Ouça este conteúdo
O tiroteio no O.K. Corral se tornou um símbolo cultural norte-americano por uma combinação de fatores históricos, culturais e narrativos. Ele tornou-se uma espécie de mito fundacional sobre lei, ordem e moralidade no Velho Oeste. Esse tiroteio, ocorrido em 26 de outubro de 1881, em Tombstone, Arizona, envolveu figuras reais como Wyatt Earp, John Henry “Doc” Holliday, Virgil Earp, Johnny Ringo e os irmãos Clanton e McLaury. A cena – um duelo armado nas ruas poeirentas de uma cidade fronteiriça – se encaixa perfeitamente na imagem mítica que os americanos têm do Velho Oeste, um lugar onde o bem e o mal se enfrentavam com revólveres ao sol.
Grande impacto histórico
Desde 1930, Hollywood se apaixonou pela história do O.K. Corral. O evento foi retratado em filmes e séries, tais como o belíssimo Paixão dos fortes (My Darling Clementine, de 1946), que é considerado um clássico do faroeste americano, uma das versões mais estilizadas e românticas da história do tiroteio. Elogiado por sua cinematografia, atmosfera lírica e direção, é amplamente estudado em cursos de cinema. Sem lei e sem alma (Gunfight at the O.K. Corral, de 1957) foi um dos filmes mais populares sobre Earp. Embora tome muitas liberdades com os fatos, tem grande apelo de ação e drama. Foi valorizado pelas atuações carismáticas, mas criticado por distorções históricas. A hora da pistola (Hour of the Gun, de 1967) é uma espécie de continuação mais sóbria e realista de Sem lei e sem alma, focando no que acontece após o tiroteio. Foi bem aceito pela tentativa de fidelidade histórica e pelo tom mais sombrio, embora tenha sido menos popular com o público da época. Cada versão reconta o confronto de O.K. Corral com novos elementos de drama, romance ou tragédia. Até que em 1993 foi lançado Tombstone, baseado nos eventos ocorridos entre 1879 e 1882, no sudeste do Arizona, incluindo o tiroteio no O.K. Corral e a campanha de vingança de Wyatt Earp, conhecida como “Earp Vendetta Ride”.
Após seu lançamento nos cinemas, em 1993, Tombstone foi nomeado “um dos cinco maiores faroestes já feitos” pela revista True West. Os editores desta revista escreveram, em 2023: “Trinta anos após o lançamento do popular filme, ele pode ser o faroeste mais influente de todos os tempos. [...] Nenhum outro filme de Hollywood teve tanta influência na cultura popular do Velho Oeste, na literatura, nos estudos sobre lei e ordem na fronteira e no turismo. Um dos principais motivos para isso é que o filme é baseado em pessoas reais e eventos históricos que têm gerado debates e controvérsias entre historiadores, autores e fãs por quase um século”.
Wyatt Earp e seus imortais
Em 1879, membros de uma gangue fora-da-lei conhecida por usar faixas vermelhas, chamada Cowboys, e liderada por Curly Bill Brocius (Powers Boothe), invadem uma cidade mexicana e interrompem o casamento de um oficial da lei local na igreja da cidade. Em retaliação pela morte de dois membros do grupo, eles massacram os policiais mexicanos presentes. Antes de morrer, um padre local adverte que seus atos de selvageria serão vingados, referindo-se aos Quatro Cavaleiros do Apocalipse.
Wyatt Earp (Kurt Russell), um veterano xerife com notável reputação por seus feitos em Dodge City, no Kansas, reencontra seus irmãos Virgil (Sam Elliott) e Morgan (Bill Paxton) em Tucson, Arizona, e juntos seguem para a cidade de Tombstone, onde planejam se estabelecer. Essa cidade vive um surto de crescimento devido à mineração, e o jogo nos saloons oferece grandes oportunidades de enriquecimento. Lá, reencontram o velho amigo “Doc” Holliday (Val Kilmer), acompanhado de “Big Nose” Kate (Joanna Pacuła), que busca alívio para sua tuberculose no clima seco da região. Também chega à cidade a atriz Josephine Marcus (Dana Delany), com uma trupe itinerante. Enquanto isso, a companheira de Wyatt, Mattie Blaylock (Dana Wheeler-Nicholson), dá sinais de ser dependente de láudano.
O tiroteio no O.K. Corral tornou-se uma espécie de mito fundacional sobre lei, ordem e moralidade no Velho Oeste
Wyatt e os irmãos investem em um salão de jogos e começam a lucrar, até o primeiro confronto com os Cowboys. Quando Curly Bill, sob efeito de ópio, dispara aleatoriamente na rua, o xerife da cidade, Fred White (Harry Carey Jr.), tenta desarmá-lo e é morto. Wyatt prende Curly Bill, enfrentando uma multidão enfurecida que quer linchá-lo e membros da gangue que querem salvá-lo. No julgamento, Curly Bill é absolvido por falta de testemunhas. Virgil, incomodado com a situação, aceita o cargo de xerife da cidade e impõe a proibição de armas na cidade, o que leva ao famoso tiroteio no O.K. Corral, onde morrem Billy Clanton e os irmãos McLaury. Virgil e Morgan são feridos, e fica claro o apoio do xerife do condado, Johnny Behan, aos Cowboys.
Assim como em A hora da pistola, o confronto em O.K. Corral em Tombstone não representa o desfecho da história, mas sim um ponto de virada decisivo que desencadeia uma série de embates memoráveis. Embora o tiroteio real tenha durado menos de 30 segundos, sua representação na tela se estende por quase dois minutos, graças à encenação impecável e à edição meticulosa. Assim, Tombstone se tornou a versão cinematográfica definitiva do famoso tiroteio de 26 de outubro de 1881.
Em retaliação, os irmãos de Wyatt são emboscados pelos Cowboys: Morgan é morto; Virgil, gravemente ferido. Wyatt, desolado, decide deixar a cidade com sua família, indo para Tucson, mas eles são seguidos por Ike Clanton e Frank Stilwell. Agora nomeado delegado federal adjunto, Wyatt garante a segurança da família e surpreende os agressores, matando Stilwell e poupando Clanton, a quem envia uma mensagem – ele caçará os Cowboys até o fim: “O inferno vem comigo!”
Wyatt forma um grupo armado sob autoridade federal com “Doc”, o ex-Cowboy Sherman McMasters, John “Texas Jack” Vermillion e John “Turkey Creek Jack” Johnson. Em uma emboscada à beira de um rio, em Iron Springs, em 24 de março de 1882, Wyatt avança sozinho sob fogo cruzado e mata Curly Bill e diversos membros da gangue. O comando dos Cowboys passa para Johnny Ringo (Michael Biehn). Quando a saúde de “Doc” piora, o grupo é acolhido no rancho de Henry Hooker (Charlton Heston). Ringo atrai McMasters com a promessa de negociação, mas o mata e envia seu corpo como desafio a Wyatt, propondo um duelo. Wyatt aceita, sem saber que “Doc” já havia ido ao local. “Doc” enfrenta Ringo, que esperava por Wyatt, e o desafia para um duelo – ambos já haviam tido desentendimentos anteriores em Tombstone. “Doc” mata Ringo, em 13 de julho de 1882, em West Turkey Creek Valley, no Arizona, e a gangue dos Cowboys continua sendo caçada por Wyatt, “Doc”, “Texas Jack” e “Turkey Creek Jack”. Ike Clanton escapa ao renunciar à faixa vermelha.
“Doc” é internado em um sanatório no Colorado, onde morre de tuberculose. A pedido de “Doc”, Wyatt parte em busca de Josephine para começar uma nova vida. A narração final de Robert Mitchum, que dignifica ainda mais este filme, informa que a gangue dos Cowboys foi destruída para sempre. Clanton foi morto dois anos depois durante uma tentativa de roubo; Mattie morreu de overdose logo após sair de Tombstone; e Virgil se mudou para a Califórnia com Allie, onde continuou atuando como xerife, mesmo com apenas um braço. Wyatt e Josephine permaneceram juntos por 47 anos, até sua morte em Los Angeles, em 1929. Entre os que carregaram seu caixão estavam os astros do faroeste William S. Hart e Tom Mix, este último chorando no funeral.
VEJA TAMBÉM:
Virtudes hebraicas e gregas em Tombstone
No coração de Tombstone está uma clássica rivalidade de estilo shakespeariano: os Cowboys contra os Earps. O roteiro do filme criou uma trama envolvente, seguindo de perto a história real e fazendo referência aos maiores temas da ética grega, assim como às Escrituras cristãs.
A noção de redenção e as virtudes teologais cristãs – fé, esperança e caridade –, bem como outras virtudes morais cristãs como humildade, perdão e misericórdia, estão presentes, direta ou indiretamente, nos personagens de Tombstone.
O filme pode ser interpretado como uma jornada de redenção para seus protagonistas, especialmente “Doc” Holliday, cuja trajetória evoca a imagem de um santo mártir. Val Kilmer constrói uma figura fisicamente frágil, mas inabalável em coragem e lealdade, marcada por um senso constante de sacrifício: mesmo ciente de sua morte iminente pela tuberculose, “Doc” escolhe enfrentar o perigo em nome da amizade e da honra. Sua decadência física contrasta com sua ascensão moral, fazendo dele um símbolo de devoção e de redenção através do altruísmo. Wyatt Earp, por sua vez, se transforma ao longo da narrativa – abandona a postura indiferente do início para, aos poucos, se reconciliar com sua consciência e reassumir o papel de defensor da lei e da ordem. Sua redenção não se dá pela fé religiosa, mas por um reencontro ético consigo mesmo. Essa dualidade entre decadência e propósito confere ao filme uma dimensão espiritual, em que o heroísmo emerge não da perfeição, mas da capacidade de escolher o bem mesmo em meio à ruína.
A fé pode ser interpretada na confiança dos personagens em valores que transcendem o imediato – como a crença de Wyatt Earp em um mundo onde a justiça prevalece. A esperança aparece especialmente em sua trajetória: após tentar uma vida de paz e prosperidade, ele percebe que só pode reencontrar sentido ao combater o mal que destrói a cidade. A maior expressão da caridade está na atitude de “Doc” Holliday. Apesar de seu comportamento cínico e autodestrutivo, ele demonstra amor fraterno e sacrificial por Wyatt. Sua decisão de lutar em seu lugar contra Ringo é uma entrega que transcende a amizade comum – é um ato de amor que o aproxima do cristianismo, onde o sacrifício pelo próximo é expressão máxima da virtude.
Apesar de sua firmeza, Wyatt demonstra compaixão em momentos pontuais, como ao poupar alguns inimigos e ao permitir que outros se redimam. A humildade é mais visível na jornada de “Doc”, que, ao se colocar em segundo plano por alguém que considera mais digno, demonstra desprendimento e altruísmo.
A grande lição de Tombstone é que a verdadeira nobreza não está apenas em seguir a lei, mas em agir com coragem, lealdade e um profundo senso de justiça
As virtudes gregas clássicas incluem a coragem, a temperança, a justiça e a sabedoria. Todas elas encontram eco em Tombstone. A coragem é expressa de maneira clara na figura de Wyatt, que, mesmo tendo abandonado a vida de xerife, retorna à ação diante da violência instaurada pela gangue dos Cowboys. Ele toma para si a responsabilidade de enfrentar o caos, mesmo com grandes riscos pessoais. A coragem de “Doc” Holliday também se destaca – doente de tuberculose, ele se dispõe a lutar não por obrigação, mas por lealdade, demonstrando bravura diante da morte iminente. A justiça não se limita à aplicação da lei, mas ao equilíbrio e à harmonia na pólis (cidade). Wyatt representa essa busca ao tentar restaurar a ordem em Tombstone. Seu senso de justiça é visceral, movido não apenas por dever legal, mas por um código moral que exige retribuição proporcional à injustiça cometida pelos criminosos.
Embora a amizade não seja uma virtude isolada na filosofia grega, ela está profundamente ligada à ética e ao ideal de uma vida virtuosa. A relação entre Wyatt e “Doc” Holliday exemplifica esse ideal de amizade –baseada na virtude, na confiança mútua e na disposição de sacrificar-se pelo outro. Wyatt, ao longo do filme, também demonstra momentos de moderação e prudência – por exemplo, ao evitar o confronto direto até o ponto em que a violência se torna inevitável. A sabedoria prática aparece nas estratégias utilizadas durante os confrontos e na maneira como avalia quem deve confiar ou enfrentar.
O mais fascinante em Tombstone é como essas duas tradições éticas – a cristã e a grega – convergem nos personagens. Wyatt Earp é tanto o homem justo aristotélico quanto o pecador em busca de redenção cristã. “Doc” Holliday representa o estoico que desafia o destino com coragem, mas também o amigo que encarna a caridade cristã ao oferecer sua vida pelo outro. Aliás, em “Doc” a justiça grega e a caridade cristã se entrelaçam na figura do herói trágico que, ao enfrentar o mal, também se transforma.
Em suma, Tombstone transcende o faroeste convencional ao explorar temas éticos profundamente arraigados na tradição ocidental. A coragem e a justiça gregas, a redenção, a fé e a caridade cristãs, todas se manifestam num cenário árido e violento, mostrando que, mesmo em tempos sombrios, a virtude é possível – e necessária.
Honra e redenção em meio ao caos
A grande lição de Tombstone é que a verdadeira nobreza não está apenas em seguir a lei, mas em agir com coragem, lealdade e um profundo senso de justiça – mesmo quando isso exige sacrifícios pessoais. Ao longo da narrativa, os personagens são confrontados com dilemas morais em um cenário de violência e corrupção, e suas decisões de enfrentar os Cowboys, apesar dos riscos, revelam que o dever ético muitas vezes se impõe ao interesse individual. O filme também mostra que mesmo os mais imperfeitos carregam dentro de si a capacidade de amar, proteger e, sobretudo, de se redimir. Aliás, foi Owen Strachan que conseguiu sintetizar melhor a caracterização de “Doc”:
“Val Kilmer entregou uma atuação praticamente inigualável no cânone dos filmes de faroeste ao interpretar ‘Doc’ Holliday em Tombstone. Sua interpretação está gravada com uma mistura estranha e hipnótica de rudeza, elegância, lealdade, vingança, humor e autossacrifício destemido. Ele nos mostra como é o desafio à morte no homem natural, separado da graça de Deus. É um homem à deriva em Tombstone, sem lar, encontrando consolo apenas quando a morte se aproxima tanto que ele pode sentir o hálito do ceifador em sua nuca. Não há outra atuação como essa no cinema; ela eletriza, surpreende, entristece e nos toca profundamente. Ao executar essa verdadeira aula de interpretação, Kilmer [...] o transformou em uma elegia shakespeariana. É impressionante o que ele conseguiu fazer. Eis a verdade: a atuação de Kilmer como ‘Doc’ [...] reconfigurou todo o filme em torno da lealdade fria e inabalável de seu personagem. As falas icônicas de Kilmer fazem com que muitos o citem diariamente – e com razão –, mas o humor esconde a verdadeira ressonância do papel. No fim das contas, Tombstone nos comunica que ter apenas um verdadeiro amigo – alguém que permanece ao seu lado na hora da provação – vale mais do que ouro. O ceifador veio, de fato, buscar ‘Doc’, e seu nome já estava escrito nos livros do destino. Mas ‘Doc’ também é um ceifador por conta própria, e ai daquele que ousar cruzar seu caminho – ou o de seus amigos – antes que sua hora chegue.”
VEJA TAMBÉM:
Aliás, a cena do diálogo no saloon entre Johnny Ringo e “Doc” Holiday, entremeada por provocações e frases em latim, é antológica:
Curly Bill: [pega uma nota assinada por Wyatt de um cliente e joga na mesa de faro] Wyatt Earp, hein? Já ouvi falar de você.
Ike Clanton: Escute aqui, senhor xerife do Kansas. A lei não vale por aqui. Entendeu?
Wyatt Earp: Estou aposentado.
Curly Bill: Ótimo. Isso é muito bom.
Ike Clanton: É, isso é bom, senhor xerife, porque a lei simplesmente não vale por aqui.
Wyatt Earp: Eu ouvi da primeira vez.
[vira uma carta]
Wyatt Earp: Vitória para o rei, quinhentos dólares.
Curly Bill: Cala a boca, Ike.
Johnny Ringo: [Ringo se aproxima de Doc] E você deve ser o Doc Holliday.
Doc Holliday: É o que dizem.
Johnny Ringo: Você também está aposentado?
Doc Holliday: Eu? Não. Estou no auge.
Johnny Ringo: É, parece mesmo.
Doc Holliday: E você deve ser o Ringo. Olhe só, querida [dirigindo-se a Kate], Johnny Ringo. O pistoleiro mais mortal desde Wild Bill [Hickok], dizem. O que você acha, querida? Devo odiá-lo?
Kate: Você nem o conhece.
Doc Holliday: Sim, mas tem algo nele. Algo nos olhos, não sei... me lembra de... mim. Não. Tenho certeza. Eu o odeio.
Wyatt Earp: [para Ringo] Ele está bêbado.
Doc Holliday: In vino veritas. [“No vinho, a verdade” – ou seja, “quando bebo, falo o que penso”]
Johnny Ringo: Age quod agis. [“Faça o que fazes” – ou “faça o que você faz de melhor”]
Doc Holliday: Credat Judaeus Apella, non ego. [“Que o judeu Apella acredite, eu não” – ou “não acredito que seja o que faço de melhor”]
Johnny Ringo: [bate no revólver] Eventus stultorum magister. [“Os eventos são mestres dos tolos” – ou “tolos só aprendem pela experiência”]
Doc Holliday: [sorri] In pace requiescat. [“Descanse em paz” – ou seja, “é o seu funeral!”]
Xerife Fred White: Vamos lá, rapazes. Não queremos confusão aqui. Em nenhum idioma.
Doc Holliday: Pelo visto, o sr. Ringo é um homem instruído. Agora sim, eu o odeio de verdade.
A frase de “Doc” Holliday, “I’m your huckleberry”, é uma gíria do século 19 no sul dos Estados Unidos. E significa algo como “pode contar comigo” ou “sou o homem certo pra isso”. E no clímax do filme, há outro diálogo antológico:
Johnny Ringo: Minha briga não é com você, Holliday.
Doc Holliday: Permita-me discordar, senhor. Começamos um jogo que nunca terminamos. “Apostar por sangue”, lembra?
Johnny Ringo: Ah, aquilo. Eu só estava brincando.
Doc Holliday: Eu não estava.
[...]
Doc Holliday: [para Johnny Ringo, após atirar nele no duelo] Você não é nenhuma florzinha! Você não é florzinha coisa nenhuma. Pobre alma, você era só nervoso demais.
A saga dos irmãos Earp em Tombstone aborda questões fundamentais e atemporais que continuam sendo centrais para qualquer sociedade livre e democrática no Ocidente
No fundo, Tombstone nos lembra que os heróis não são perfeitos – são pessoas comuns que escolhem fazer o certo, mesmo quando é difícil. A lealdade, a coragem diante da morte, a busca por justiça e a capacidade de se sacrificar pelo outro são os valores que brilham no meio do caos. Tombstone é uma lição sobre honra, humanidade e redenção.
30 segundos eternizados
Como John Farkis destacou em True West, “se você é fã do filme Tombstone, provavelmente gosta [do filme] [...] pelo enredo, pelos diálogos, pelos figurinos ou pelas armas. Hoje em dia, tudo é tela verde e CGI (imagens geradas por computador). Mas em Tombstone, se está na tela, é real. Das cenas de ação aos cenários. Paisagens amplas, montanhas majestosas, relâmpagos e uma poeira tão densa que dá para sentir o gosto.” Por isso, a cena da caminhada de “Doc”, Virgil, Morgan e Wyatt rumo a O.K. Corral se tornou um clássico instantâneo e uma cena definidora do filme.
Mas há ainda uma questão que pode ser suscitada. A saga dos irmãos Earp em Tombstone aborda questões fundamentais e atemporais que continuam sendo centrais para qualquer sociedade livre e democrática no Ocidente. Diante da escalada da criminalidade, surge uma pergunta: o que deve fazer a população quando a criminalidade se torna insustentável? Essa tensão entre liberdade individual e segurança coletiva atravessa séculos de história ocidental, sempre exigindo um delicado equilíbrio entre os direitos dos acusados e a necessidade de proteger os inocentes.
Essa mesma inquietação está presente hoje, em meio à crescente sensação de insegurança nas ruas e à ineficácia das instituições em lidar com o crime organizado e a violência urbana. Se nossos líderes, legisladores e reformadores tivessem uma compreensão mais profunda da história dos Earp e da complexidade moral e social que ela carrega talvez não persistissem nos mesmos erros cometidos geração após geração.
O tiroteio no O.K. Corral representa um momento em que a linha entre herói e fora-da-lei, justiça e vingança, foi testada sob o sol escaldante de uma pequena cidade do Arizona
É essencial analisar esses eventos sob a ótica contemporânea, em uma era em que políticos e ativistas, frequentemente distantes da realidade prática da segurança pública, buscam “reformar” as forças policiais com base em teorias idealizadas. Embora aspectos sociais e comunitários façam parte do trabalho policial, o propósito primordial da polícia é assegurar a ordem pública, proteger cidadãos contra criminosos perigosos e garantir que a lei tenha os meios necessários para ser efetivamente aplicada.
Nesse sentido, os Earp, apesar de suas origens controversas como jogadores e cafetões, encontraram redenção ao enfrentar e desmantelar o que era, à época, a maior quadrilha de foras-da-lei da fronteira americana, os Cowboys. Sua história é uma lembrança de que, por vezes, a civilização só se impõe quando homens comuns, investidos de autoridade, se recusam a aceitar o avanço da barbárie.
O tiroteio em O.K. Corral durou 30 segundos. Teve apenas 30 disparos. Mas teve consequências dramáticas: três mortos, vários feridos, e um ciclo de vingança que se estendeu por anos. Seu impacto é desproporcional à sua duração, o que o torna ainda mais cinematográfico. O episódio também é um símbolo do fim da fronteira selvagem – um marco na transição entre o Velho Oeste anárquico e a chegada da civilização, da lei institucionalizada e das cidades organizadas. Mas o tiroteio no O.K. Corral se tornou famoso não só por seu impacto real, mas por sua carga simbólica, pela construção mítica de seus personagens e por sua constante reinvenção na cultura popular. Ele representa um momento em que a linha entre herói e fora-da-lei, justiça e vingança, foi testada sob o sol escaldante de uma pequena cidade do Arizona – e isso, nos Estados Unidos, é puro faroeste clássico.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos