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A evolução das ideias políticas que moldaram as sociedades modernas é frequentemente atribuída ao Iluminismo e ao humanismo secular. No entanto, uma análise mais detalhada revela que o verdadeiro berço do contrato social, que garante a liberdade dos seres humanos, está na Reforma Protestante.
Diferentemente do contrato social humanista, surgido do pensamento iluminista e responsável por opressões e perdas imensas de vidas, o contrato social ou pacto social reformado resistiu à tirania, ao totalitarismo e ao autoritarismo com força consistente. Exploraremos as raízes reformadas dessa ideia, resumindo os argumentos apresentados por David W. Hall em The Reformation Roots of Social Contract (1997).
Origens e evolução da ideia
As ideias políticas não surgem do nada; elas evoluem a partir de contextos anteriores. No caso do pacto social reformado, seu desenvolvimento ocorreu em um incubador religioso específico: a Reforma Protestante. Entre 1520 e 1650, houve avanços significativos no pensamento político, impulsionados pela teologia bíblica da Reforma.
Duas teses guiam esta análise: primeiro, as ideias democráticas não pertencem originalmente às democracias modernas, mas são frutos de solos intelectuais anteriores; segundo, o pacto social reformado manifestou-se pela primeira vez em grande escala na república dos Estados Unidos, com uma base religiosa transcendente, contrariando o mito secularista dominante.
Para entender isso, comecemos por três pontos de virada na história do bom governo, todos enraizados no pensamento bíblico e anteriores à Reforma Protestante.
A contribuição judaica ao republicanismo
Johannes Althusius elogiou a estrutura política dos judeus como a mais sábia e perfeita já construída. Em Êxodo 18, o conselho de Jetro a Moisés estabelece uma forma precoce de governo federal-republicano, com representantes eleitos para governar. Reformadores como João Calvino e Samuel Rutherford viam esse modelo como representativo.
Rutherford, em Lex Rex (1644), usou padrões do Antigo Testamento para argumentar contra o monarquismo absoluto, enfatizando que a Escritura é aplicável à política civil. Esse modelo baseado no Antigo Testamento inspirou a estrutura republicana americana, com poder distribuído e limitado.
A Magna Carta
Antes da Reforma, a Magna Carta (1215) representou um marco de liberdades, listando direitos e salvaguardas contra a intrusão estatal. Enraizado na teologia medieval cristã, esse documento refletia a visão de Tomás de Aquino, que argumentava que os cristãos devem obedecer à autoridade divina, mas resistir àquela que não vem de Deus.
Um governante que toma o poder pela violência perde legitimidade, permitindo sua rejeição
A Magna Carta limitava o poder dos príncipes, estabelecendo um precedente para a ideia de governo sob a lei e influenciando a Reforma.
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O movimento conciliar
Durante o Renascimento, o pensamento medieval evoluiu, introduzindo conceitos de um contrato implícito entre súditos e governantes e de uma lei superior ao Estado, representada pela Igreja.
Reis que violassem esses princípios podiam ser resistidos. Essa teologia preparou o terreno para mudanças econômicas e políticas na Reforma, influenciando Martinho Lutero e Calvino, que desenvolveram ideias de resistência e limitação do poder estatal.
Desenvolvimentos na Reforma Protestante
A Reforma aprofundou a teoria do Estado, ao mesmo tempo em que limitava seus poderes. Karl Holl observou que a Reforma estabeleceu barreiras rígidas ao poder absoluto, promovendo a liberdade de consciência.
Inicialmente, reformadores como Lutero enfatizavam a submissão ao magistrado civil, mas abusos de governantes levaram a qualificações: a resistência passiva era aceitável se o governante ordenasse algo contrário à revelação divina.
John Knox e Christopher Goodman foram mais radicais. Goodman, em How Superior Powers Ought to Be Obeyed (1558), afirmou que reis blasfemos ou opressores perdem sua autoridade e devem ser julgados como homens comuns.
Ele escreveu: “Quando magistrados cessam de cumprir seu dever, o povo fica sem magistrados... Se príncipes agem corretamente, devem receber obediência; se não, o povo é liberado e deve depor tais rebeldes contra Deus”. Essa visão abriu caminho para a resistência ativa contra tiranos.
Heinrich Bullinger, em De Testamento Seu Foedere Dei Unico et Aeterno (1534), influenciou tanto o âmbito eclesiástico quanto o civil. Calvino, nas Institutas da Religião Cristã, via o Estado como sujeito à soberania de Cristo, não como um mal necessário.
Holl creditou ao calvinismo barreiras contra o absolutismo, transformando o conceito de Estado ao incorporar direitos humanos universais, impulsionados pela religião.
Lutero, Felipe Melanchthon e Martin Bucer permitiam resistência pelos magistrados inferiores se o superior tentasse suprimir o evangelho, validando até o uso de armas para proteger o povo.
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Avanços na Pós-Reforma
A segunda geração de reformadores articulou uma teologia robusta do Estado. Após o Massacre de São Bartolomeu (1572), Teodoro Beza, em The Right of Magistrates (1574), justificou a resistência armada por magistrados intermediários contra um rei tirânico.
Beza limitava o poder do magistrado: “O poder do magistrado legítimo não é infinito nem incondicional”. Se corrupto, a resistência era permitida, mas nunca violenta. Em The Grounds and Principles of Christian Religion (1591), enfatizou: “Quando o comando de homens ofende a majestade do Rei dos reis, não devemos obedecer”.
A Vindiciae contra tyrannos (1579), provavelmente escrita por Philippe du Plessis-Mornay, via o povo como parceiro essencial no pacto nacional. O corpo corporativo do povo está acima do rei, que deve pactuar com Deus e com o povo. A violação desse pacto justifica resistência.
O tratado questionava: reis estão acima da lei? Podem usar a propriedade do povo para seus fins? A resposta era clara: o Estado absoluto deve ser rejeitado. Assim, foi introduzido o conceito de “duplo pacto”, com Deus e o governante, que limitava o poder real e dava ao povo autoridade para resistir.
O impulso federalista e a constituição dos Estados Unidos
A compreensão reformada do pacto social manifestou-se plenamente nos Estados Unidos. Os puritanos, herdeiros do pensamento reformado, fundaram colônias com limites de mandatos, equilíbrio de poderes e responsabilidade eclesial. A base da sociedade americana era o protestantismo reformado, não o individualismo libertário ou o republicanismo clássico.
Os americanos do final do século XVIII não eram um povo centrado em ideias clássicas como individualismo, liberdade e igualdade, mas sim uma comunidade protestante reformada, profundamente dependente de uma cosmovisão cristã.
Essa perspectiva via o universo como ordenado pelo único Deus transcendente. Entre 1765 e 1785, a América era uma nação de comunidades protestantes rurais, e o termo “republicanismo” só ganhou conotações positivas a partir de 1776.
James Madison, influenciado por reformadores como Knox, via o governo como reflexo da depravação humana, conforme Os Artigos Federalistas (51): “Se os homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário”.
John Cotton, teólogo puritano, enfatizava a limitação do poder para evitar abusos: “Todo poder na terra deve ser limitado”. Ou seja, a identidade protestante foi essencial para a liberdade constitucional americana.
A noção hebraica de pacto ensinada por pregadores reformados teve impacto significativo entre as massas, rivalizando com a retórica dos direitos inalienáveis. Foram pregações bíblicas que nutriram a Revolução Americana.
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Reafirmação na atualidade
Descendentes espirituais destes, como Groen van Prinsterer e Abraham Kuyper, aplicaram essas ideias nos tempos modernos. Kuyper resumiu o impacto político da soberania de Deus em três teses fundamentais.
Primeiro, somente Deus, e nunca qualquer criatura, possui direitos soberanos sobre o destino das nações, pois foi Ele quem as criou, as sustenta por seu poder e as governa por suas ordenanças.
Segundo, o pecado desorganizou o governo direto de Deus na esfera política, razão pela qual a autoridade foi confiada aos homens como remédio provisório. Terceiro, em qualquer forma de governo, o homem só pode exercer poder sobre seu semelhante mediante a autoridade que lhe é concedida pela majestade divina.
Com base nisso, a fé reformada protesta contra a onipotência do Estado, contra a ideia de que não há direito acima das leis humanas e contra o orgulho do absolutismo que nega as garantias constitucionais.
Sua grandeza está em ter contido o despotismo, não pela força popular nem pela exaltação humana, mas afirmando que tanto a autoridade do governo quanto os direitos e liberdades sociais derivam da soberania absoluta de Deus.
Jurgen Moltmann, em Covenant or Leviathan? Political Theology for Modern Times, contrapõe a visão absolutista de Thomas Hobbes à tradição reformada da aliança. Para ele, a antropologia negativa do “Leviatã” gera tiranias, enquanto a teologia do pacto defende que o poder é limitado por Deus e pelo povo, fundamentando o direito de resistência e favorecendo estruturas democráticas e federativas.
Ele propõe uma teologia política fundada em alianças sociais, participação cidadã e liberdade responsável. Só assim é possível assegurar pluralismo sem cair no caos e promover unidade sem deslizar para a ditadura, oferecendo um horizonte político que integra fé, justiça e democracia como resposta às tentações totalitárias do Estado moderno.
Um legado duradouro
A análise de exemplos históricos do século XX demonstra que nem o materialismo, nem a defesa abstrata da liberdade ou da propriedade foram capazes de conter regimes totalitários como o nacional-socialismo ou o comunismo.
Foi a fé bíblica, em sua matriz reformada, que forneceu o fundamento transcendente necessário para limitar o poder absoluto e preservar a liberdade
Ao longo da história, a Reforma deixou um legado de bênçãos sociais e políticas, mostrando-se uma força civilizadora capaz de sustentar justiça e paz. Estados Unidos, Reino Unido, Suíça e Holanda foram, ou ainda são, exemplos dessa força. Essa constatação também corrige equívocos: não são os evangélicos os responsáveis pelo colapso moral ou pela violência social contemporânea.
Pelo contrário, o aumento de um engajamento político enraizado na fé cristã se apresenta como sinal de saúde pública e esperança para o futuro.
Assim, o desafio de nosso século é claro: onde essa herança é acolhida, as nações encontram não apenas liberdade política, mas também a bênção de uma ordem social orientada pela verdade.




