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Detalhe de “Ester denuncia Hamã”, de Ernest Normand.
Detalhe de “Ester denuncia Hamã”, de Ernest Normand.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

Em 2007 estreou no cinema o filme 300. A turma politicamente correta detestou o filme – e não foi à toa. Nele, os militares não são covardes armados, os políticos pacifistas não são confiáveis e os vilões vêm do oriente – um “crime” na Hollywood de hoje. De qualquer forma, baseado numa famosa graphic novel de 1998, o filme retrata a Batalha de Termópilas, ocorrida em 480 a.C. Durante três dias, cerca de 7 mil gregos, comandados por 300 espartanos e seu rei, Leônidas, lutaram contra cerca de 100 mil a 150 mil homens do império persa, liderados por Xerxes. No fim, o confronto nas Termópilas foi fundamental para que a Grécia derrotasse o império persa, nas batalhas de Salamina e Plateias. Mesmo sobrepujados, os espartanos ajudaram a preservar a civilização das cidades-Estado gregas, permitindo que ela chegasse a seu auge, no primeiro experimento de liberdade política e de pensamento da história, valores que até hoje dirigem o Ocidente. Mas, pouco tempo antes, ocorreu outro confronto, agora no coração do império persa, que também determinaria os rumos da civilização ocidental.

Um concurso de beleza

A história da rainha Ester, como registrada na Escritura Sagrada, ocorreu no Palácio de Susã, em Elão, que era uma das três capitais do império persa. Ela viveu num tempo de grande perigo, pois seu povo, os israelitas, estava no exílio, após a destruição da cidade de Jerusalém (2Rs 24,18-25.30; 2Cr 36,11.23), em 586 a.C., pela Babilônia, que foi derrotada pela Pérsia em 539 a.C. O império persa estendia-se da Índia à Etiópia (1,1), compreendendo a região em que hoje se situam o Irã, o Iraque, o Líbano, Israel, Jordânia, Egito, Turquia e partes da Grécia, Bálcãs, Rússia, Afeganistão e Paquistão.

O drama do livro bíblico começa em meados de 483 a.C., no tempo da deposição da rainha Vasti pelo rei Xerxes. O nome de Deus não é mencionado no livro bíblico. Uma possibilidade pode ter a ver com o nível de assimilação da sociedade judaica que permaneceu no centro do império persa. Mardoqueu e Ester não voltaram a “Jerusalém de Judá” quando Ciro II, avô de Xerxes, não somente ordenou, mas encorajou os cativos a retornarem. Talvez isso tenha ocorrido porque simplesmente preferiram continuar no exílio a retornar a Judá – o que enfatiza que a salvação da comunidade da aliança vem inteiramente de Deus, não dependendo da pureza espiritual nem da piedade de seu povo. Nesse sentido, o livro de Ester lembra muito outro livro bíblico, o livro do Êxodo. O tema do cativeiro e da libertação é comum a ambos.

A salvação da comunidade da aliança vem inteiramente de Deus, não dependendo da pureza espiritual nem da piedade de seu povo

Uma breve análise do livro bíblico nos ajuda a nos situar. No capítulo 1, o palco é armado. Segundo Heródoto, o provável contexto é uma reunião para considerar uma campanha contra a Grécia. É descrito o esplendor persa, o desafio de Vasti, cansada de ser usada como mulher-objeto, ao rei e a vingança do rei. No capítulo 2, Ester é escolhida como rainha. Um concurso de beleza é planejado, Ester é apresentada e é selecionada rainha, cerca de quatro anos após o rei haver deposto Vasti, “no sétimo ano do seu reinado” – ou seja, após as derrotas persas nas batalhas de Salamina, Plateias e Mícale. Mardoqueu, descendente do trágico rei Saul, tio de Ester, descobre uma conspiração. No capítulo 3, no “décimo segundo ano do rei Xerxes”, o vizir Hamã buscou vingar-se dos judeus, porque Mardoqueu se recusou a prostrar-se diante dele. Hamã era descendente do rei Agague, da tribo de Amaleque, antiga inimiga de Israel. Ele é promovido, sortes são lançadas para decidir o destino dos judeus e um édito de extermínio é publicado.

Recomendo o estudo destes capítulos para que o leitor fique por dentro do que vai acontecer, e chamo sua atenção especialmente para o capítulo 4,13-17. Depois de uma angustiada exortação de Mardoqueu, Ester toma a frente da situação:

“Então, lhes disse Mardoqueu que respondessem a Ester: Não imagines que, por estares na casa do rei, só tu escaparás entre todos os judeus. Porque, se de todo te calares agora, de outra parte se levantará para os judeus socorro e livramento, mas tu e a casa de teu pai perecereis; e quem sabe se para conjuntura como esta é que foste elevada a rainha? Então, disse Ester que respondessem a Mardoqueu: Vai, ajunta a todos os judeus que se acharem em Susã, e jejuai por mim, e não comais, nem bebais por três dias, nem de noite nem de dia; eu e as minhas servas também jejuaremos. Depois, irei ter com o rei, ainda que é contra a lei; se perecer, pereci. Então, se foi Mardoqueu e tudo fez segundo Ester lhe havia ordenado.”

Frente a uma grande angústia

Os adversários dos judeus, liderados pelo perverso Hamã, buscavam aniquilar o povo de Deus. Hamã era um ateu prático, e buscava o poder apenas para atingir seus objetivos. Ele não suportava nenhuma oposição e se lança numa vingança completamente fora de proporção com o agravo recebido. Ele acreditava poder controlar a história, mas os acontecimentos provaram que não, pois o livro traz nas entrelinhas a convicção de que Deus reina. A exortação de Mardoqueu a Ester (4,14) demonstra que ambos estavam cônscios da providência divina: “Não imagines que, por estares no palácio do rei, serás a única a escapar entre os judeus, pois se te calares agora, socorro e livramento surgirão de outra parte para os judeus, mas tu e a tua família sereis eliminados. Quem sabe se não foi para este momento que foste conduzida à realeza?” Essa fala dramática lembra a confissão oferecida pelo Breve Catecismo de Westminster acerca das “obras da providência de Deus [que] são a sua maneira muito santa, sábia e poderosa de preservar e governar todas as suas criaturas, e todas as ações delas”. Frente a um grande problema, esta era a convicção de Mardoqueu: o Altíssimo, que controla todos os eventos, tinha levantado Ester como seu instrumento para a salvação de seu povo, os judeus.

Esse diálogo marca um momento de virada na história: a partir dele, Ester transforma-se. Antes era apenas uma bela rainha; agora torna-se uma judia preocupada com o destino de seu povo. Antes, mais uma figurante no harém do rei; agora, uma mulher determinada a influenciar seu esposo em favor do povo de Deus. Antes, uma mulher em silêncio, submissa a seu destino; agora, “uma intercessora apaixonada”, disposta a, de alguma forma, identificar-se com o destino de seu povo e a mudar um império. Antes, uma mulher que dependeu de sua beleza para alcançar uma nobre posição; agora, uma mulher dependendo das orações de seu povo para ser bem-sucedida.

Nestes tempos difíceis em que vivemos, quando o julgamento de Deus se manifesta sobre nossa cultura, somos chamados a crer que Deus tem levantado instrumentos de sua providência para testemunho de sua misericórdia em todas as esferas da vida, também na esfera política. E aqueles que servem na esfera pública precisam seguir o exemplo de Mardoqueu e Ester, agindo com sabedoria e confiando na ação soberana de Deus. Mardoqueu e Ester não se entregaram à apatia, aguardando o possível extermínio que lhes estava sendo ardilosamente arquitetado; antes, traçaram uma estratégia eminentemente política e a executaram. Em nosso tempo, também precisamos de servos confiantes na ação divina, firmados em Deus, para agir como agentes de transformação em nossa sociedade, a partir dos palácios e entre aqueles que governam. Precisamos, ainda, de servos que sejam dependentes da sabedoria da comunidade da aliança, como Ester, que ouviu Mardoqueu, o qual soube se portar com inteligência e humildade, de forma silenciosa e eficiente, nos bastidores.

O coração de Ester

A resposta de Ester (4,16) revela uma espiritualidade fervorosa, uma verdadeira confissão de fé: “Vai, ajunta a todos os judeus que se acharem em Susã, e jejuai por mim, e não comais, nem bebais por três dias, nem de noite nem de dia; eu e as minhas servas também jejuaremos. Depois, irei ter com o rei, ainda que é contra a lei”. Deve-se ter em mente que o jejum é sempre acompanhado de oração, numa clara alusão à devoção e ao suporte espiritual, por meio da intercessão. Desse modo, nessas palavras é possível perceber o senso de responsabilidade de Ester pelo povo da aliança e constatar como ela correspondeu à situação: uma espiritualidade disciplinada e centrada no Deus vivo. Ela demonstrou apreensão, mas suplicou o sustento e a comunhão de outras pessoas, testemunhando uma grande dependência para com Deus, mais do que em relação à coragem humana. E os três dias de jejum representam vividamente a gravidade da situação.

Nestes tempos difíceis em que vivemos, quando o julgamento de Deus se manifesta sobre nossa cultura, somos chamados a crer que Deus tem levantado instrumentos de sua providência para testemunho de sua misericórdia em todas as esferas da vida

De igual modo, é necessário que aqueles que servem nos palácios guardem seu coração das tentações do poder ou do silêncio. Também não adianta gastar tempo planejando formas de resistir ao Estado despótico quando não se valoriza o tempo de jejum e oração para receber a direção de Deus. Além de traçar estratégias para influenciar o Estado, aqueles que servem em centros de decisão precisam contar com a comunhão dos santos, que os sustentará em oração. Esses são os meios que Deus nos deu para que aqueles que servem nos palácios tenham um coração como o de Ester.

Testemunhando perante o rei

“Se for preciso morrer, morrerei” (4,16). Se essas palavras de Ester, que indicam uma entrega total à vontade divina, nos parecem muito dramáticas, a razão é que não conhecemos o testemunho de servos de Deus do passado, como Atanásio de Alexandria, Martinho Lutero e Dietrich Bonhoeffer, que também passaram por situações como essa, de grande ameaça. Ester entendia que sua função pública existia para a glória de Deus e para o benefício de seu povo, e não para proveito próprio. Lutero, certa vez, disse: “Ainda que o seu trabalho seja o de um lavador de pratos ou de um menino que cuida do estábulo, a sua vocação é divinamente indicada, tão sagrada quanto a de qualquer pastor ou oficial da igreja”. Nessa declaração, o reformador estava tão somente ilustrando a doutrina bíblica que afirma a santidade de todas as vocações legítimas. Ester também entendia que Deus, em sua providência, a levantara para defender o povo eleito como uma rainha que estava no centro das decisões políticas. Deus tem dado diferentes vocações para seu povo. Aqueles chamados para exercer algum tipo de influência nos palácios devem glorificar a Deus com seu chamado. Deus os levantou para ser “sal da terra” e “luz do mundo” (Mt 5,13-16), a fim de influenciar a sociedade a partir dos palácios.

Purim

Depois desse diálogo dramático, os acontecimentos se sucedem com rapidez. “Três dias depois”, Ester apresenta-se diante do rei, correndo risco de vida. Ainda que Hamã faça planos para enforcar Mardoqueu, aquele é humilhado, enquanto este é exaltado. Em seus sonhos de glória pessoal, Hamã revela o que ele realmente queria: aclamação e adulação públicas. Por fim, Hamã é executado, o livramento dos judeus é planejado e executado. Inclusive “muitos, dos povos da terra [da Pérsia], se fizeram judeus” (8,17), conversão essa que assinala o clímax da história. Portanto, esse dia festivo passou a ser chamado Purim, “sorteio”, por causa do sorteio que Hamã fez para determinar o dia em que seria proposto o extermínio dos judeus no império persa.

Deus tem dado diferentes vocações para seu povo. Aqueles chamados para exercer algum tipo de influência nos palácios devem glorificar a Deus com seu chamado

Quais foram os resultados da atuação de Ester, comprometida que estava com o Senhor? Em primeiro lugar, Deus mudou a história como planejada por Hamã e abençoou seu povo judeu. Em segundo lugar, produziu-se libertação e alegria na comunidade judaica espalhada em todo o império. Em terceiro lugar, surgiu uma sociedade marcada por alegria, partilha e justiça. Em quarto, Deus transformou um símbolo do mal em símbolo eterno de sua providência, para ser festejado para sempre – até hoje os judeus celebram o Purim, que é caracterizado pela recitação pública do livro de Ester por duas vezes, distribuição de comida e dinheiro aos pobres, presentes e consumo de vinho durante refeição de celebração, além de comemorações públicas. Em quinto, Deus exaltou seus servos fiéis (10,3). Nem Ester nem Mardoqueu escolheram o posto que ocupavam. Após a salvação dos judeus, Mardoqueu passou a exercer imensa influência no império persa. Entretanto, antes de alcançar essa posição, ele se mostrou um homem temente que, com sabedoria e modéstia, lutou pelo direito e pela justiça para seu povo. E a rainha Ester, uma jovem sem experiência em questões políticas, mas levada ao centro de decisão, confiou que o povo poderia ser preservado do extermínio por meio de uma ação ousada, usando seu ofício real para fins benignos. Por isso, ela passou a ser listada como uma das sete mulheres profetisas judias, sendo as outras seis Miriã, Débora, Ana, Sara, Hulda e Abigail. Em um tempo de tamanha desesperança, dificilmente alguém imaginaria que dois exilados judeus alcançassem tais posições e que a justiça prevalecesse quando aqueles que agiam não tinham poder algum.

No fim, por causa da fidelidade de Ester e Mardoqueu, o povo da aliança, o povo judeu, foi preservado. E o que garantiu a sobrevivência dessa comunidade no estrangeiro não foi sua pureza espiritual nem sua piedade moral, mas a graça de Deus. E da salvação do povo judeu surgiria o maior judeu da história, o Salvador, o Messias Jesus, que morreu e ressuscitou por causa de nossos pecados. E, por meio do descendente de Davi, Jesus, o Eterno Filho de Deus, a igreja cristã veio a existir.

“Bendito sejas Tu, meu Senhor, nosso Deus, Rei do Universo, que aceita nossa queixa, julga nossa reivindicação, corrige nosso erro; Que traz justa retribuição sobre todos os inimigos de nossa alma e exige vingança por nós de nossos inimigos. Bendito és Tu, meu Senhor, que exige vingança para o Seu povo Israel de todos os seus inimigos, o Deus que traz a salvação.”

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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