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Detalhe de “Tomás de Aquino”, de Bartolomé Esteban Murillo.
Detalhe de “Tomás de Aquino”, de Bartolomé Esteban Murillo.| Foto: Reprodução/Domínio público

Como tratado em um artigo anterior, o conceito da guerra justa (bellum iustum) almeja garantir que uma guerra seja moralmente justificável por meio de uma série de critérios, todos os quais devem ser cumpridos para que um conflito militar seja considerado justo e moralmente aceitável. Nesse artigo, abordo o conceito de guerra justa nos escritos de Tomás de Aquino, seguindo a síntese oferecida por Pedro Erik Carneiro, em seu livro Teoria e tradição da guerra justa: do Império Romano ao Estado Islâmico. Em sua obra mais importante, a Suma Teológica, em que Tomás une a tradição da lei natural com a ética bíblica, ele estabelece critérios do jus ad bellum, a “justiça da guerra”, a motivação específica que leva um determinado Estado a declarar guerra, e o jus in bello, a “justiça na guerra”, a forma como se comporta e se conduz na guerra.

De acordo com Pedro Erik, Tomás de Aquino escreveu sobre a guerra na Questão 40, da Parte II-II da sua Suma Teológica, respondendo em quatro artigos a quatro perguntas: 1. se é sempre pecado fazer guerra; 2. se clérigos podem participar de conflitos armados; 3. se os soldados em guerra podem fazer emboscadas; e 4. se é permitido fazer guerra em dias santos. Além disso, algumas outras questões tratadas na Suma Teológica são relevantes, como a Questão 64, em que ele discutiu quando é lícito matar e na qual apresenta o Princípio do Duplo Efeito; e a Questão 108, na qual ele expôs sua compreensão sobre a vingança.

Quatro artigos da Suma Teológica

No primeiro artigo, segundo Pedro Erik, Tomás respondeu às objeções que usam Mateus 26,52 (“Todos os que lançam mão da espada à espada perecerão”), Mateus 5,39 (“Não resistam ao perverso”) e Romanos 12,19 (“Não façam justiça com as próprias mãos, mas deem lugar à ira de Deus”). Tomás ensinou que a guerra só deve ser declarada por uma causa justa. Assim, ele argumentou, com base em Agostinho de Hipona, que a guerra justa possui três características que a tornam legítima: “1. autoridade [acturitas] do príncipe [legítimo] para determinar a necessidade da guerra; 2. causa justa [causa iusta], [ou seja,] aqueles que são atacados merecem sofrer punição, pois cometeram malfeitos; 3. intenção justa [recta intentio] [isto é,] avançar o que é bom, evitar e conter o mal”.

Segundo Tomás de Aquino, por vezes deve-se agir contra o mal em nome do bem comum ou pelo bem do próximo, mencionando a ideia da ação “severa benevolente”, como ensinou Agostinho, para com os inimigos

Desse modo, de acordo com Pedro Erik, ao responder a objeção que usa Mateus 26,52, Tomás disse que Cristo condenou quem usa sua espada sem a ordem de uma autoridade legitimamente constituída. E que nem todos que usam de modo pecaminoso a espada morrem pela espada, mas sempre são condenados eternamente por Deus pelo uso ilegítimo que fizeram das armas. Ou seja, Cristo estava falando desta condenação em Mateus 26,52. Para responder ao pacifista que usa Mateus 5,39 e Romanos 12,19, Tomás diz que todos devem resistir ao mal, mas por vezes deve-se agir contra o mal em nome do bem comum ou pelo bem do próximo, mencionando a ideia da ação “severa benevolente”, como ensinou Agostinho, para com os inimigos. Ele também ressalta que o objetivo da guerra deve ser a paz, pois “aqueles que travam uma guerra justa almejam a paz, eles não se opõem à paz, a não ser à paz maligna”. Assim, antes de se declarar guerra baseada numa causa justa, deve ser feita uma oferta de paz.

No segundo artigo, de acordo com o esboço de Pedro Erik, a resposta de Tomás foi negativa, ou seja, os clérigos não devem participar de guerras, pois esta vocação é inconsistente com o derramamento de sangue. Para ele, as atividades militares são completamente incompatíveis com os deveres de um bispo e um clérigo, por duas razões: a primeira razão é geral, porque atividades militares estão cheias de inquietação, de modo que elas impedem a contemplação das coisas divinas, o louvor a Deus e as orações, que pertencem aos deveres de um clérigo. Ele cita 2Timóteo 2,4, que diz que “nenhum soldado [de Cristo] em serviço se envolve em negócios desta vida”. A segunda razão é especial, porque os clérigos são direcionados para o ministério do altar, sobre o qual a Paixão de Cristo é representada sacramentalmente. Portanto, é impróprio para os clérigos matar ou derramar sangue. Na verdade, é mais apropriado que eles estejam prontos para derramar o seu próprio sangue por Cristo, de modo a imitar em obras o que retratam no seu ministério.

Para Pedro Erik, no terceiro artigo, com relação a emboscadas, Tomás disse que é sempre pecado quebrar promessas, mesmo promessas feitas a inimigos. Mas é lícito enganar o inimigo com ações bélicas. A emboscada se trata de meramente reter informações e conhecimentos de um inimigo. Dessa forma, não se trata propriamente de engano e não pode ser considerado injusto. E, no quarto artigo, Tomás de Aquino respondeu positivamente, ou seja: se necessário, uma guerra pode ser feita em dias sagrados. Ele cita 1Macabeus 2,41, “mesmo que nos ataquem em dia de sábado, pugnaremos contra eles e não nos deixaremos matar a todos nós, como o fizeram nossos irmãos no seu esconderijo”; e João 7,23, “se um menino pode ser circuncidado em dia de sábado, para que a Lei de Moisés não seja desrespeitada, por que vocês ficam indignados contra mim, pelo fato de eu ter curado por completo um homem num sábado?”, para apoiar seu argumento em favor da possibilidade de guerra em dias sagrados.

Quando é lícito matar

De acordo com Pedro Erik, Tomás, ao tratar do mandamento “não matarás”, na Questão 64, da Parte II-II, de sua Suma Teológica, analisou se e quando é lícito matar um pecador. Para argumentar pela possível licitude do ato de matar, ele teve de responder à objeção que usou a parábola de Mateus 13,24-30, na qual Cristo relata que o joio apareceu junto da plantação de trigo e finaliza dizendo: “Deixem que cresçam juntos até a colheita. E, no tempo da colheita, direi aos ceifeiros: ‘Ajuntem primeiro o joio e amarrem-no em feixes para ser queimado; mas recolham o trigo no meu celeiro’”. A objeção baseada na parábola de Jesus sugere que não se deve matar o pecador nunca, pois o joio deve crescer junto do trigo. Tomás respondeu fazendo uma analogia com o corpo humano, e afirmando que a parábola ressalta o julgamento final:

“Cada parte é direcionada para o todo, como o imperfeito para o perfeito, pois cada parte é, naturalmente, para o bem do todo. Por esta razão, observa-se que se a saúde de todo o corpo exige a eliminação de um membro, porque ele está deteriorado ou infeccioso para os outros membros, será tanto louvável e vantajoso que o membro seja cortado. Agora, cada indivíduo é comparado a toda a comunidade, como parte de todo. Portanto, se um homem é perigoso e infeccioso à comunidade, por causa de algum pecado, é louvável e vantajoso que ele seja morto, a fim de salvaguardar o bem comum, uma vez que ‘um pouco de fermento corrompe toda a massa’ (1Co 5,6).

Nosso Senhor ordenou-lhes que deixem de arrancar o joio do trigo, a fim de poupar o trigo, ou seja, o bom. Isso ocorre quando os ímpios não podem ser mortos sem que o bom também seja morto, ou porque o mal está dentro do bom, ou porque o mal tem muitos seguidores, assim eles não podem ser mortos sem perigo para o bem, como diz Agostinho. Portanto, Nosso Senhor ensina que devemos sim permitir que os ímpios vivam, e que a vingança deve ser adiada até o último julgamento, ao invés de que o bom seja condenado à morte, juntamente com os ímpios. Quando, no entanto, os bons não incorrem em perigo, mas são protegidos e salvos pela morte do ímpio, então estes podem ser legalmente condenados à morte.”

Na busca da justiça, a boa intenção de um ato moral poderia justificar consequências negativas, como a morte de um assaltante ou a morte de inocentes em meio a uma guerra

A esse respeito, de acordo com Gregory Reichberg, uma distinção bastante nítida foi feita entre as diferentes causas de uma guerra justa. Uma guerra travada para repelir um ataque armado injustificado seria classificada na categoria de “defesa”. O envolvimento nesse tipo de guerra não exigiria a permissão da autoridade máxima legítima do reino, como um príncipe ou rei, pois qualquer um, seja duque, magistrado ou mesmo uma pessoa comum, poderia recorrer à força defensiva em circunstâncias de necessidade. Limitações bastante estritas foram colocadas, no entanto, sobre o que poderia ser feito em nome da defesa, especialmente quando realizada por iniciativa de um oficial subalterno ou uma pessoa. Tal ação poderia ser empregada apenas na ausência de outras opções viáveis, principalmente se as restrições de tempo impedissem o contato com o superior ou este fosse incapaz de responder rapidamente à ameaça. Deveria ser exercida “no calor do momento” (incontinenti), ou seja, simultaneamente com o ataque ou imediatamente antes dele (se por sinais manifestos o ataque fosse considerado iminente), e em estrita observância de proporcionalidade. Mais importante ainda, uma pessoa ou grupo agindo em legítima defesa não teria a permissão para buscar reparação por erros do passado ou punir os infratores. Perseguir esses objetivos pela guerra era prerrogativa exclusiva do príncipe, a autoridade legítima suprema do país. E, na mesma Questão 64, Tomás argumentou, como seria de se esperar, que é pecado matar um inocente.

O Princípio do Duplo Efeito

Ainda na Questão 64, Tomás apresenta o relevante Princípio do Duplo Efeito, ou seja, qualquer ato moral pode ter mais de um efeito – tanto bom quanto ruim. De acordo com Pedro Erik, este princípio é usado por teólogos e estudiosos de guerra que, por exemplo, mesmo defendendo que na Segunda Guerra Mundial o conflito dos Estados Unidos e do Reino Unido contra o Japão foi justo, observam que este princípio determina que foi moralmente errado os Estados Unidos lançarem bombas atômicas em agosto de 1945, em duas cidades daquele país, com isso condenando os ataques atômicos contra o Japão. Mas estes debates estão além do escopo desse artigo. Aqui cabe definir como Tomás apresentou o Princípio do Duplo Efeito na Questão 64, Artigo 7, quando analisa se é lícito matar em defesa própria:

“Nada impede que um ato tenha dois efeitos, apenas um dos quais se tem a intenção, enquanto o outro não é intencional. Agora, atos morais tomam as duas espécies de acordo com o que se pretende, e não de acordo com o que não é intencional, uma vez que este é acidental... Por conseguinte, o ato de autodefesa pode ter dois efeitos: um é salvar a própria vida, enquanto o outro é a morte do agressor. Por isso este ato de matar em autodefesa, uma vez que a intenção da pessoa é salvar a própria vida, não é ilegal, uma vez que é natural de tudo manter-se em ‘ser’, na medida do possível. E, embora provenha de uma boa intenção, um ato pode se tornar ilícito, se é fora de proporção. Portanto, se um homem, em defesa própria, usa mais de violência necessária, será ilícito: contudo se ele repelir a força com moderação sua defesa é lícita.”

Como resume Pedro Erik, na busca da justiça, a boa intenção de um ato moral poderia justificar consequências negativas, como a morte de um assaltante ou a morte de inocentes em meio a uma guerra. Mas é importante ressaltar que Tomás não usou o termo “Duplo Efeito”, ainda que sua justificativa de matar em legítima defesa, por exemplo, tenha se baseado essencialmente nesse conceito.

Sobre a vingança

Para Pedro Erik, é relevante também, em se tratando de um debate sobre a moral da guerra, apresentar a compreensão de Tomás de Aquino sobre o ato da vingança. Também na Parte II-II, mas na Questão 108, Tomás se posicionou dizendo que a vingança não é má em si; deve-se saber a intenção de quem se vinga.

“Se a intenção é direcionada principalmente para o mal da pessoa de quem ele se vinga, então a vingança é totalmente ilegal: porque ter prazer no mal do outro pertence ao ódio, é contrário à caridade pela qual estamos ligados a amar todos os homens. Também não é uma desculpa que ele pretende o mal de alguém que tem infligido injustamente mal sobre ele, pois não é justificativa dizer que odeia alguém porque este o odeia, um homem não pode pecar contra outro só porque este último já pecou contra ele, pois assim se estaria se deixando que o mal vença, o que foi proibido pelo Apóstolo, que diz (Rm 12,21): ‘Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem’. Se, entretanto, a intenção do vingador é direcionada principalmente para algum bem, a ser obtido por meio da punição da pessoa que pecou (por exemplo, para que o pecador possa se recuperar, ou pelo menos que ele possa ser contido e outros não sejam perturbados, que a justiça possa ser feita e Deus honrado), então a vingança pode ser legal”.

No artigo seguinte Tomás elabora que a vingança justa poderia ser mais do que simplesmente lícita; poderia ser uma virtude, classificando a vingança ou represália entre as virtudes relacionadas com a justiça. De acordo com ele, seria possível argumentar que a vingança justa é retribuição, e é lícita na medida em que é feita no espírito correto e da maneira certa.

“Como diz o Filósofo, nós temos por natureza a aptidão para a virtude, embora ela se complete pelo costume ou por alguma outra causa. Por onde, é claro que as virtudes nos aperfeiçoam, fazendo-nos seguir, do modo devido, as inclinações naturais compreendidas no direito natural. Por onde, a cada inclinação natural determinada se ordena uma virtude especial. [...] A natureza tende, por essência, a remover o que lhe é nocivo [...]. Ora, removemos o que nos danifica evitando que os outros nos injuriem ou vingando as injúrias feitas. Não com a intenção de fazer mal a outrem, mas com a de removermos o dano. Mas, esse é o objeto da vingança.

[...] A punição dos pecados, [...] quando respeita à imunidade de um particular, que repele a injuria, constitui o objeto da virtude da vingança. [...] A fortaleza dispõe para a vingança, removendo o obstáculo, que é o temor de um perigo iminente. Ao passo que o zelo, implicando o devotamento do amor, é primariamente a raiz da vingança, levando-nos a vingar as injúrias feitas a Deus e aos próximos, as quais a caridade nos faz considerar como nossas. Pois, a raiz de toda virtude é a caridade [...]. Ora, a virtude da vingança consiste – em conservarmos, em todas as circunstâncias, a moderação devida, ao castigar”.

De acordo com Tomás de Aquino, seria possível argumentar que a vingança justa é retribuição, e é lícita na medida em que é feita no espírito correto e da maneira certa

A famosa obra O Conde de Monte Cristo, um romance de aventura francês escrito por Alexandre Dumas e publicado entre 1844 e 1846, seria um exemplo de uma vingança justa no espírito tomista.

Uma definição da paz

Finalmente, para concluir o resumo de Pedro Erik Carneiro da compreensão de guerra justa em Tomás de Aquino, tão importante como ver como Tomás definiu e discutiu a guerra é ver como ele definiu a paz, que está relacionada ao jus post bellum, que seria a forma com que um Estado age após o término do conflito. Seria a paz o contrário da guerra? Tomás analisou o que é paz na Parte II-II, Questão 29, da Suma Teológica:

“Quando há paz, há concórdia, mas paz não é simplesmente concórdia, pode haver concórdia sem haver paz; Como Agostinho explicou: ‘paz é a concórdia em boa ordem’ ou ‘paz é a tranquilidade da ordem’; Duas dissensões podem se opor à paz: 1. entre o homem e ele mesmo; 2. entre os homens; Paz é a união dos apetites intelectuais, animais e naturais; Não existe paz quando os apetites não são direcionados para o verdadeiro bem; A verdadeira paz é perfeita quando está em união com Deus. Quando ocorre neste mundo, a paz pode existir, mas é de forma imperfeita, que será perfeita quando a alma descansar em Deus; a verdadeira paz só existe com a graça divina. Sem a graça divina, a paz é apenas aparente; paz é resultado de justiça e caridade. A paz é fruto indireto da justiça, à medida que a justiça remove os obstáculos para que se atinja a paz. E a paz é fruto direto da caridade, uma vez que está na natureza da caridade trazer a paz.”

A verdadeira e perfeita paz com os outros homens e consigo mesmo está em Deus. Os seres humanos devem unir justiça com caridade e pedir pela graça divina para que se obtenha uma paz que seja o máximo espelho da paz que se encontrará no Paraíso

Com estas definições, Tomás mostrou que a paz não é o contrário de guerra, nem mesmo podendo ser confundida com o alcance de um acordo entre as partes em conflito. A verdadeira e perfeita paz com os outros homens e consigo mesmo está em Deus. Os seres humanos devem unir justiça com caridade e pedir pela graça divina para que se obtenha uma paz que seja o máximo espelho da paz que se encontrará no Paraíso, o “novo céu e nova terra [...] a cidade santa, a nova Jerusalém”, que descerá “do céu, da parte de Deus” (Ap 21,1-2).

Portanto, encerremos com as palavras de Rory Cox: “Embora muito mais possa ser dito sobre a análise da guerra [justa] de Tomás de Aquino, é verdade que sua maior contribuição para o desenvolvimento da doutrina da guerra justa (que não foi realmente sentida até o século 15) foi sua eficiente sistematização dos principais temas e problemas [...]. Além disso, sua ênfase no papel da justiça e da lei natural se tornaria cada vez mais central para o desenvolvimento do pensamento da guerra justa a partir do século 16. Somente por essas contribuições, Tomás de Aquino merece um lugar de destaque na história da doutrina da guerra justa” e seus argumentos se tornaram base do ensino do catecismo católico sobre esse tema.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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