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Franklin Ferreira

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Igreja evangélica, Evangelho, teologia moral, história e cultura. Coluna atualizada às quintas-feiras

Faroeste

Um bom homem com uma arma

os brutos também amam
Alan Ladd (no papel de Shane), em cena de "Os brutos também amam" (Foto: Divulgação)

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Os brutos também amam (Shane, 1953), dirigido por George Stevens, foi inspirado no romance homônimo de Jack Schaefer, publicado em 1949. O filme se ambienta no período de conflitos entre agricultores e criadores de gado, intensificados pelo Homestead Act, de 1862, que permitia a posse de terras para agricultores após cinco anos de cultivo. Um dos embates mais marcantes desse conflito foi a Guerra do Condado de Johnson (1888-1893), no Wyoming, cenário histórico da trama. Filmado nas planícies próximas a Jackson, com o Grand Teton ao fundo, Os brutos também amam buscou inspiração nas pinturas de Charles Russell e nas fotografias de Henry Jackson. O resultado é um dos mais belos faroestes da história do cinema.

Esse filme ocupa um lugar de destaque na história do cinema, comparável ao de Matar ou morrer. Ambos foram grandes sucessos comerciais e indicados ao Oscar de Melhor Filme. Em 1993, Os brutos também amam foi incluído no Registro Nacional de Filmes dos Estados Unidos por sua importância cultural, histórica e estética. Em 2007, o American Film Institute classificou Os brutos também amam como o 45.º melhor filme de todos os tempos e, em 2008, em terceiro lugar entre os dez melhores faroestes da história do cinema.

Uma guerra particular

Em um vale isolado no Wyoming, em 1889, os agricultores lutam para manter suas terras contra o barão do gado Rufus Ryker (Emile Meyer), que representa o sistema ultrapassado de pastagens em grandes campos abertos, sustentado pela força das armas, enquanto os agricultores simbolizam o avanço econômico e a democracia política. Suas fazendas prosperam graças ao uso eficiente da terra e da irrigação. Joe Starrett (Van Heflin), líder dos agricultores, defende esses valores por meio da persuasão e consenso, ao contrário de Ryker, que governa por intimidação. Com pressão para cumprir um contrato de fornecimento de carne ao governo federal, Ryker decide recorrer à violência, contratando capangas para ameaçar os colonos.

Nesse cenário, surge Shane (Alan Ladd), um forasteiro solitário, visto desde o início pelos olhos admirados de um menino, Joey (Brandon deWilde), filho de Starrett e sua esposa, Marian (Jean Arthur). Shane é imediatamente reconhecido como um herói. Ele é contratado como um “faz-tudo” por Starrett, para ajudar com os trabalhos no sítio.

Numa visita à cidade, Shane é provocado por Chris Calloway (Ben Johnson), um dos homens de Ryker, mas evita o confronto. Em uma visita posterior à cidade, ele derrota Calloway e, ao lado de Starrett, vence uma briga contra os capangas de Ryker. Joey passa a admirar Shane ainda mais, para a preocupação de Marian. Por causa da luta, Ryker contrata Jack Wilson (Jack Palance), um pistoleiro temido, para ajudá-lo.

Um dos princípios centrais de “Os brutos também amam é sintetizado em um aforismo do protagonista”: “Uma arma é uma ferramenta [...], nem melhor nem pior do que o homem que a usa”

A tensão aumenta quando o recém-chegado Wilson provoca e mata Frank “Stonewall” Torrey (Elisha Cook Jr.), um colono que era um veterano do exército confederado. No funeral de Torrey, ao som de Dixie tocada de forma comovente, os agricultores consideram desistir da luta, mas a destruição da propriedade dos Lewis os motiva a continuar lutando. Ryker identifica Starrett como o maior obstáculo e prepara uma emboscada, convidando-o para uma falsa negociação. Calloway, agora se opondo a Ryker, avisa Shane sobre a armadilha.

Para proteger Starrett, Shane o nocauteia depois de violenta briga, e vai à cidade em seu lugar. Joey o segue para assistir ao confronto. No salão, Shane enfrenta e mata Wilson, Ryker e seu irmão, mas sai ferido. Do lado de fora, Joey percebe o ferimento de Shane e implora para que ele fique. Ignorando os apelos do garoto, Shane parte do vale, se perdendo nas entranhas das montanhas sombrias, como quem trilha o véu entre dois mundos, deixando Joey chamando desesperadamente: “Shane! Volte!”

“Uma arma é uma ferramenta”

De acordo com Richard Slotkin, em Gunfighter Nation, um dos princípios centrais de Os brutos também amam é sintetizado em um aforismo do protagonista: “Uma arma é uma ferramenta [...], nem melhor nem pior do que o homem que a usa”. A narrativa do filme reforça essa ideia ao apresentar Shane como um “homem bom com uma arma”, um redentor armado que se torna o único capaz de proteger a liberdade da comunidade.

Shane encarna uma forma de nobreza que permeia personagens icônicos do faroeste. Shane veste buckskin, evocando a tradição dos caçadores de búfalos e reforçando sua imagem mitológica. Seu cinto bem ajustado, com um revólver Colt 1873 Single Action Army no coldre, reforça sua imagem nobre e refinada, diferenciando-o dos demais. Seu comportamento cortês e reservado confirma sua distinção. Diferentemente de outros pistoleiros, não há indicação de que ele tenha sido um fora-da-lei. Seu papel é puramente o de um gunfighter.

A narrativa alterna momentos naturalistas e folclóricos com cenas exageradas e estilizadas para criar um efeito épico. Quando os personagens principais enfrentam dificuldades, os céus escurecem; quando brigam, os animais enlouquecem e saltam cercas sob relâmpagos. Wilson, o pistoleiro contratado por Ryker, é retratado com a mesma estilização: ao entrar no saloon, um cachorro se afasta temeroso; sua passagem é filmada de um ângulo baixo, ampliando sua ameaça.

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No filme, a estilização do vestuário, dos movimentos e do comportamento distingue os poderosos e os profissionais. A verdadeira força é representada por aqueles que dominam esses elementos, sobrepondo-se aos valores democráticos que a história claramente apoia. Isso fica evidente no confronto entre Shane e Wilson. Enquanto Starrett e Ryker discutem sobre “direitos” e “progresso”, Shane e Wilson se observam em silêncio, trocando sorrisos. Eles sabem que as palavras são irrelevantes: a decisão será tomada pela força. Os verdadeiros protagonistas do confronto não são os líderes democráticos ou tirânicos, mas os pistoleiros que detêm o poder de agir.

Essa relação entre estilização, profissionalismo e poder é enfatizada na cena em que Wilson mata Torrey, o antigo confederado impulsivo. Enquanto Torrey caminha com dificuldade pelo chão lamacento, Wilson se move com graça pelo passeio elevado, como se estivesse em um palco. Sua elegância indica sua superioridade. O mal se revela plenamente quando ele prolonga a execução de Torrey, saboreando sua expressão de horror antes de disparar. Shane compartilha da mesma elegância, mas sem a crueldade de Wilson.

A política de “salvar o vale” se reduz, assim, a um confronto entre dois profissionais que transcendem as classes sociais em disputa. Wilson substitui Ryker como o verdadeiro antagonista dos agricultores. Embora formalmente seja a “ferramenta” de Ryker, ele personifica o poder do barão, que sempre se baseou na violência. Apenas Shane é capaz de enfrentá-lo de igual para igual. Isso exige que Starrett renuncie ao seu papel de líder e herói, cedendo o lugar a Shane, seu “funcionário contratado”. Os que têm o poder de agir têm a responsabilidade de fazê-lo, mesmo contra a vontade da comunidade. Por isso, quando Starrett insiste em enfrentar Wilson, Shane intervém, brigando com ele e assumindo seu lugar. Ele quebra as regras e arrisca sua relação com Joey para cumprir seu dever como o homem mais poderoso.

O duelo final entre Shane e Wilson é altamente estilizado, refletindo um ritual essencial e previsível. Quando Shane repete a frase de Torrey, “ouvi dizer que você é um yankee mentiroso”, Wilson sorri e responde: “Prove isso”. Essa troca de sorrisos reforça sua igualdade como profissionais, independentemente da moralidade de cada um deles. O desfecho é rápido: Shane mata Wilson e, em seguida, Ryker e seu irmão.

Essas mortes são apresentadas como atos de sacrifício, pois Shane não permanece para desfrutar da vitória. Ele parte sozinho, com Joey clamando por sua volta. Suas palavras finais a Joey enfatizam que sua ação salvou os pais do garoto e sua terra, protegendo a ordem doméstica e democrática que representam. No entanto, Joey não aceita a perda de Shane, pois ele significa algo mais para ele. Marian, esposa de Starrett, compartilha desse sentimento. Embora fiel ao marido e ao filho, ela nutre um amor sublimado por Shane, que a ama também. O último grito de Joey, “mamãe quer que você volte!”, reforça essa dimensão romântica, aproximando Shane de um Lancelot casto e Marian, de uma Guinevere fiel.

De acordo com Kirsten Day, em sua obra “Cowboy Classics”, “Os brutos também amam” baseia-se em valores épicos gregos, além das virtudes ensinadas na Escritura Sagrada

Shane, portanto, não é parte da comunidade. Sua nobreza e estilo são alheios à história, como atributos de uma “casta heroica”. Ele é um aristocrata da violência, um gunfighter misterioso, um forasteiro glamouroso que é melhor que aqueles que protege e que, no fim, segue seu caminho.

As virtudes judaico-cristãs e gregas no Oeste Selvagem

De acordo com Kirsten Day, em sua obra Cowboy Classics, Os brutos também amam baseia-se em valores épicos gregos, além das virtudes ensinadas na Escritura Sagrada, moldando e orientando as preocupações com a formação da identidade nacional dos Estados Unidos.

A hospitalidade era um valor importante no Velho Oeste, como demonstrado na recepção de Shane na casa dos Starrett. Quando Shane chega, ele pede permissão para atravessar a terra, em contraste com os capangas de Ryker, que invadem o sítio agressivamente. Joe Starrett segue a tradição da hospitalidade da Escritura Sagrada, oferecendo água, comida e abrigo a Shane, assim como os anfitriões de Israel faziam ao receber um estrangeiro. Shane, por sua vez, retribui ajudando nos trabalhos da fazenda e protegendo a família, reforçando a reciprocidade da hospitalidade. A hospitalidade, na Escritura Sagrada, não é apenas um gesto de gentileza, mas um princípio espiritual que reflete o caráter de Deus e o amor ao próximo (Gn 18,1-8; Lv 19,34; Mt 25,35; Rm 12,13; Hb 13,2).

O conceito de posse está presente em Shane. O conflito envolve o direito à terra, com os agricultores defendendo suas propriedades contra Ryker, que vê os recém-chegados como invasores. O incêndio da casa dos Lewis pelos homens de Ryker tem um impacto profundo na comunidade porque simboliza um ataque à identidade da família. A Escritura ensina que a posse da terra é um presente de Deus (Lv 25,23; Sl 24,1), que deve ser adquirida e mantida por meio do trabalho (Pv 12,11; 2Ts 3,10), transmitida às futuras gerações (Pv 13,22; Nm 27,7-11) e protegida contra injustiças e abusos, como a expropriação e o roubo de terras (Êx 20,15; Dt 19,14; 1Rs 21,1-29). A Escritura defende a propriedade privada dentro de um contexto de responsabilidade moral e fidelidade a Deus.

Os épicos gregos definem a masculinidade através da coragem, honra e força moral. A Escritura ensina que a masculinidade verdadeira se manifesta na liderança amorosa e responsável (Ef 5,25), na coragem para fazer o que é certo (Js 1,9), na sabedoria e domínio próprio (Pv 16,32), na humildade e serviço ao próximo (Mc 10,45) e no compromisso inabalável com Deus e sua justiça (1Co 16,13-14). Joe Starrett e Shane representam essas virtudes, cada um à sua maneira. Starrett é um líder natural, defendendo os agricultores com determinação, enquanto Shane demonstra autocontrole e habilidade superior em combate. Sua relutância em usar armas e sua lealdade a Starrett reforçam seu caráter virtuoso. No duelo final, Shane segue o código heroico ao enfrentar Wilson, o que lembra os rituais de duelo na Grécia Antiga, onde a reputação de um homem dependia de sua bravura no campo de batalha. A cena da remoção do toco de árvore simboliza a força compartilhada por Shane e Starrett. Trabalhando juntos, eles demonstram sua masculinidade por meio do esforço físico. No entanto, Shane transcende Starrett ao assumir sozinho o confronto final.

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A moderação (sofrosyne) era essencial para os gregos, diferenciando heróis prudentes de personagens impulsivos. A Escritura ensina que a moderação é uma virtude essencial, associada à sabedoria e ao domínio próprio, que é um fruto do Espírito (Gl 5,22-23; Fp 4,5). Shane representa a virtude da moderação ao evitar conflitos desnecessários, como na primeira provocação de Calloway, que ele ignora. Já Torrey, que age impulsivamente, é morto por Wilson, ao cair em uma provocação. A resistência de Shane ao uso da violência remete a Odisseu/Ulisses, na Odisseia, que aguarda o momento certo para confrontar os pretendentes iníquos de Penélope. Ambos os personagens usam a inteligência e o autocontrole para evitar conflitos prematuros, demonstrando que a verdadeira força está na sabedoria e discernimento, não apenas na habilidade com as armas.

As mulheres, nos épicos gregos, frequentemente desempenham o papel de guardiãs dos valores familiares e sociais, assim como na Escritura, que também destaca o papel das mulheres na edificação do lar e na transmissão da fé (Pv 14,1; 31,10-31; Tt 2,3-5). Marian se encaixa nesse papel, sendo a voz da razão e da moralidade. Ela repreende Joey por admirar armas e expressa seu desejo de um mundo sem violência, representando os valores pacifistas que contrastam com o heroísmo masculino. A tensão romântica entre Marian e Shane lembra o relacionamento entre Penélope e Odisseu/Ulisses, baseado na lealdade e no reconhecimento mútuo da virtude. Starrett percebe o vínculo entre os dois, mas confia na fidelidade da esposa, assim como Odisseu/Ulisses confiou que Penélope resistiria aos pretendentes perversos. Essa relação reforça a oposição entre a estabilidade doméstica de Starrett e Marian e o destino heroico de Shane.

Por fim, Shane enfrenta um dilema entre o dever e o desejo pessoal. Ele tenta se integrar à comunidade, mas seu destino é ser um guerreiro, não um agricultor. No fim, ele aceita sua natureza e parte sozinho, pois um homem marcado pela violência não pode viver em paz. Esse afastamento evoca a noção grega de que o herói precisa partir novamente, cumprir seu destino. A frase final de Shane – “Eu tenho de ir. Um homem tem de ser o que ele é [...]. Não se pode quebrar o molde. Eu tentei, mas não deu certo” – ecoa o conceito grego de que o herói não pode escapar de sua identidade e destino.

Ecos de um herói trágico

O impacto cultural de Os brutos também amam foi imenso, influenciando inúmeros filmes e séries. Logan (2017), dirigido por James Mangold, contém diversas conexões com o clássico. O caminho percorrido por Logan/Wolverine (Hugh Jackman) ecoa a jornada de Shane, reforçando sua condição de herói trágico e sua complexa relação com a violência.

Ambos os filmes apresentam um protagonista solitário e marcadamente violento que tenta escapar de seu passado. O Velho Logan, um antigo integrante do grupo de super-heróis X-Men, deseja apenas sobreviver em anonimato, mas precisa seguir sua vocação de infligir violência, uma última vez, para salvar a jovem Laura (Dafne Keen), perseguida pelos Reavers, uma organização militar privada liderada por Donald Pierce (Boyd Holbrook), e garantir sua segurança.

“Os brutos também amam” permanece um dos maiores clássicos do faroeste, não apenas por sua estética e narrativa, mas por seu impacto emocional e simbólico

A relutância de Shane e Logan em matar reflete o ideal grego da moderação, no qual o verdadeiro herói não busca a violência, mas a aceita quando necessária. Como Logan diz, em Wolverine, de Frank Miller e Chris Claremont: “Eu sou o melhor no que faço, mas o que eu faço não é nada bonito”. Ambos percebem que sua natureza os impede de viver normalmente e que, para garantir um futuro melhor para os inocentes, devem trilhar a senda da violência.

A conexão mais explícita entre os filmes ocorre quando Laura assiste a Shane na televisão, ao lado do professor Charles Xavier (Patrick Stewart), e depois recita seu icônico discurso sobre a natureza da violência: “Uma arma é uma ferramenta [...], nem melhor nem pior do que o homem que a usa. Mas uma arma é tão boa ou tão má quanto o homem por trás dela. Lembre-se disso”. Essa cena reforça que Laura, assim como Joey em Shane, está aprendendo sobre a moralidade da força e do uso da violência. No funeral de Logan, Laura cita essa fala, reconhecendo que Logan, como Shane, não é um assassino comum, mas um guerreiro necessário que luta em prol dos indefesos.

Visualmente, Logan também emula Os brutos também amam. Ambos os filmes terminam com um jovem chamando pelo herói que parte, simbolizando o sacrifício final do protagonista. Logan, como Shane, salva sua nova família, mas não pode permanecer com ela, pois sua existência violenta o impede de se integrar à sociedade pacífica – um tropo também presente em Rastros de ódio. Mas Logan também ressignifica Os brutos também amam, ao transportá-lo para um cenário futurista e distópico (El Paso, no Texas, em 2029), mas preservando sua essência como uma impactante reflexão sobre heroísmo, sacrifício e o fardo da violência.

Os brutos também amam permanece um dos maiores clássicos do faroeste, não apenas por sua estética e narrativa, mas por seu impacto emocional e simbólico. A figura de Shane, o herói solitário que luta contra seu próprio destino, ressoa até hoje em diferentes meios de comunicação, provando que algumas histórias são atemporais. Seu final ambíguo e melancólico continua a fascinar gerações, consolidando o filme como um dos mais marcantes da história.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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