão filosófica.

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