Para que serve uma empresa? Essa questão aparentemente simples é o cerne de um racha no coração do capitalismo. A discordância sobre a resposta correta vem sendo debatida desde os anos 80, mas agora ganhou um aspecto concreto com a assinatura de uma declaração, no fim de agosto, por 180 das maiores companhias dos Estados Unidos (que compõem o Business Roundtable) apoiando o conceito de "stakeholder capitalism", em contraposição ao "shareholder capitalism".
A assinatura da declaração do Business Roundtable levou duas das publicações globais mais comprometidas com a economia de mercado a assumirem posturas diferentes. A The Economist publicou ainda no fim de agosto uma reportagem de capa sobre o assunto. Seu editorial tratou a posição das 180 grandes companhias, no limite, como uma ameaça ao bom desempenho da economia. Já o Financial Times lançou nesta semana o que chama de "A nova agenda", compilando textos sobre o assunto e um editorial que vê com bons olhos o movimento das grandes corporações.
Um dos personagens centrais desse debate é o economista Milton Friedman, o Nobel de economia que foi um dos mais influentes pensadores liberais do século 20. Ele defendia que as empresas deveriam ter o resultado para os acionistas como a principal prioridade - em uma reação intelectual à crescente estatização e sindicalização ocorrida no pós-guerra. É a origem do termo "shareholder capitalism".
Logo depois da assinatura da declaração do Business Roundtable, o professor de Direito da Universidade Chicago (a mesma onde Friedman lecionou) Eric Posner publicou um artigo com o título "Milton Friedman estava errado". Ele trata a tese do capitalismo de acionistas como "espúria", ao mesmo tempo em que aponta o que falta para a boa vontade das 180 grandes empresas americanas sair da declaração e ganhar o mundo real: regulação do Estado.
A prática da discussão sobre a quem as companhias devem servir está na regulação e esse é ponto que me parece mais importante. Há uma grande dose de cinismo das empresas do Business Roundtable, muitas delas operando na forma de oligopólios e donas de alguns dos lobbies mais fortes do mundo. Sua carta de intenções para mudar o capitalismo em grande medida é fruto de seu empenho para limpar a barra após a crise de 2008 e a mudança cultural entre jovens no mundo rico, onde o socialismo deixou de ser uma causa marginal.
A única maneira de obrigar todas as empresas a abandonarem uma visão de acionistas é através da regulação. Ao saudar o movimento das grandes corporações, o Financial Times parece ignorar esse risco. O jornal diz que é preciso haver uma mudança cultural - saindo do lucro de curto prazo para uma visão de longo prazo em que todos saem ganhando, e cita dois concorrentes à Casa Branca que têm propostas intervencionistas nesse sentido, Elizabeth Warren e Bernie Sanders, como alguns dos que estão apontando para os problemas atuais. Deixa aberta a porta, assim, para que o modelo se torne uma obrigação e não uma opção.
A visão de Friedman tem uma dose elevada de bom senso. Para ele, um CEO tira recursos de outros atores - funcionários, consumidores e acionistas - quando decide apoiar causas que não são o negócio central da empresa. É como um imposto paralelo criado por pessoas sem o compromisso público controlado pela via democrática. Por que deveríamos acreditar que executivos de grandes corporações devem decidir o que é bom para a sociedade?
A visão do FT é que ignorar esse tipo de responsabilidade social leva a um tipo de capitalismo com efeitos colaterais indesejados: desigualdade, com CEOs sendo amplamente recompensados pelo preço das ações, agressão ao meio ambiente e consumidores mal tratados.
Para a Economist, um compromisso além dos acionistas pode ser uma opção de cada empresa, que assume o risco de usar seus recursos como bem entender. Ampliado para toda a economia, porém, o conceito de "stakeholder capitalism" teria dois efeitos indesejados: menor dinamismo e menor transparência. O primeiro ponto ocorre porque nem sempre uma companhia consegue preservar todos os seus parceiros. Muitas vezes, por exemplo, grandes empresas precisam demitir e fechar fábricas para focar em negócios mais promissores. O segundo ponto reverbera a tese de Friedman, já que os CEOs teriam um papel de decisão social além das fronteiras de suas corporações.
Isso não significa que o capitalismo não precisa de reformas. E aqui as lições de Friedman e outros economistas liberais continuam valendo: o sistema só funciona quando não há barreiras à competição e os objetivos das companhias são estabelecidos por seus acionistas. É isso que faz com que empresas inovem, baixem preços e se adaptem à preferência dos consumidores.
A consolidação em diversos setores da economia levou à criação de oligopólios, nos quais não há praticamente competição. Alguns segmentos de ponta atuam como monopólios, gerando mais lucro do que em um ambiente competitivo. É difícil acreditar que o compromisso com causas nobres ou a participação forçada de trabalhadores nas decisões das empresas (uma das propostas do trabalhista britânico Jeremy Corbyn para regular o capitalismo de stakeholders) traria mais competição.
A literatura questionando a capacidade de sobrevivência do capitalismo tem crescido na esteira da eleição de Donald Trump nos EUA e a aprovação do Brexit no Reino Unido. Há quem diga que o liberalismo e a globalização pararam de entregar a prosperidade prometida, provocando raiva à direita e dando voz à esquerda. O sistema político liberal estaria perdendo legitimidade por enriquecer CEOs que só ligam para o lucro de curto prazo.
Essa é uma narrativa que acerta nos sintomas. A causa, no entanto, não necessariamente está no fracasso do liberalismo, mas em como o sistema político lida com algumas das consequências do crescimento econômico. Manter a competição muitas vezes significa dizer não a fusões e aquisições, ou até mesmo pulverizar empresas. Outras vezes significa retirar barreiras de entrada criadas com o apoio de grandes corporações. Transparência pode significar dar de volta o poder de decisão para os acionistas. Além disso, fenômenos ligados à inovação, como a desocupação provocada pelo deslocamento tecnológico, precisam ser encarados de frente.
Nenhuma dessas observações impede que empresas comprometidas com alguma causa sejam bons negócios. O mercado permite que elas possam competir se forem bem geridas e se esses compromissos não forem impostos através dos lobbies que influenciam a regulação. O racha no capitalismo é um sinal de que há de que as pessoas esperam mais das corporações e que há mais de um caminho para atender esse anseio. O da competição ainda parece ser o melhor.
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