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Santo Agostinho, em ilustração de Hartmann Schedel para as Crônicas de Nuremberg (século 15).
Santo Agostinho, em ilustração de Hartmann Schedel para as Crônicas de Nuremberg (século 15).| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

O conceito da guerra justa (bellum iustum) visa garantir que uma guerra seja moralmente justificável por meio de uma série de critérios, todos os quais devem ser cumpridos para que um conflito militar seja considerado justo e moralmente aceitável. Em termos cristãos, o conceito foi desenvolvido por Agostinho de Hipona, e me sirvo aqui do resumo oferecido por Pedro Erik Carneiro, em seu livro Teoria e tradição da guerra justa: do Império Romano ao Estado Islâmico. Esta doutrina ética, elaborada por Agostinho, recebeu endosso e aprofundamento nos escritos de Isidoro de Sevilha, Alexandre de Hales, Tomás de Aquino, Francisco Suárez, Hugo Grotius, Reinhold Niebuhr e Nigel Biggar, entre outros.

Uma definição de guerra justa

Apesar de ser considerado o primeiro a elaborar uma teoria da guerra justa cristã, Agostinho não escreveu um livro específico sobre o assunto. As obras onde se encontra sua doutrina da guerra justa são trechos de seus livros Cidade de Deus e Contra Faustum e de suas cartas a Marcellinus e a Bonifácio. São nestes textos que Agostinho define a guerra justa e os critérios morais para a guerra, que ainda hoje são utilizados nos debates quanto à validade de um país entrar em um conflito. De acordo com Pedro Erik Carneiro, para Agostinho a guerra justa deve ser: 1. uma reação ao malfeito; 2. benigna asperitas, uma reação violenta, mas benigna, tal como quando o pai repreende o filho; 3. uma necessidade; 4. um ato de amor e misericórdia para com o inimigo; 5. algo feito para se alcançar a paz.

A Cidade de Deus

De acordo com Pedro Erik, talvez a melhor explicação para a necessidade de guerra justa esteja nas primeiras palavras da Cidade de Deus, em que Agostinho pergunta: “Não é, com efeito, da cidade terrestre que saem os inimigos contra quem se torna preciso defender a cidade divina?” A partir dessa pergunta, Agostinho inicia o livro para explicar que a Cidade de Deus prossegue apesar da impiedade humana, estabelecida na cidade terrena, que é “dominada pela paixão de dominar”.

Para Agostinho a guerra justa deve ser uma reação ao malfeito; benigna asperitas, uma reação violenta, mas benigna, tal como quando o pai repreende o filho; uma necessidade; um ato de amor e misericórdia para com o inimigo; e algo feito para se alcançar a paz

Agostinho diz que Deus usa as guerras para purificar e castigar os costumes corrompidos dos homens, mesmo sabendo que os justos também sofrerão os males da guerra: “[Os caluniadores da fé cristã] poderiam reconhecer a Providência, que se vale do flagelo da guerra para corrigir e pulverizar a corrupção humana e, atormentando com semelhantes aflições almas justas e meritórias, faz com que, depois da prova, passem a melhor destino ou as retém na Terra para outros desígnios”.

Agostinho disse que o governante sábio irá declarar guerras por necessidade, diante das injustiças humanas; mas, embora o governante sábio aprove estas guerras, ele o faz com pesar, lamenta as injustiças humanas e as destruições que as guerras trazem: “O sábio, acrescentam, há de travar guerras justas. Como se o sábio, cônscio de ser homem, não sentirá muito mais ver-se obrigado a declarar guerras justas, pois, se não fossem justas, não deveria declará-las e, portanto, para ele não haveria guerras! A injustiça do inimigo é a causa de o sábio declarar guerras justas. Semelhante injustiça... deve deplorá-la o homem... Quem tolera [os males da injustiça que gera guerras] e considera sem dor é muito mais miserável ao julgar-se feliz, porque perdeu o sentimento humano”.

Agostinho também repudiou totalmente a afirmação de que nações poderiam fazer guerra para a criação de impérios: “Mas talvez seja desagradável a bons homens lutarem com a mais perversa iniquidade e provocar com guerra voluntária nações vizinhas que são pacíficas e não cometem injustiça alguma, a fim de aumentar um reino? Se eles sentem isso, aprovo-os e louvo-os inteiramente”. A posição de Agostinho era de que uma guerra era justificada somente se uma nação havia atacado de modo agressivo os cidadãos pacíficos de outra nação.

E, finalmente, Agostinho discutiu exceções ao mandamento “não matarás”. Ao tratar dessa passagem, ele mostra apoio tanto às guerras justas quanto à pena de morte para criminosos, quando, para ambos os casos, a autoridade seguiu as leis e “a razão mais justa”: “A mesma autoridade divina estabeleceu, porém, certas exceções à proibição de matar alguém. Algumas vezes seja como lei geral, seja por ordem temporária e particular, Deus ordena o homicídio. Ora, não é moralmente homicida quem deve à autoridade o encargo de matar, pois não passa de instrumento, como a espada com que fere. Desse modo, não infringiu o preceito de quem, por ordem de Deus, fez guerra ou, no exercício do poder público e segundo as leis, quer dizer, segundo a vontade da razão mais justa, puniu de morte criminosos”.

Contra Faustum

Pedro Erik passa, então, a considerar o livro Contra Faustum, em que Agostinho reafirmou a importância da autoridade para determinar a necessidade da guerra. Agostinho disse que é em obediência aos preceitos de Deus ou de uma autoridade legalmente constituída que se faz guerra, para punir aqueles que têm amor pela violência e pelo poder. Agostinho diz que o mal das guerras não é a morte das pessoas. Os males das guerras são coisas como o amor pela violência e a ambição pelo poder: “Qual é o mal em guerra? Será a morte de alguns que irão morrer em breve, em qualquer caso, para que outros possam viver em paz? Isto é pura antipatia covarde, e não sentimento religioso. Os males reais em guerra são o amor pela violência, a crueldade vingativa, a inimizade feroz e implacável, a resistência selvagem, a ambição de poder, coisas dessa natureza; e geralmente é para punir essas coisas que é necessário aplicar a força para infligir o castigo, que, em obediência a Deus ou alguma autoridade legal, fazem bons homens empreender guerras”.

Além de defender a necessidade de uma autoridade legalmente constituída para se fazer a guerra, Agostinho ressalta a importância de que a intenção da guerra seja justa para que a guerra seja justa, e também fala que o soldado é inocente no ato de matar, pois sua profissão exige disciplina e obediência:

“Muitas coisas dependem das causas pelas quais os homens empreendem guerras, e da autoridade que eles têm para fazê-lo; a ordem natural que busca a paz da humanidade ordena que o monarca deveria ter o poder de empreender a guerra se ele acha conveniente, e que os soldados devem exercer as suas funções militares em nome da paz e da segurança da comunidade. Quando a guerra é realizada em obediência a Deus, que iria repreender, ou humilhar, ou esmagar o orgulho do homem, deve ser reconhecido que a guerra é justa; pois até mesmo as guerras que surgem do desejo humano não podem prejudicar o bem-estar eterno de Deus, nem ferir os seus Santos, uma vez que no julgamento da paciência deles, e na correção de seus espíritos, eles são mais beneficiados do que feridos, ao suportar a correção paterna... Pois não há poder que não venha de Deus (Romanos 13,1), que ordena e permite. Assim, portanto, um homem justo, servindo ao que pode ser um rei ímpio, pode fazer seu dever diante de sua posição no Estado, lutando sob as ordens de seu soberano, em alguns casos é claramente a vontade de Deus que ele deva lutar, e em outros, onde isso não é tão simples, pode ser um comando injusto por parte do rei, enquanto o soldado é inocente, porque a sua posição exige a obediência.”

Em seguida, Agostinho elabora o ensino de que a paz está no coração dos homens, respondendo aos pacifistas que usam a passagem em que o Senhor Jesus diz oferecer a outra face como base de argumentação: “Se for para se supor que Deus não ordena que se faça guerras porque depois de algum tempo nosso Senhor Jesus Cristo disse: ‘Eu digo a vocês, não resista ao mal; mas àquele que te fere na face direita oferece-lhe também a esquerda’? A resposta é que o que é aqui requerido não é uma ação física, mas uma disposição interior. A virtude sagrada se assenta no coração, assim era o coração de nossos pais, os corretos homens de antigamente”.

Além de defender a necessidade de uma autoridade legalmente constituída para se fazer a guerra, Agostinho ressalta a importância de que a intenção da guerra seja justa para que a guerra seja justa

Ou seja, Agostinho sistematizou a noção de jus ad bellum, a “justiça da guerra”, as circunstâncias em que as guerras podem ser travadas com justiça, oferecendo um dispositivo ético para guiar os soberanos justos, que garantiriam que os efeitos de conflitos violentos contra outros soberanos injustos fossem mínimos, um reflexo da vontade de Deus na medida do possível, e sempre moralmente justificada. Mas também sistematizou o jus in bello, a “justiça na guerra”, as considerações morais que devem restringir o uso da violência na guerra, um dispositivo ético para guiar os combatentes justos que, por decreto divino, não têm escolha a não ser se sujeitarem a seus líderes políticos e militares numa guerra, e que procura garantir que eles executem seu dever como militares em combate da maneira mais justa possível.

As cartas a Marcellinus e Bonifácio

Pedro Erik aborda a Carta a Marcellinus, na qual Agostinho novamente ressaltou que a paz vem do coração do homem. Agostinho oferece uma interpretação de João 18,23, em que Cristo não oferece a outra face em uma situação real, e de Atos 23,3-5, que relata o episódio em que um sumo sacerdote ordena que seus assistentes que batam na boca de Paulo, ocasião em que o apóstolo reage, dizendo ao sumo sacerdote: “Deus vai ferir-te a ti, parede caiada! Tu te sentas para julgar-me segundo a Lei, e violando a Lei ordenas que me batam?”

Agostinho também elaborou nessa carta a ideia de que a guerra pode ser uma reação de “severidade benevolente” (benigna asperitas), ou seja, a guerra seria uma correção de um erro feito por agressor injusto. Nesse sentido, a guerra justa pode ser comparada à correção de um pai a um filho que cometeu um erro. Esta abordagem da guerra como uma severidade benevolente tem sido considerada a pedra fundamental da teoria da guerra justa cristã, pois dessa abordagem se depreende que a guerra pode trazer justiça e caridade. Além de poder ser uma benevolente severidade, para Agostinho a guerra pode ser também um ato de misericórdia:

“Muitas coisas devem ser feitas na correção com uma certa severidade benevolente, mesmo contra seus próprios desejos... as Escrituras cristãs têm de forma inequívoca ressaltado esta virtude do magistrado. Pois na correção de um filho, mesmo com alguma severidade, não há seguramente nenhuma diminuição do amor de um pai... E neste princípio, se a comunidade observa os preceitos da religião cristã, até mesmo nas suas próprias guerras, elas não serão exercidas sem a intenção benevolente que, depois de as nações que resistem terem sido conquistadas, temos condições mais amigáveis de desfrutar em paz a ligação mútua de piedade e de justiça... Quando Deus destrói o caminho dos vícios e reduz as paixões que foram amamentadas em abundância, Ele age de forma misericordiosa, também, até mesmo guerras podem ser travadas para o bem, para aniquilar as paixões desenfreadas dos homens.”

E, de acordo com Pedro Erik, na Carta a Bonifácio Agostinho nos traz o aspecto teleológico da guerra, ou seja, a guerra deve ser feita na busca pela paz. Agostinho diz que a guerra deve ser travada apenas como uma necessidade. Pois a paz não é procurada para que se façam guerras, mas a guerra é feita a fim de que a paz possa ser obtida.

As bem-aventuranças

Por fim, Pedro Erik aborda os comentários de Agostinho sobre as bem-aventuranças. Esses comentários são relevantes, pois as bem-aventuranças são usadas por pacifistas para condenar a guerra completamente, especialmente a terceira e a sétima bem-aventuranças: “bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra” e “bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus”. A análise que Santo Agostinho faz das bem-aventuranças não está relacionada diretamente com a guerra, mas tem relação com o pecado e com a salvação humana.

Ao comentar sobre a bem-aventurança dos mansos, Agostinho disse que a “terra” é aquela do Salmo 142,5, que diz: “Tu és o meu refúgio, o meu quinhão na terra entre os vivos”. De acordo com a interpretação de Agostinho, a bem-aventurança significa certa firmeza e estabilidade da herança perpétua, onde a alma, por meio de uma boa disposição, repousa. Então, os mansos são aqueles que superam o mal com o bem. Eles não lutam por coisas terrenas e herdarão aquelas terras das quais nunca poderão ser expulsos.

Agostinho sistematizou o jus ad bellum, a “justiça da guerra”, as circunstâncias em que as guerras podem ser travadas com justiça; mas também sistematizou o jus in bello, a “justiça na guerra”, as considerações morais que devem restringir o uso da violência na guerra

Sobre a bem-aventurança dos pacíficos, Agostinho os definiu como aqueles que dominam as emoções da alma, subjugando os desejos com a razão e controlando os instintos animais. Dessa forma, eles herdarão o Reino de Deus. Esse controle só é possível quando o homem se sujeita a Deus, pois o homem não consegue dominar os desejos inferiores se ele não se sujeita a algo superior. Quando esta paz interior é encontrada, na graça de Deus, o homem é filho de Deus.

Conclusão

O resumo da compreensão de guerra justa em Agostinho, como esboçado por Pedro Erik Carneiro, é só um aperitivo do rico debate ético e moral que é oferecido em sua obra, muito bem documentada e persuasiva. Pois, como Rory Cox escreve em Historical Just War Theory up to Thomas Aquinas, “Agostinho não foi o primeiro escritor cristão a justificar a guerra, nem criou uma teoria sistemática da guerra justa. No entanto, ao enfatizar as condições clássicas de justa causa [da guerra] e autoridade adequada [para declarar a guerra], bem como, crucialmente, a preocupação mais cristã de uma disposição caridosa (intenção correta) [daqueles que travam uma guerra], Agostinho forneceu aos escritores posteriores uma estrutura dentro da qual a legitimidade de guerras específicas poderia ser avaliada”. Paul Copan e Matthew Flannagan, em Deus realmente ordenou o genocídio?, após esboçar e desenvolver os critérios bíblicos e teológicos para uma guerra justa, concluem lembrando que “Dietrich Bonhoeffer havia sido um pacifista, mas passou a rever sua posição à luz dos males horríveis sendo cometidos por Hitler [na Alemanha e no restante da Europa]. E [...] o mesmo se aplica a Miroslav Volf, que passou do pacifismo a uma visão de guerra justa após ver a devastação de seu próprio país, a Croácia, as mulheres croatas sendo estupradas e muitos de seus habitantes, mortos ou expulsos”. Portanto, concluem, “adotar uma posição de guerra justa em face de ‘agressão intolerável’ é uma extensão da obrigação de amar o próximo ‘quando a vida desse próximo’ está sendo ameaçada por terceiros”.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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