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Franklin Ferreira

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Filmes

Honra e dever: o legado de verdade em “Tempo de glória”

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Cena de "Tempo de glória", sobre regimento de soldados negros durante a Guerra Civil Americana. (Foto: Divulgação/Columbia/TriStar Pictures)

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O filme Tempo de glória (Glory), lançado em 1989, retrata o heroísmo de um dos primeiros regimentos de soldados voluntários negros a lutar pelo Exército da União durante a Guerra Civil Americana (1861-1865). Esse conflito sangrento teve como principal causa a disputa entre os estados escravistas do Sul, de economia agrária, e os estados do Norte, mais industrializados e alinhados com o movimento abolicionista.

A narrativa do filme ganha força ao destacar a Proclamação de Emancipação de 1863, decreto que autorizou o alistamento de negros nas forças da União, conferindo-lhes um papel direto na luta contra a Confederação e pela liberdade de seu povo. A vitória do Norte não apenas preservou a integridade dos Estados Unidos, mas também levou à abolição formal da escravidão, posteriormente garantida pela 13.ª Emenda à Constituição.

Embora muitos westerns e produções ambientadas nesse período usem a Guerra Civil apenas como pano de fundo, Tempo de glória se destaca por seu olhar mais aprofundado sobre o conflito e por valorizar a contribuição histórica dos soldados negros. A produção foi indicada a cinco prêmios da Academia e venceu três, incluindo o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante para Denzel Washington, que também conquistou o Globo de Ouro na mesma categoria.

Liderança, ambivalência e redenção

Durante a Guerra Civil Americana, o capitão Robert Gould Shaw (Matthew Broderick), do 2.º Regimento de Infantaria Voluntária de Massachusetts, é ferido na sangrenta batalha de Antietam, em 17 de setembro de 1862, a mais violenta já travada em solo americano. Enviado para Boston em licença médica, Shaw aceita uma promoção e, com 25 anos, em 15 de fevereiro de 1863, assume o comando do 54.º Regimento de Infantaria Voluntária de Massachusetts, um dos primeiros regimentos negros do Exército da União. Para seu segundo em comando, escolhe o amigo major Cabot Forbes (Cary Elwes). O primeiro voluntário do regimento é outro amigo, Thomas Searles (Andre Braugher), um negro livre e culto. Entre os recrutas negros alistam-se John Rawlins (Morgan Freeman), Jupiter Sharts (Jihmi Kennedy) e Trip (Denzel Washington).

Os voluntários descobrem que, em resposta à Proclamação de Emancipação, a Confederação emitiu uma ordem determinando que todos os soldados negros encontrados em uniforme da União, assim como seus oficiais brancos, sejam executados. Apesar de receberem a oferta de uma dispensa honrosa, eles a recusam. Sob a rigorosa supervisão do sargento-major Mulcahy (John Finn), passam por um treinamento intenso, no Campo Meigs, localizado em Readville, próximo de Boston, preparando-se para os desafios que terão pela frente.

A mensagem de “Tempo de glória” exalta virtudes que transcendem a política: obediência à verdade, sacrifício pelo próximo e fé na justiça divina

Trip aparentemente tenta fugir, mas é capturado. Shaw ordena que ele seja açoitado diante das tropas. O digno silêncio de Trip durante o castigo, quebrado apenas por uma comovente lágrima, causa grande comoção. Shaw descobre que Trip havia saído em busca de sapatos para substituir os seus desgastados, pois seus homens estavam sendo privados dos suprimentos básicos. Em defesa deles, Shaw confronta o intendente racista do aquartelamento. Reconhecendo sua liderança, Shaw promove Rawlins ao posto de sargento-major.

Após concluir o treinamento, o 54.º é transferido para o comando da 1.ª Divisão do X Corpo, subordinado ao Departamento do Sul. Durante a marcha rumo à Carolina do Sul, o regimento recebe ordens do coronel James M. Montgomery, comandante da 3.ª Brigada, para saquear e incendiar a cidade de Darien, na Geórgia. Essas ações faziam parte da estratégia da União de enfraquecer a capacidade dos Estados Confederados de sustentar o esforço de guerra, comprometendo o abastecimento de alimentos e suprimentos, uma medida que se acreditava reduzir perdas e acelerar a rendição inimiga. Inicialmente, Shaw se recusa a cumprir a ordem, mas acaba cedendo. Ao mesmo tempo, ele pressiona seus superiores para que seus homens possam entrar em combate. Shaw obtém autorização ao chantagear os comandantes, ameaçando denunciar atividades ilegais que havia descoberto. O batismo de fogo do 54.º ocorre na Ilha James, Carolina do Sul, em 16 de julho de 1863. A vitória vem a um alto custo, em meio a intensas baixas. Os confederados são derrotados e forçados a recuar. Durante o confronto, Thomas é ferido, mas consegue salvar Trip. Como reconhecimento, Shaw oferece a Trip a honra de carregar a bandeira do regimento, mas ele recusa.

O general George C. Strong, comandante de uma brigada provisória da Coluna de Ataque, informa Shaw sobre uma grande ofensiva para assegurar uma posição no porto de Charleston. Isso envolveria atacar a Ilha Morris e capturar o Forte Wagner; a única forma de abordá-lo por terra é atravessando uma faixa de praia aberta, uma investida que certamente resultará em pesadas baixas. Shaw se voluntaria para liderar o ataque com o 54.º. Na noite anterior à batalha, os soldados negros realizam um culto evangélico, e vários fazem discursos para inspirar as tropas e pedir a ajuda de Deus. A caminho do ataque, o 54.º é aplaudido pelas tropas do 10.º Regimento de Infantaria de Connecticut, uma das melhores unidades da União.

Em 18 de julho de 1863, o 54.º lidera a investida contra o forte, enfrentando pesadas baixas logo nos primeiros momentos. Durante a noite, o bombardeio confederado persiste, impedindo qualquer avanço significativo. Na tentativa de motivar seus homens, Shaw avança à frente das linhas e é mortalmente atingido. Em um gesto de bravura, Trip ergue a bandeira do regimento e lidera os soldados no ataque, mas é baleado, mantendo a bandeira erguida até o fim. Sob o comando de Forbes, o remanescente do 54.º consegue romper as defesas externas do forte. No entanto, em clara desvantagem numérica, o capitão Charles F. Morse é morto e o cabo Searles é ferido. O desfecho da batalha sugere que Forbes, Rawlins, Searles e Jupiter também foram mortos, atingidos por disparos de metralha vindos do interior do forte. Na manhã seguinte, a praia está coberta pelos corpos dos soldados do 54.º. A bandeira confederada volta a tremular sobre o forte, enquanto os corpos dos combatentes da União são sepultados em uma vala comum – entre eles, Shaw e Trip, lado a lado.

Música extraordinária

A trilha sonora de Tempo de glória, composta por James Horner, é uma das maiores forças emocionais do filme, elevando a narrativa com uma profundidade espiritual rara em produções do gênero. Ao combinar uma orquestra sinfônica com o poderoso coral gospel do Harlem Boys Choir, Horner cria uma atmosfera sonora que traduz com maestria o peso moral do sacrifício, a dignidade dos soldados e a transcendência de sua missão.

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Em momentos-chave, como o culto evangélico antes da batalha final ou o sepultamento coletivo ao fim, a música evoca reverência e solenidade, lembrando o espectador de que aquela história vai além da ação militar: trata-se de um testemunho de fé, coragem e entrega. Mais do que acompanhar o filme, a trilha cresce com ele, tornando-se parte essencial de sua alma.

Apesar de sua qualidade excepcional, a trilha foi ignorada pela Academia. No entanto, recebeu o reconhecimento merecido ao conquistar o Grammy de 1991 de Melhor Composição Instrumental para Cinema ou Televisão.

Fé, virtude e memória

Kevin Jarre, autor do roteiro de Tempo de glória, revelou que a inspiração para escrever o filme surgiu durante uma visita ao memorial em homenagem ao coronel Robert Gould Shaw e ao 54.º Regimento de Infantaria de Voluntários de Massachusetts, em Boston. Criado por Augustus Saint-Gaudens e inaugurado em 1897, o monumento permaneceu por décadas como uma das raras homenagens públicas à participação dos soldados negros na Guerra Civil Americana. Para compor o roteiro, Jarre baseou-se parcialmente nas cartas que o coronel Shaw enviou aos pais durante o conflito, além de se apoiar em duas obras fundamentais: Lay This Laurel, de Lincoln Kirstein, e One Gallant Rush, de Peter Burchard. Poucos anos após Tempo de glória, Jarre também assinaria o roteiro de Tombstone: a justiça está chegando.

Há no filme uma constante referência à dimensão espiritual do sacrifício. O culto evangélico na véspera da batalha, os discursos emocionados e a invocação do nome santo de Deus revelam que os homens do 54.º compreendiam sua missão como mais do que uma batalha terrena. Como diz Trip: “Eu não sou muito de orar, não. Nunca tive família, e... acabei matando minha mãe. Bem, é que... vocês são a única família que eu tenho. Eu amo o 54.º. E nem importa muito o que acontecer amanhã, porque a gente é homem, não é?” Para eles, lutar era um dever moral, e a entrega da própria vida ganhava sentido diante da certeza de estar fazendo o que é justo. Essa dimensão é sintetizada nas palavras reais do primeiro-sargento Robert John Simmons, em um relato da batalha da Ilha James, publicado no New York Tribune em 23 de dezembro de 1863, e que serviram de inspiração para o título original do filme, Glory: “Deus me protegeu nesta, minha primeira provação ardente e cheia de chumbo, e eu dou a Deus a glória”. Simmons foi mortalmente ferido em Forte Wagner.

No filme, o coronel Shaw escreve à sua mãe: “Lutamos por homens e mulheres cuja poesia ainda não foi escrita, mas que em breve será tão admirável e célebre quanto qualquer outra”, referindo-se a um povo submetido ao sofrimento e à degradação – um quadro que a Guerra Civil, ainda que de forma limitada, começou a transformar. A mensagem de Tempo de glória exalta virtudes que transcendem a política: obediência à verdade, sacrifício pelo próximo e fé na justiça divina. Essa é a glória que o filme celebra, não a glória efêmera do mundo, mas a da Nova Jerusalém; não a do poder, mas a da consciência em paz diante de Deus. Em tempos de crise moral, Tempo de glória continua a ressoar, porque aponta para aquilo que é permanente: a dignidade eterna do homem que escolhe fazer o que é certo, mesmo quando ninguém está olhando.

Por meio da história real do 54.º Regimento de Infantaria Voluntária de Massachusetts o espectador é convidado a contemplar virtudes que transcendem culturas e épocas

Desde seu lançamento, Tempo de glória tem sido amplamente reconhecido como um valioso instrumento educativo e de preservação da memória histórica. Aclamado pela crítica e incorporado ao currículo de aulas de História nos Estados Unidos, o filme desempenha um papel que vai muito além do entretenimento. O historiador da Guerra Civil James M. McPherson, autor de obras fundamentais como Brado de guerra da liberdade e A guerra que forjou uma nação (ambas publicadas no Brasil pela Biblioteca do Exército Editora), destacou a importância do filme ao afirmar que ele “realizou uma façanha notável ao sensibilizar muitos estudantes negros de hoje sobre o papel que seus antepassados desempenharam na Guerra Civil para conquistar sua própria liberdade”.

Virtudes bíblicas e gregas na Guerra Civil

Tempo de glória não é apenas um drama histórico sobre a Guerra Civil Americana. Ele é, acima de tudo, uma parábola moral. Por meio da história real do 54.º Regimento de Infantaria Voluntária de Massachusetts o espectador é convidado a contemplar virtudes que transcendem culturas e épocas, ecoando tanto a tradição bíblica quanto a filosofia grega clássica. A união dessas tradições, a fé judaico-cristã e a ética greco-romana, está no cerne da civilização ocidental. Em Tempo de glória, essas virtudes ganham carne e sangue, tornadas visíveis nas decisões, sacrifícios e palavras dos personagens.

A coragem é talvez a virtude mais visível em Tempo de glória. No pensamento grego, trata-se da disposição para enfrentar o perigo em nome de um bem maior. Na tradição bíblica, a coragem está ligada à confiança no Deus de Israel diante da adversidade: “Não foi isso que eu ordenei? Seja forte e corajoso! Não tenha medo, nem fique assustado, porque o Senhor, seu Deus, estará com você por onde quer que você andar” (Js 1,9).

O coronel Shaw, ao aceitar liderar um regimento negro num país dividido por causa do racismo, demonstra coragem moral e institucional. Ele desafia colegas, superiores e normas estabelecidas para lutar por justiça. A decisão de voluntariar o 54.º para liderar o ataque frontal a Fort Wagner, mesmo sabendo da quase certeza de morte, é o ápice dessa coragem. O soldado Trip também encarna essa virtude. Um ex-escravo marcado pela brutalidade do passado, Trip é cético e agressivo, mas não covarde. Sua recusa inicial em aceitar a bandeira do regimento mostra que ele não busca glória pessoal. No entanto, no momento decisivo, ele a toma – e marcha à frente da unidade até ser morto. Ali, a coragem supera o medo, e o sacrifício consagra sua redenção.

A justiça é o centro moral da filosofia grega e um mandamento constante na Escritura: “Fazer justiça e julgar com retidão é mais aceitável ao Senhor do que oferecer sacrifícios” (Pv 21,3). No filme, a justiça aparece na luta contra a desigualdade salarial. Soldados negros recebiam menos que os brancos. O governo federal pagava aos soldados negros US$ 10, em vez dos US$ 13 por mês que os soldados brancos recebiam. Trip encoraja os homens a recusarem o pagamento em protesto, e Shaw rasga seu contracheque diante das tropas e recusa pagamento enquanto seus homens forem injustiçados. Outro exemplo é a promoção de Rawlins a sargento-major. Ele é respeitado entre os homens e lidera com sabedoria e equilíbrio. Shaw reconhece essa autoridade real e a confirma formalmente, uma atitude que revela o reconhecimento da justiça como ordem natural, não determinada pela cor da pele.

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A temperança, ou domínio de si, é uma virtude clássica que modera os apetites e emoções em prol da razão. Na Escritura, ela é fruto da obra do Espírito Santo: “O fruto do Espírito é [...] domínio próprio” (Gl 5,22-23). Essa virtude aparece no controle emocional dos soldados frente à humilhação. Apesar dos insultos, da comida inferior e dos suprimentos negados, os homens não se revoltam. Um exemplo é o de Searles, negro culto que se torna alvo de zombarias devido à sua origem, considerada “burguesa”. Ele persevera com dignidade, sem ceder ao ódio ou à provocação. Shaw também demonstra temperança ao dominar seu orgulho como oficial. Em vez de reagir impulsivamente às ofensas ou à insubordinação inicial de Trip, ele aguarda, observa, compreende. Essa sobriedade de espírito fortalece sua liderança.

A sabedoria é a capacidade de discernir o bem e aplicá-lo na ação. A Escritura a exalta: “Feliz é quem acha   a sabedoria; feliz é aquele que alcança o entendimento” (Pv 3,13). Para os gregos, a sabedoria (phrónēsis) é a virtude do homem maduro. Shaw cresce em sabedoria ao longo do filme. Inicialmente inseguro, ele amadurece ao ouvir seus soldados, enfrentar seus superiores e tomar decisões difíceis. Ao proteger seus homens contra abusos, mesmo correndo risco político, ele demonstra prudência em ação. Rawlins também é exemplo dessa virtude. Ele é voz de equilíbrio no regimento. Quando Trip se rebela ou provoca, Rawlins age com serenidade. Ele entende a dor dos seus companheiros, mas não permite que essa dor se converta em desordem.

Embora não enfatizada diretamente nos diálogos, a fé está presente. O culto ao redor da fogueira na véspera da batalha de Fort Wagner é uma das cenas mais comoventes do filme. Ali, os soldados cantam, oram e testemunham. Jupiter diz: “Amanhã nós vamos para a batalha, então, Senhor, deixa eu lutar com o rifle numa mão e o Santo Livro [a Escritura] na outra. E que, se eu morrer pela boca do rifle... morrer na água ou em terra firme, eu saiba que o Senhor, Jesus Todo-Poderoso, está comigo... e que eu não tenha medo”. E Rawlins: “Senhor, estamos diante de Ti nesta noite para dizer: obrigado! E Te agradecemos, Pai, por Tua graça e por tantas bênçãos! Agora eu parti, deixei meus filhos e meus parentes ainda na escravidão. Por isso estou aqui esta noite, Pai Celestial, para pedir tuas bênçãos sobre todos nós. E se amanhã for o grande dia da ressurreição, se for o dia do Juízo Final, ó Pai Celestial, queremos que o Senhor faça nossos entes queridos saberem que morremos enfrentando o inimigo! Que saibam que caímos de pé! No meio daqueles que lutavam contra a opressão. Queremos que saibam, Pai Celestial, que morremos pela liberdade! Pedimos essas bênçãos em nome de Jesus. Amém!”

Essa fé, simples e fervorosa, sustenta aqueles homens diante da morte. Não se trata de fé aparente, mas de fé verdadeira, como a de Abraão na provação do Monte Moriá, ou do mártir Estevão fora dos muros de Jerusalém. Eles caminham para a batalha com a certeza de que Deus é justo, e que sua causa, mesmo sem triunfo militar, é digna.

O amor, no cristianismo, é o centro de todas as virtudes: “Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; porém o maior deles é o amor” (1Co 13,13). Esse amor se expressa em solidariedade. Quando Shaw defende seus homens, quando rasga o contracheque, quando morre ao lado deles, ele manifesta amor verdadeiro. Ao ser enterrado junto com seus soldados – um ato deliberado de desprezo dos confederados –, Shaw recebe, sem querer, a mais honrosa sepultura: entre seus irmãos de armas. Trip, por sua vez, em sua marcha com a bandeira, demonstra um ato de amor àqueles com quem antes brigava e provocava. A bandeira que ele sustenta até a morte é símbolo da União – de homens antes divididos, agora irmãos no sacrifício.

A disposição dos soldados do 54.º em lutar é um testemunho da verdade de que a causa da liberdade e da justiça exige entrega e coragem

Tempo de glória é mais do que um épico histórico. É um espelho moral. As virtudes que o filme retrata – coragem, justiça, temperança, sabedoria, fé e amor – são fundamentos da alma humana ordenada. São virtudes que formam homens dignos, famílias fortes e nações livres.

Ao reviver o exemplo do 54.º, o filme nos lembra que a glória verdadeira não está na fama ou no sucesso terreno, mas na fidelidade ao bem. Essa é a glória que é “uma herança que não pode ser destruída, que não fica manchada, que não murcha e que está reservada nos céus” (1Pe 1,4). É a glória prometida àqueles que, como os homens do 54.º, amaram mais a causa da liberdade e da justiça do que a própria vida.

Tempo de glória ainda ressoa

O filme Tempo de glória, embora não tenha sido um grande sucesso de bilheteria em seu lançamento, tornou-se um clássico respeitado. A história do 54.º, liderado pelo coronel Shaw, é apresentada no filme com forte apelo emocional e integridade dramática. Diferentemente dos oficiais brancos, os personagens negros centrais são ficcionais, mas representam de maneira plausível os desafios, as esperanças e as dores vividas pelos soldados negros da época.

O grande valor deste filme reside em sua capacidade de retratar o sacrifício humano como expressão de virtude. A disposição dos soldados do 54.º em lutar – mesmo diante da humilhação, da desigualdade de tratamento e da quase certeza de morte – é um testemunho da verdade de que a causa da liberdade e da justiça exige entrega e coragem. Não buscaram vingança ou vantagens pessoais, mas dignidade. Lutaram com honra, reconhecendo que, como seres criados à imagem de Deus, mereciam ser tratados com justiça.

Há algumas liberdades criativas no filme. Por exemplo, o filme simplifica o processo pelo qual Shaw aceitou o comando do 54.º. Na realidade, Shaw estava hesitante em assumir o posto, pois não acreditava que as autoridades enviariam a unidade para a linha de frente, e não queria deixar seus companheiros de sua antiga unidade, o 2.º. Finalmente, depois de recusar duas vezes, ele concordou em assumir o comando.

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Outro ponto é o retrato do regimento como composto majoritariamente por ex-escravos. Na verdade, a maioria dos membros do 54.º era de homens negros livres, oriundos da região da Nova Inglaterra. O governador de Massachusetts, John Albion Andrew, não aceitava escravos fugitivos, pois queria que os 54.º fosse uma unidade de elite. Quase todos os homens sabiam ler e escrever. Um dos soldados era médico. Mas a escolha narrativa visa reforçar a transição da escravidão à liberdade e, embora não corresponda totalmente à realidade do 54.º, é fiel à experiência de muitos outros regimentos negros da época.

O filme também dramatiza a questão dos suprimentos e castigos. Em uma das cenas mais marcantes, Trip é açoitado por sair do acampamento sem autorização. Ele buscava sapatos – um gesto simples, mas necessário. A punição pública, apesar de não ser prática comum na época (o Exército já havia proibido o açoitamento), cumpre função simbólica importante: revela o peso do passado escravocrata nas instituições militares, denunciando as injustiças ainda presentes mesmo dentro das fileiras da União.

Outro erro histórico é a explicação, ao final, de que o Forte Wagner jamais foi tomado pelas forças da União. As baixas sofridas com o fracassado ataque do 54.º e os posteriores ataques de outros regimentos da União terminaram por fazer com que as tropas confederadas abandonassem o forte na noite de 6 de setembro de 1863. Eles estavam sem água, pois os poços foram contaminados com os corpos de cadáveres em decomposição. Na manhã de 7 de setembro de 1863, soldados da União adentraram o Forte Wagner, que estava vazio.

Pode ser destacada a veracidade da cena do saque de Darien, na Geórgia, por forças da União sob o comando do coronel Montgomery. Shaw, que acompanhava a operação, ficou preocupado com o efeito da destruição sobre a reputação do seu regimento. Esse episódio evidencia o dilema moral de combater o mal sem se tornar semelhante a ele – uma tensão ética que ainda ressoa fortemente em tempos modernos. Aliás, o filme dramatiza Montgomery como um antagonista dentro da própria União, exagerando seu racismo e brutalidade para criar contraste com o idealismo do coronel Shaw e do 54.º. Na realidade, Montgomery era um radical, sim, mas por convicções antiescravistas, não por desprezo aos soldados negros. Ele inclusive comandou o 2.º Regimento de Voluntários da Carolina do Sul, um dos primeiros compostos por ex-escravos.

No filme, Shaw acompanha seus soldados ao recusar o pagamento reduzido. No entanto, na realidade, foi ele quem liderou o protesto, incentivando o 54.º a rejeitar o soldo discriminatório. Mesmo após sua morte, os soldados negros mantiveram a luta por igualdade salarial, enfrentando punições e longos atrasos. A equiparação só foi conquistada em 1864, após meses de firme resistência.

A verdadeira glória não pertence aos que sobrevivem, mas àqueles que se mantêm firmes até o fim – por uma causa maior do que eles mesmos

O filme encerra com a trágica, mas heroica investida do 54.º contra o Forte Wagner. Embora a ação tenha sido militarmente malsucedida, consolidou a imagem do regimento como símbolo de bravura e sacrifício. Shaw e muitos de seus homens morreram e foram lançados em uma vala comum pelos confederados. No filme, Shaw é sepultado com sua faixa vermelha – um gesto simbólico de honra –, ainda que, na realidade, ela tenha sido devolvida por um oficial confederado à sua viúva décadas depois. A cena final transforma a desonra em grandeza moral: homens unidos pela coragem, pela verdade e pela justiça.

Embora o filme recorra a licenças artísticas, ele reforça uma verdade histórica incontestável: os soldados negros enfrentaram riscos únicos durante a Guerra Civil. Sua coragem no campo de batalha não era suficiente – eles também lidavam com o preconceito dentro do próprio exército da União e com a ameaça de execução sumária caso fossem capturados pelos confederados. Um exemplo brutal ocorreu na batalha de Forte Pillow, em 12 de abril de 1864, quando cerca de 300 soldados negros rendidos – em sua maioria integrantes do 6.º Regimento de Artilharia Pesada dos Soldados de Cor dos Estados Unidos – foram massacrados pelas tropas confederadas sob o comando do major-general Nathan Bedford Forrest.

Na cena final, a imagem do coronel Shaw sendo sepultado com seus soldados – muitos sem sapatos – é profundamente tocante. A mensagem é clara: diante do dever, todos são iguais. Esse momento coroa o filme com uma nota de esperança, pois aponta para uma nova compreensão da causa da liberdade e da justiça, agora alicerçada no sangue de homens que, mesmo sem reconhecimento imediato, não fugiram da missão que lhes foi confiada.

Uma história para ser lembrada

Tempo de glória é mais do que um excelente filme – é um poderoso lembrete do que significa verdadeiro heroísmo. Ao narrar a jornada de homens que lutaram por liberdade e justiça contra um sistema que os negava como seres humanos, mas que jamais perderam a fé, o filme revela uma verdade essencial: a honra está em permanecer fiel ao que é moralmente certo, mesmo quando o mundo inteiro se opõe. O 54.º Regimento de Infantaria Voluntária de Massachusetts talvez não tenha vencido todas as batalhas que travou. Mas triunfou na mais decisiva: a batalha pela dignidade, pela igualdade e pela liberdade. Diante dos canhões do Forte Wagner, esses homens provaram que a verdadeira glória não pertence aos que sobrevivem, mas àqueles que se mantêm firmes até o fim – por uma causa maior do que eles mesmos.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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