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Tenho orgulho de dizer que já fui um leitor muito acima da média dos leitores brasileiros. Não que seja difícil ultrapassar essa marca. Infelizmente, brasileiro tem fama de ler pouco e mal. Há até uma definição técnica para “leitor”. De acordo com Retratos da Leitura no Brasil, publicado em 2016, leitor é aquele que leu, inteiro ou em partes, pelo menos um livro nos últimos três meses. Não vale orelha ou resumo. Leitor é quem abre o livro e lê — ou desiste de ler. Se você não leu nenhum nos últimos três meses, considere-se um “não leitor”. Mas tranquilize-se, você não está sozinho, pelo menos a metade do país te acompanha.

As estatísticas não mentem: cinco é a média de livros lidos por ano no Brasil. Desse número, só dois e uns quebrados são lidos até o fim, de cabo a rabo. Sem mencionar a qualidade dos livros e a qualidade da leitura. Não basta ler muitos livros e ser leitor de porcarias. Assim como ler os clássicos de qualquer jeito também não vale pra nada. Ninguém lê A Montanha Mágica com técnicas de leitura dinâmica. Com o perdão do clichê: há páginas ali que precisam ser saboreadas. A própria recomendação do Thomas Mann é a de reler assim que terminar a primeira leitura — detalhe: são mais de 900 páginas!

Ler é uma atividade intelectual, econômica e fisicamente exigente. Consome tempo, dinheiro e, segundo uma turma de especialistas lá do estrangeiro, algumas calorias. Guerra e Paz do Tolstói e Fenomenologia do Espírito do Hegel que o digam; isso para não falar do Em busca do tempo perdido do Marcel Proust, do Homem sem qualidades do Robert Musil e da Suma Teológica do Tomás de Aquino. A obra do Tomás e a do Proust têm literalmente milhares de páginas. Essas são obras caras e difíceis, demandam tempo, atenção e muita força de vontade. Talvez seja mais fácil atirá-las para a lata de lixo da irrelevância do que ter de encará-las um dia na vida.

Orgulhava-me de ser considerado um bom leitor quando me olhava no espelho. Não só lia muito como lia bem, bons livros. Os clássicos devem ser definidos como aqueles livros para serem relidos — lição do grande leitor Ítalo Calvino. E sou fascinado por eles. Invisto boa parte do meu salário e tempo nesses incríveis objetos de tecnologia durável e insubstituível. Faço isso desde 1997, quando comprei meu primeiro livro: O eu profundo e os outros eus, de Fernando Pessoa. Lembro-me nitidamente dos versos de Ricardo Reis:

Coroai-me de rosas,
Coroai-me em verdade
De rosas —
Rosas que se apagam
Em fronte a apagar-se
Tão cedo!
Coroai-me de rosas
E de folhas breves.
E basta.

No auge do meu entusiasmo, cheguei a ler mais de 100 livros em um único ano. Por prazer e profissão, passava horas do meu dia focado com toda minha energia canalizada a uma atividade contínua de leitura profunda. Do jeito que Santo Ambrósio ensinou a Santo Agostinho, que fez prática a própria expressão de sua metafísica: a leitura silenciosa como narrativa para a vida interior. Honestamente, peguei amor pela coisa. Entrava na biblioteca às 8 da manhã, fazia uma pausa para o almoço e fechava o expediente às 21h30. Encarava a atividade da leitura como uma rotina de trabalho — o meu ora et labora particular —e dos mais prazerosos.

No entanto, alguma coisa mudou e isso tem me preocupado bastante. De uns anos pra cá eu comecei a perceber uma certa impaciência para conseguir terminar um livro. De imediato, estou sentindo que não leio mais de forma contínua e aprofundada. Leio bastante livros ainda. Porém, tenho consciência de estar me tornando um mau leitor. Um leitor distraído, com uma leitura truncada, várias vezes interrompida e, como resultado, inconsistente. Perdi o vigor e cheguei a cogitar problema de saúde. Sem me isentar de responsabilidades, descobri que o problema é de outra ordem e expressa bem o espírito do tempo.

Atualmente, não consigo passar mais de 15 minutos sem pensar na timeline do meu Facebook ou no que está acontecendo no Twitter. Não consigo parar de pensar nos meus e-mails, no próximo post que irei escrever, quantas curtidas terei e nos comentários de posts que irei responder. Se ontem eu não largava um livro, hoje não largo o celular. Se ontem batia cartão na biblioteca, hoje estou o tempo todo conectado na internet, recebendo notificações a cada minuto. Sei que isso não é um fenômeno pessoal. Tenho conversado com alguns amigos e os relatos não são diferentes. Pelo contrário, é uma preocupação mais comum do que eu imaginava.

Num livro recente que li nas férias — que com muito esforço consegui terminar em apenas dois dias —, chamado A Geração Superficial (Editora Agir, 2011), de Nicholas Carr, fui convencido do potencial para a superficialidade da internet. A tese é simples: passar o dia conectado está mudando significativamente a nossa forma de pensar. O funcionamento da mente não é mais a mesma depois que nos habituamos a passar o dia checando e-mails, clicando em links, assistindo a vídeos no YouTube, pesquisando no Google, postando no Facebook ou discutindo no Twitter. A plasticidade do cérebro molda-se ao ritmo da vida virtual. A mente se adapta, com certa facilidade, à dinâmica multifacetada de um dia a dia cheio de links, notificações e curtidas.

Quando estamos na internet, diz Carr, “entramos em um ambiente que promove leitura descuidada, um pensamento apressado e distraído e o aprendizado distraído”. Infelizmente, na vida on-line, “frequentemente estamos desligados de tudo o mais que está ocorrendo ao nosso redor”, pois “o mundo real se afasta enquanto processamos a enxurrada de símbolos e estímulos despejada pelos nossos dispositivos”. De possíveis leitores, estamos nos tornando uma máquina de processamento de dados de alta velocidade, uma máquina de distração.

Nicholas Carr diz que o cérebro precisa manter esses estímulos. Segundo ele, “nós queremos ser interrompidos, porque cada interrupção nos traz uma informação preciosa. Ao desligar esses alertas, nos arriscamos a nos sentir desconectados ou mesmo socialmente isolados”. Quando eu li isso, não pude deixar de ver como um diagnóstico preciso do meu estado mental. O autor traz uma quantidade consistente de informações neurocientíficas para sustentar o que a internet está fazendo com os nossos cérebros.  Não escondo a preocupação. Ainda mais em virtude de experimentar a falta de interesse na leitura de livros enquanto o meu interesse em permanecer distraído só aumenta.

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