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“O primeiro Dia de Ação de Graças em Plymouth”, de Jennie Brownscombe.
“O primeiro Dia de Ação de Graças em Plymouth”, de Jennie Brownscombe.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

O Dia de Ação de Graças é comemorado todos os anos na quarta quinta-feira de novembro. Apesar de não ser popular no Brasil, nos Estados Unidos é comemorado há 400 anos, sendo um feriado quase tão importante quanto o Natal. Thanksgiving, em inglês, é to give thanks, ou seja, “dar graças”. No Brasil, a expressão comum seria “dar graças a Deus”, por isso a tradução de “Thanksgiving Day” ser Dia de Ação de Graças. Essa é uma compreensão bem ligada ao ensino cristão do dom da graça, que é uma concessão exclusiva de Deus aos homens e que os leva a receber a salvação. Assim, o Dia de Ação de Graças é um dia de agradecimento a Deus, em que as famílias se reúnem e recordam – com gratidão a Deus – as coisas boas concedidas por Ele ao longo do ano.

A origem do Dia de Ação de Graças está relacionada ao movimento puritano, que entendia que a Igreja da Inglaterra era uma “igreja reformada pela metade” e esperava por mais mudanças, sobretudo na esfera do culto público e da estrutura eclesiástica. Dentro desse movimento, surgiram os puritanos separatistas, que queriam se separar da Igreja da Inglaterra e fundar uma igreja “mais pura”. Eles foram perseguidos pelos arcebispos da Cantuária, durante os reinados de Elizabeth I e James I, e emigraram para a república da Holanda, onde desfrutavam de liberdade de culto. Mas os puritanos separatistas ingleses decidiram deixar Leiden, na Holanda, e emigrar para as colônias britânicas no Novo Mundo. Com isso, 102 puritanos separatistas embarcaram no navio Mayflower e, depois de 65 dias de muitas lutas e desafios, desembarcaram em novembro de 1620, na área que seria conhecida como Colônia de Plymouth, em Massachusetts, na Nova Inglaterra.

Hoje os passageiros do Mayflower são conhecidos como “peregrinos”. O termo foi derivado de uma passagem no diário de William Bradford, escrito anos depois, descrevendo a saída da Holanda como uma peregrinação, numa alusão à Epístola aos Hebreus: “Todos estes morreram na fé. Não obtiveram as promessas, mas viram-nas de longe e se alegraram com elas, confessando que eram estrangeiros e peregrinos na terra” (Hb 11,13). E o primeiro ato dos puritanos ao chegar às colônias foi cantar a Deus o Salmo 100: “Celebrem com júbilo ao Senhor, todas as terras. Sirvam ao Senhor com alegria, apresentem-se diante dele com cântico. Saibam que o Senhor é Deus; foi ele quem nos fez, e dele somos; somos o seu povo e rebanho do seu pastoreio. [...] O Senhor é bom, a sua misericórdia dura para sempre”.

O Dia de Ação de Graças é um dia de agradecimento a Deus, em que as famílias se reúnem e recordam – com gratidão a Deus – as coisas boas concedidas por Ele ao longo do ano

Mas os puritanos separatistas acabaram por enfrentar um outono e inverno muito rigorosos, e metade dos moradores da colônia faleceu. Durante o pior momento do inverno, apenas seis ou sete membros do grupo conseguiam alimentar e cuidar dos sobreviventes. Mas, no ano seguinte, houve boas colheitas e, por ordem do governador da colônia, William Bradford, uma festa de Ação de Graças foi marcada para o início do outono de 1621, reunindo 53 colonos ingleses sobreviventes e 90 nativos da tribo Wampanoag. Nessa refeição comunitária, onde todos se reuniram para comer ao ar livre, foram servidos pratos com milho, peixes, patos e perus. Desde então, a festa tornou-se tradicional nos Estados Unidos. O Dia de Ação de Graças foi eleito dia festivo pelo presidente Abraham Lincoln, em 1863, mas apenas em 1941 a data passou a ser feriado nacional, celebrada desde então nos EUA com refeições em família – onde é servido peru, recheio de farofa, purê de batatas, molho de carne, milho e torta de abóbora –, desfiles, jogos e tempo para orações e expressões de agradecimento pela boa providência de Deus, quando todos os participantes da refeição são convidados a expressar pelo que são especialmente gratos naquela noite.

William Bradford, nascido Austerfield, West Riding de Yorkshire, em 1590, se juntou à igreja dos puritanos separatistas liderada pelo reverendo John Robinson em Scrooby Manor, na Inglaterra. Depois, se uniu ao grupo dessa igreja que emigrou para a Holanda e para as colônias americanas no Mayflower. Ele foi eleito governador da Colônia de Plymouth em 1621, e ocupou o cargo de forma intermitente até sua morte, em 1657. Ele escreveu uma narrativa do primeiro Dia de Ação de Graças, registrada na obra A história da plantação de Plymouth, que cobre o período de 1620 e 1646, da qual é tirado o trecho que se segue, e que se tornou um importante documento da história da Nova Inglaterra. O texto em português, publicado aqui, se encontra em Documentos Históricos dos Estados Unidos, organizado por Harold Syrett.

A história da plantação de Plymouth

... Depois de passar longo tempo no mar, toparam com a terra chamada Cabo Cod; a qual, tendo sido encontrada e reconhecida com certeza, os encheu de contentamento. Depois de terem deliberado um pouco entre si e com o capitão do navio [o mestre Christopher Jones], viraram de bordo e resolveram rumar para o sul (sendo o vento e o tempo favoráveis) a fim de encontrar algum lugar à beira do Rio Hudson para sua habitação. Mas depois de terem singrado nesse rumo durante metade do dia, viram-se no meio de perigosas e atroadoras ondas de rebentação, e estavam ali tão embaraçados que se supunham em grande perigo; e como o vento, por outro lado, deixasse de soprar sobre eles, resolveram rumar de novo para o Cabo e julgaram-se felizes por safar-se desses perigos antes que a noite os alcançasse, o que, querendo a providência de Deus, conseguiram. E no dia seguinte entraram no fundeadouro do Cabo, onde ficaram em segurança...

Tendo assim chegado a bom porto e desembarcado seguros em terra, caíram de joelhos e deram graças a Deus do céu, que os trouxera por sobre o vasto e furioso oceano, e os livrara de todos os perigos e misérias dele, para que pudessem novamente pôr os pés em terra firme e estável, seu elemento próprio.

[...]

Nesses princípios duros e difíceis, encontraram descontentamentos e murmurações entre alguns, e falas e atitudes sediciosas em outros; mas estes foram logo debelados e superados pela sabedoria, pela paciência, e pela direção justa e igual das coisas por parte do Governador [John Carver] e seus auxiliares, que se mantiveram fielmente juntos, de um modo geral. Mas o mais triste e lamentável foi que, no espaço de dois ou três meses, metade da companhia morreu, especialmente em janeiro e fevereiro, quando o inverno estava no auge e havia falta de casas e outros confortos; estando os homens atacados de escorbuto e outras moléstias, que a longa viagem e sua incômoda situação lhes acarretaram; desse modo, como morriam, às vezes, dois a três por dia, na supradita ocasião; de cento e tantas pessoas, mal sobraram 50. E destas, no tempo de maior aperto, havia apenas seis ou sete sadias, as quais, seja dito em seu louvor, não se furtaram a trabalhos, nem de dia nem de noite, mas com abundância de lidas e risco da própria saúde, foram buscar lenha para os doentes, fizeram fogueiras para eles, cozinharam-lhes carne, fizeram-lhes as camas, lavaram suas roupas nauseabundas, vestiram-nos e despiram-nos; numa palavra, realizaram todos os trabalhos grosseiros e necessários que os que têm estômagos delicados e sensíveis não suportam sequer ouvir nomeados; e tudo isso de bom grado e boa cara, sem a menor relutância, mostrando neste ponto o amor verdadeiro que consagravam aos amigos e irmãos. [...] E, todavia, o Senhor sustentou de tal maneira essas pessoas que, no meio da calamidade geral, não se deixaram infeccionar por moléstias nem por quebradeiras. E o que eu disse deles, posso estender a muitos outros que morreram nessa aflição geral, e a outros que ainda vivem, pois enquanto tiveram saúde, ou ainda tinham alguma força, não faltaram aos que deles necessitavam. E não duvido de que sua recompensa esteja com o Senhor.

Mas não posso deixar de referir aqui outra passagem notável que não se há de esquecer. Como essa calamidade surgiu entre os passageiros que deviam ser deixados aqui para plantar e foram desembarcados à pressa na praia… [...] Ora, a doença começou a alastrar-se entre os tripulantes também, de modo que quase metade da companhia morreu antes que o navio partisse dali, como aconteceu a muitos oficiais e homens mais vigorosos, como o contramestre, o artilheiro, três intendentes, o cozinheiro e outros. [...] Mas entre os da sua companhia surgiu então outro tipo muito diferente de atitude na miséria que afligia os passageiros; porque os que tinham sido antes bons companheiros na bebida e nas reuniões alegres no tempo da saúde e do bem-estar começaram a desertar uns dos outros nesta calamidade, dizendo não querer arriscar suas vidas por eles, pois se tornariam infectados se fossem ajudá-los em suas cabinas, mesmo porque, depois que eles tivessem morrido por causa disso, pouco ou nada fariam por eles e, portanto, se tivessem de morrer, que morressem. Mas os passageiros que ainda se achavam a bordo lhes deram as mostras que puderam de misericórdia, o que abrandou alguns corações, como o contramestre (e outros), moço orgulhoso, que frequentemente insultava e escarnecia os passageiros; mas quando ficou fraco, os demais, compadecidos, ajudaram-no; e ele confessou que não merecia ser tratado assim, uma vez que os maltratara por palavras e atos. Vejo agora, disse ele, que mostrais realmente vosso amor de cristãos uns aos outros, mas nós nos deixamos uns aos outros jazer e morrer como cães...

O primeiro ato dos puritanos ao chegar às colônias foi cantar a Deus o Salmo 100: “Celebrem com júbilo ao Senhor, todas as terras. Sirvam ao Senhor com alegria, apresentem-se diante dele com cântico”

Durante todo esse tempo, os índios se esgueiravam sorrateiramente por ali e, às vezes, mostravam-se à distância, mas, quando alguém se aproximava, punham-se a correr. E, de uma feita, roubaram os instrumentos dos homens, onde estes tinham estado trabalhando e de onde se tinham ausentado para jantar. Mas lá pelo dia 16 de março, surgiu ousadamente entre eles certo índio e falou-lhes num inglês estropiado, mas que eles compreenderam muito bem, embora se maravilhassem disso. Por fim, interrogando-o, acabaram compreendendo que ele não era daquelas partes, mas pertencia às partes orientais, visitadas por alguns navios ingleses que lá tinham ido para pescar, e que ele ficara conhecendo, podendo nomear vários pelo nome, e com os quais aprendera a língua que falava. Esse índio lhes foi muito útil, familiarizando-os com inúmeras coisas relativas ao estado do país nas partes orientais em que vivia, o que se revelou mais tarde proveitoso para eles; e também com o povo daqui, seus nomes, seu número e sua força; sua situação e distância daquele lugar, e quem era seu chefe. Chamava-se Samaset; falou-lhes também de outro índio chamado Squanto, nativo daquele lugar, que estivera na Inglaterra e falava inglês melhor do que ele. Dispensado, após algum tempo de entretenimento e troca de presentes, voltou pouco depois, em companhia de mais cinco, que trouxeram todos os instrumentos roubados dias antes, e preparou o caminho para a chegada do seu grande sachem [líder da tribo Wampanoag], chamado Massasoit; o qual, quatro ou cinco dias mais tarde, veio com o chefe dos seus amigos e outra comitiva, da qual fazia parte o supracitado Squanto. Com o qual, depois de amistoso entretenimento, ajustaram uma paz (que continua agora há 24 anos)...

[...]

Depois dessas coisas, ele voltou para a sua terra, chamada Sowans, a umas 40 milhas daquele lugar, mas Squanto continuou com eles, e serviu-lhes de intérprete, e foi um instrumento especial mandado por Deus para ajudá-los além das suas expectativas. Ensinou-os a semear o milho, onde pegar peixe e arranjar outros bens, e foi-lhes também piloto para levá-los a lugares desconhecidos em proveito deles, e nunca os deixou até morrer...

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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