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Viver na companhia dos grandes professores
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Muita gente distingue filosofia da história da filosofia. Há bons motivos para não aceitar essa separação, que está mais para fruto do menosprezo de nossa época pelo passado. Fazer história da filosofia não está em segundo plano no pensamento filosófico. Já vi muitos estudantes e até professores desprezarem a leitura de filósofos como Platão e Aristóteles só por serem “filósofos do passado”. Um preconceito nascido a partir da compreensão equivocada da famosa sentença de Kant de que não se ensina filosofia, mas a filosofar.

O ensino do filosofar não faz muito sentido quando se despreza os filósofos do passado. Não leio Plotino e Agostinho, Aristóteles e Tomás de Aquino ou Montaigne e Hume por caprichos da erudição. Há interesse genuinamente filosófico na leitura dos grandes mestres. A leitura dos filósofos atuais não me autoriza a esquecer o que a filosofia produziu em sua história. Acreditar nisso é incorrer no erro bobo de achar que o que foi feito hoje superou o que foi feito ontem.

Sem dúvida o iPhone 10 é melhor que a versão 5, e o Playstation 4, melhor que o 3. Em filosofia as coisas não funcionam assim. Problemas filosóficos não estão sujeitos a leis do progresso tecnológico. Para soluções dos meus problemas domésticos, o progresso tecnológico é maravilhoso. Experimente trocar o seu chuveiro elétrico por um eletrônico. Para problemas filosóficos, o pragmatismo de Richard Rorty não é melhor que o de Charles S. Peirce, a ética de Peter Singer não superou a de Aristóteles e a teoria da justiça de John Rawls não invalidou a de Platão.

Independentemente das nossas acidentais motivações biográficas para se estudar este ou aquele filósofo, é preciso considerar que a filosofia pode ser definida como o compromisso autoconsciente com a liberdade, a linguagem e a realidade. Os filósofos desejam encontrar a verdade. Para isso, devem superar os erros que interferem nessa busca — começando com os próprios preconceitos intelectuais e morais, principalmente ao julgar a história só a partir da própria experiência.

Embora as motivações sejam contextualizadas, a pretensão dos filósofos é atemporal. Como diz o filósofo francês Rémi Brague: “é uma pretensão à universalidade, a pretensão de atingir verdades que valem para todos”. Platão filosofou motivado pela morte de Sócrates. Mas a resposta dada ao problema da justiça na democracia como resultado da corrupção espiritual do relativismo proposto pelos sofistas ultrapassa os limites dessa específica história ateniense. Kant teve o sono perturbado por Hume e o sonho por Swedenborg. Sua filosofia, todavia, não se limita aos dilemas vividos no século 18. A crítica de Kant aos “sonhadores dos sentidos” — referência a quem acredita ter visões místicas — e aos “sonhadores da razão” — referência ao suposto poder da razão em conhecer além da experiência — é tão atual quanto o meu laptop. Daqui a alguns meses jogo meu laptop fora; Kant continuará aberto na minha escrivaninha.

Deve-se defender a história da filosofia da acusação de que esta ocupa um segundo plano para quem deseja filosofar.

Em primeiro lugar, o estudo da história da filosofia fornece o contexto cultural, social e psicológico para a compreensão dos motivos de uma pergunta filosófica. Ler cartas de filósofos é um exercício fascinante. Não que a filosofia seja determinada pela vida do filósofo — a filosofia de Rousseau é maior que sua biografia. No entanto, filósofos são pessoas de carne e osso; muitos viveram vidas difíceis, enfrentaram situações embaraçosas e registram suas angústias com interlocutores reais.

Em segundo lugar, a história da filosofia ajuda-nos a encontrar a experiência que deu origem a certos termos e conceitos — hoje desatualizados e gastos pelo uso. Por exemplo, o conceito de “tolerância” em John Locke. O filósofo inglês viveu dramas reais com relação aos conflitos religiosos e políticos de sua época. “Tolerância” tem um sentido muito específico no contexto moderno. Locke é filho de seu tempo e devemos ser capazes de rastrear esse sentido, pois o uso que fazemos do conceito de “tolerância” como resposta aos nossos problemas contemporâneos se torna mais significativo e preciso.

Por último — e sem pretender esgotar o assunto —, a história da filosofia nos fornece as condições adequadas para criarmos nossos próprios termos e conceitos. A história calibra o nosso campo de experiência e linguagem com o dos filósofos do passado, o que é ideal para não passarmos vergonha por achar que estamos inventando a roda. Fazer história da filosofia é lembrar que a atividade filosófica possui uma natureza dialógica por excelência e que certos assuntos podem ter sido debatidos pelas melhores mentes.

As pessoas conversam acerca de tudo e todo mundo tem opinião sobre praticamente todos os assuntos o tempo todo. Aqui um pouco de humildade não faz mal a ninguém. Sejamos sinceros: somos banais e estamos cercados de pessoas banais. Por outro lado, ao fazer história da filosofia, nossa conversa será com Platão, Aristóteles, Plotino, Leibniz, Hegel, Kierkegaard, Husserl, Wittgenstein etc. Verdadeira telepatia. Com a vantagem de nos fazer viver na companhia dos grandes professores da humanidade. Filosofar, nesse sentido histórico, é poder encontrar parceiros de diálogos dignos e, como diz Rémi Brague, muito mais interessantes do que nós mesmos, pequenas pessoas simples.

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