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Franklin Ferreira

Franklin Ferreira

Vida cristã

Viver na verdade em uma cultura da mentira

mentira
As máscaras, a mentira e a negação da realidade são características do mundo atual. (Foto: Imagem criada utilizando Whisk/Gazeta do Povo)

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Vivemos um tempo em que a mentira deixou de ser exceção e se tornou atmosfera; de exceção moral, passou a ingrediente estrutural da vida pública, da comunicação, da política e até da religião. A sensação de que “tudo é falso”, inclusive instituições, narrativas e valores, não é ilusão paranoica, mas percepção clara de uma sociedade que perdeu o contato com a realidade objetiva e com a verdade moral. Para o cristão, essa constatação não conduz ao desespero, mas ao discernimento. A Escritura sempre preparou o povo de Deus para viver em sociedades decadentes, onde a mentira se torna norma. Mas como viver com fidelidade numa nação construída, mantida e justificada por mentiras? E mais: como resistir a esse ambiente sem perder a integridade da fé e da consciência?

O que é mentira

A mentira, biblicamente, não é apenas informação falsa. Mentira é qualquer distorção da realidade criada por Deus. Pois a verdade não é construída; é revelada. “A tua palavra é a verdade” (Sl 119; Sl 160; Jo 17,17). Deus é verdadeiro e tudo o que contradiz seu caráter e sua ordem é falso.

A mentira surge quando a criatura rompe com o Criador e fabrica uma narrativa onde a criatura, e não Deus, é a medida de todas as coisas. Por isso Jesus afirma que “o diabo é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8,44): ele não apenas diz mentiras, mas cria mundos de falsidade, sistemas inteiros que reconfiguram moralidade, identidade, autoridade e realidade.

Tanto o catecismo católico quanto catecismos protestantes definem e tratam da mentira de forma clara, geralmente no contexto do mandamento bíblico: “Não dirás falso testemunho contra o teu próximo” (Êx 20,16).

No Catecismo Menor de Martinho Lutero (1529), o tema da mentira aparece diretamente na explicação do oitavo mandamento (na contagem luterana): “Não darás falso testemunho contra o teu próximo”. O que isso significa? Que “devemos temer e amar a Deus, para que não mintamos a respeito do nosso próximo, nem o traiamos, caluniemos ou difamemos, mas o defendamos, falemos bem dele e interpretemos tudo da melhor maneira possível”. A mentira é explicitamente proibida, sem nenhuma brecha ou exceção. Para Lutero, o mandamento abrange toda forma de mentira que prejudique o próximo ou sua reputação. No Catecismo Maior (1529), ele é ainda mais duro e detalhado. Lá ele chega a dizer que “mentir é obra própria do diabo” (Jo 8,44); “quem mente uma vez não merece mais confiança, mesmo quando diz a verdade”; quem mente “é filho do diabo” e “mata a alma do próximo”.

A mentira sempre existiu, mas como viver com fidelidade numa nação construída, mantida e justificada por mentiras?

O Catecismo de Heidelberg (1563) trata da mentira ao abordar o que é exigido no nono mandamento (na contagem reformada): “Que eu nunca dê falso testemunho contra ninguém, que não deturpe as palavras de ninguém, que não seja fofoqueiro nem caluniador, que não participe nem aprove condenações injustas [...] que eu ame a verdade, e fale e confesse sinceramente”. Para Zacharias Ursinus, não há espaço para mentiras justificáveis.

O Catecismo Maior de Westminster (1647) trata da mentira quando aborda quais são os deveres requeridos no nono mandamento: “Conservar e promover a verdade entre os homens [...] dizer a verdade [...] falar a verdade [...] em todas as ocasiões”. E, ao desenvolver quais são os pecados proibidos: “Todo prejuízo à verdade e à boa reputação do próximo [...] dar falso testemunho, mentir, caluniar”. Assim, esse catecismo condena explicitamente a mentira em todas as suas formas, sem abrir exceções.

O Catecismo da Igreja Católica (1992) trata da mentira na exposição do oitavo mandamento (na contagem católica): “A mentira consiste em dizer o falso com a intenção de enganar” (§ 2482); “A gravidade da mentira mede-se segundo a natureza da verdade que ela deforma, as circunstâncias, as intenções de quem a comete e os danos sofridos pelas vítimas. Se a mentira em si só constitui pecado venial, torna-se mortal quando lesa gravemente as virtudes da justiça e da caridade” (§ 2484). O catecismo é muito claro: a mentira é intrinsecamente desordenada (§ 2485), ou seja, sempre moralmente errada, mesmo que em alguns casos seja apenas pecado venial.

Assim, a crise contemporânea não é apenas política ou sociológica; é teológica: esquecemos Deus e, por isso, perdemos a verdade. Onde a verdade é abandonada, a mentira se torna sistema, método e regime. E o Brasil recente oferece exemplos claros de momentos em que a narrativa venceu os fatos e a mentira foi escolhida no lugar da realidade.

A libertação de Lula pelo STF

O episódio da soltura de Lula em 2019 e da anulação de suas condenações em 2021 pelo STF ilustra de forma exemplar como a mentira pode transformar-se em política de Estado. Não se trata de simples divergência jurídica, algo natural em democracias, mas da construção de uma narrativa judicial que inverteu fatos, desfez decisões colegiadas e reescreveu a história com argumentos frágeis, reinterpretados e por vezes contraditórios.

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A mensagem transmitida ao país foi clara: não importa o que é verdade; importa o que se pode fazer parecer verdade. Quando o sistema jurídico se torna instrumento de revisionismo, a justiça perde seu caráter transcendente e passa a ser mero mecanismo de poder, criando exatamente o cenário que o profeta Isaías denunciava: “A verdade anda tropeçando pelas ruas” (Is 59,14).

As eleições baseadas em mentira

A mentira institucional gera mentira política. Hoje campanhas inteiras são planejadas não sobre propostas, mas sobre engenharia emocional, manipulação de algoritmos, omissão de fatos e demonização artificial do adversário. Eleições se tornam disputas não de ideias, mas de narrativas controladas.

O problema não é apenas a desinformação, mas a gestão estatal do que deve ser considerado verdade, fenômeno típico de regimes autoritários. Quando governos, cortes ou plataformas definem quais opiniões são aceitáveis, o processo eleitoral deixa de ser realmente democrático.

O “golpe de mentira”

O Brasil viveu o absurdo histórico de um “golpe sem golpe” em 2023: sem tanques, sem tiros, sem juntas militares, sem militares mobilizados, sem tomada de instituições. Ainda assim, a narrativa oficial transformou protestos desorganizados e atos ilícitos de minorias em algo equivalente a uma insurreição armada.

Por quê? Porque a mentira é útil. Ela permite criminalizar adversários, ampliar poderes, justificar censuras, silenciar a imprensa independente e concentrar decisões em poucas mãos. Toda sociedade baseada na mentira precisa de um “inimigo imaginário” para consolidar sua ordem.

A negação da diferença de papeis entre homem e mulher, erro cada vez mais comum até em círculos evangélicos e pentecostais, é, em si, uma mentira contra a ordem da criação

Uma vida de aparências

A mentira não é apenas estatal; é pessoal. A cultura da performance digital turbinou a obsessão por aparência. Criamos identidades virtuais cuidadosamente editadas: famílias perfeitas, espiritualidade perfeita, sucesso perfeito.

Essa simulação constante corrói a alma. Quem vive de aparência passa a confundir o “eu” real com o “eu” virtual editado. O coração se acostuma com a falsidade e perde a capacidade de confessar pecados, pedir ajuda, cultivar intimidade e suportar frustrações. A mentira pública começa com a mentira privada: a incapacidade de ser quem somos diante de Deus e dos outros.

A confusão entre sexo e gênero

A ideologia de gênero nasce de uma mentira fundamental: a ideia de que a identidade humana pode ser separada da realidade biológica. Essa mentira não é pequena; é a negação explícita da criação. Se Deus fez homem e mulher (Gn 1,27), rejeitar essa distinção objetiva é rejeitar o próprio Criador – é tomar a criatura como árbitro da realidade. E toda mentira, quando elevada ao nível de sistema, torna-se rebelião espiritual.

A negação da diferença de papeis entre homem e mulher, erro cada vez mais comum até em círculos evangélicos e pentecostais, é, em si, uma mentira contra a ordem da criação. Mas, quando se avança além disso, como fazem os chamados “cristãos progressistas”, e se introduzem teorias de gênero que apagam ou relativizam completamente a distinção sexual, já não estamos apenas diante de confusão conceitual: estamos diante de uma mentira que assume forma de heresia. É heresia porque atinge diretamente quem Deus é e o que Deus fez; deturpa a realidade criada e o evangelho que se apoia nela.

Os Pais da Igreja foram claros: doutrinas que negam a bondade do corpo ou da diferença sexual são formas de gnosticismo, isto é, mentiras espiritualizadas. Os concílios confessaram Deus como criador de todas as coisas, inclusive da distinção sexual; negar isso é negar os antigos credos. A Escritura inteira mostra que essa diferença não é acidental, mas parte da sabedoria da criação e da economia da redenção.

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E aqui a gravidade se torna evidente: se a ordem sexual criada não é boa, então Cristo não teria assumido plenamente a natureza humana masculina, e sua encarnação não redimiria a humanidade integralmente. Nas Escrituras, a diferença entre homem e mulher funciona como um sinal vivo da união entre Cristo e a Igreja. Portanto, apagar essa diferença não é apenas antropologicamente falso; é teologicamente mentiroso. É distorcer o símbolo central do evangelho e minar a base da fé cristã.

Por isso a confusão de gênero contemporânea não é apenas erro; é mentira estruturada, mentira institucionalizada, mentira celebrada. E, como toda mentira aplicada à ordem criada, ela rapidamente se converte em tirania. Porque negar a realidade exige que todos participem da negação, repetindo a mentira para que ela pareça verdade. A sociedade que abraça essa falsidade não está defendendo indivíduos vulneráveis, mas destruindo os pilares civilizacionais que Deus estabeleceu para o bem do ser humano.

Quando a verdade perde o significado

O relativismo é a principal mentira da modernidade: não existe verdade universal, tudo depende de ponto de vista. No fim, porém, o relativismo não elimina a verdade: substitui a verdade por poder. Quem controla a narrativa controla a “verdade”. Por isso sociedades relativistas rapidamente se tornam autoritárias: se não há verdade transcendental, a única verdade possível é a dos mais fortes – juízes, partidos, jornalistas, celebridades, plataformas digitais. Para o cristão, isso é claro: quando o homem rejeita a verdade de Deus, Deus o entrega à ilusão (Rm 1,24-25).

O “jeitinho brasileiro”, frequentemente celebrado como traço simpático da nossa identidade, é, na verdade, mentira aplicada ao cotidiano: prometer o que não se cumpre, simular o que não existe, fingir produtividade, adulterar documentos, driblar regras, sustentar-se por aparências. Essa ética da malandragem contamina até ambientes cristãos: igrejas que escondem escândalos, líderes que manipulam números, pastores que “ajustam” narrativas para preservar reputações. O problema não é apenas a imoralidade em si, mas a cultura que normaliza a mentira. E quando cristãos aderem a essa cultura, tornam-se participantes da mesma decadência que deveriam confrontar.

Assim, o pecado da mentira inevitavelmente produz autoengano. Mentir aos outros já é perigoso; mentir a si mesmo é mortal. O coração humano possui uma assustadora capacidade de se anestesiar moralmente. Quando a mentira vira hábito, infiltra-se na consciência e acaba assumida como verdade. O mentiroso termina acreditando na própria ficção. O apóstolo Paulo descreve esse processo com precisão: ao rejeitar a verdade, o ser humano é entregue à sua própria depravação, ou seja, perde a capacidade de distinguir o real do ilusório, o certo do errado. Toda degradação moral é precedida por degradação epistemológica (Rm 1,18–32).

A fé cristã não é fuga da realidade, mas a capacidade de enxergá-la como ela é: iluminada pela Palavra de Deus

Resistir a uma cultura da mentira

Os cristãos que viveram sob o comunismo soviético e seus satélites na Europa Central enfrentaram uma realidade semelhante à nossa: Estados totalitários sustentados por uma falsidade estrutural, onde produção, economia, história, imprensa, religiosidade e até a ciência eram manipuladas.

Esses cristãos resistiram preservando a verdade no coração: memorizando as Escrituras, copiando à mão livros proibidos e reunindo-se secretamente para ler a Palavra. Também criaram pequenas comunidades de honestidade, onde famílias e igrejas se tornavam ilhas de realidade em meio ao mar de propaganda. Recusaram-se a participar dos rituais de mentira. Como lembrava Alexander Soljenítsin, “não vivam pela mentira”; não repetiam slogans, não fingiam concordância e não prestavam culto ao partido. E, quando necessário, sofreram com dignidade, perdendo empregos, liberdade e até a vida, mas guardando a alma, porque o que sustenta o fiel não é o Estado, mas a consciência diante de Deus. A vida desses homens e mulheres no Leste Europeu prova que é possível viver na verdade mesmo quando todo o sistema respira e exige mentira.

A fé cristã não é fuga da realidade, mas a capacidade de enxergá-la como ela é: iluminada pela Palavra de Deus. No coração do pecado está sempre o mesmo movimento: esquecer quem Deus é e o que Ele diz, afastando-se da verdade objetiva que sustenta o mundo. Esse esquecimento abre espaço para toda forma de ilusão, permitindo que a mentira encontre abrigo no coração e se torne critério de vida.

É aqui que algo comum se torna decisivo: calar um amigo ou amiga, um pai ou mãe ou até a própria consciência pode até impedir que você ouça o que eles pensam, mas nunca fará com que você esteja mais certo. Em outras palavras, silenciar vozes não transforma erro em verdade; apenas nos torna menos conscientes da realidade que já está diante de nós. Esse é exatamente o mecanismo do autoengano social: abafamos pessoas, censuramos ideias e sufocamos a consciência para proteger nossa narrativa, mas tudo o que conseguimos é aprofundar a cegueira interior. A mentira pode impor silêncio, mas jamais pode produzir retidão.

A fé exige exatamente o contrário: honestidade radical diante de Deus, o único que vê todas as coisas como realmente são e diante de quem nenhuma simulação se sustenta. Pois Deus vê. Deus conhece. Deus julga. Deus orienta. E, por isso mesmo, o cristão não precisa mentir nem participar da mentira para sobreviver. A mentira pode dominar instituições, mas não pode dominar o coração que pertence a Cristo. A verdade vencerá porque a verdade não é conceito: é Pessoa. E essa Pessoa reina, governa, julga e voltará: “Se vocês permanecerem na minha palavra [...] conhecerão a verdade, e a verdade os libertará” (Jo 8,31-32).

Que façamos nossa a oração de Cipriano de Cartago (De Dominica Oratione, 18): “Suplicamos também que sejamos libertos da mentira, pois o diabo é ‘mentiroso e pai da mentira’ (Jo 8,44). Todo aquele que mente torna-se semelhante ao diabo, e não a Deus”.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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