Um racha no coração do capitalismo
- [20/09/2019] [12:47]

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Para que serve uma empresa? Essa questão aparentemente simples é o cerne de um racha no coração do capitalismo. A discordância sobre a resposta correta vem sendo debatida desde os anos 80, mas agora ganhou um aspecto concreto com a assinatura de uma declaração, no fim de agosto, por 180 das maiores companhias dos Estados Unidos (que compõem o Business Roundtable) apoiando o conceito de "stakeholder capitalism", em contraposição ao "shareholder capitalism".
A assinatura da declaração do Business Roundtable levou duas das publicações globais mais comprometidas com a economia de mercado a assumirem posturas diferentes. A The Economist publicou ainda no fim de agosto uma reportagem de capa sobre o assunto. Seu editorial tratou a posição das 180 grandes companhias, no limite, como uma ameaça ao bom desempenho da economia. Já o Financial Times lançou nesta semana o que chama de "A nova agenda", compilando textos sobre o assunto e um editorial que vê com bons olhos o movimento das grandes corporações.
Um dos personagens centrais desse debate é o economista Milton Friedman, o Nobel de economia que foi um dos mais influentes pensadores liberais do século 20. Ele defendia que as empresas deveriam ter o resultado para os acionistas como a principal prioridade - em uma reação intelectual à crescente estatização e sindicalização ocorrida no pós-guerra. É a origem do termo "shareholder capitalism".
Logo depois da assinatura da declaração do Business Roundtable, o professor de Direito da Universidade Chicago (a mesma onde Friedman lecionou) Eric Posner publicou um artigo com o título "Milton Friedman estava errado". Ele trata a tese do capitalismo de acionistas como "espúria", ao mesmo tempo em que aponta o que falta para a boa vontade das 180 grandes empresas americanas sair da declaração e ganhar o mundo real: regulação do Estado.
A prática da discussão sobre a quem as companhias devem servir está na regulação e esse é ponto que me parece mais importante. Há uma grande dose de cinismo das empresas do Business Roundtable, muitas delas operando na forma de oligopólios e donas de alguns dos lobbies mais fortes do mundo. Sua carta de intenções para mudar o capitalismo em grande medida é fruto de seu empenho para limpar a barra após a crise de 2008 e a mudança cultural entre jovens no mundo rico, onde o socialismo deixou de ser uma causa marginal.
A única maneira de obrigar todas as empresas a abandonarem uma visão de acionistas é através da regulação. Ao saudar o movimento das grandes corporações, o Financial Times parece ignorar esse risco. O jornal diz que é preciso haver uma mudança cultural - saindo do lucro de curto prazo para uma visão de longo prazo em que todos saem ganhando, e cita dois concorrentes à Casa Branca que têm propostas intervencionistas nesse sentido, Elizabeth Warren e Bernie Sanders, como alguns dos que estão apontando para os problemas atuais. Deixa aberta a porta, assim, para que o modelo se torne uma obrigação e não uma opção.
A visão de Friedman tem uma dose elevada de bom senso. Para ele, um CEO tira recursos de outros atores - funcionários, consumidores e acionistas - quando decide apoiar causas que não são o negócio central da empresa. É como um imposto paralelo criado por pessoas sem o compromisso público controlado pela via democrática. Por que deveríamos acreditar que executivos de grandes corporações devem decidir o que é bom para a sociedade?
A visão do FT é que ignorar esse tipo de responsabilidade social leva a um tipo de capitalismo com efeitos colaterais indesejados: desigualdade, com CEOs sendo amplamente recompensados pelo preço das ações, agressão ao meio ambiente e consumidores mal tratados.
Para a Economist, um compromisso além dos acionistas pode ser uma opção de cada empresa, que assume o risco de usar seus recursos como bem entender. Ampliado para toda a economia, porém, o conceito de "stakeholder capitalism" teria dois efeitos indesejados: menor dinamismo e menor transparência. O primeiro ponto ocorre porque nem sempre uma companhia consegue preservar todos os seus parceiros. Muitas vezes, por exemplo, grandes empresas precisam demitir e fechar fábricas para focar em negócios mais promissores. O segundo ponto reverbera a tese de Friedman, já que os CEOs teriam um papel de decisão social além das fronteiras de suas corporações.
Isso não significa que o capitalismo não precisa de reformas. E aqui as lições de Friedman e outros economistas liberais continuam valendo: o sistema só funciona quando não há barreiras à competição e os objetivos das companhias são estabelecidos por seus acionistas. É isso que faz com que empresas inovem, baixem preços e se adaptem à preferência dos consumidores.
A consolidação em diversos setores da economia levou à criação de oligopólios, nos quais não há praticamente competição. Alguns segmentos de ponta atuam como monopólios, gerando mais lucro do que em um ambiente competitivo. É difícil acreditar que o compromisso com causas nobres ou a participação forçada de trabalhadores nas decisões das empresas (uma das propostas do trabalhista britânico Jeremy Corbyn para regular o capitalismo de stakeholders) traria mais competição.
A literatura questionando a capacidade de sobrevivência do capitalismo tem crescido na esteira da eleição de Donald Trump nos EUA e a aprovação do Brexit no Reino Unido. Há quem diga que o liberalismo e a globalização pararam de entregar a prosperidade prometida, provocando raiva à direita e dando voz à esquerda. O sistema político liberal estaria perdendo legitimidade por enriquecer CEOs que só ligam para o lucro de curto prazo.
Essa é uma narrativa que acerta nos sintomas. A causa, no entanto, não necessariamente está no fracasso do liberalismo, mas em como o sistema político lida com algumas das consequências do crescimento econômico. Manter a competição muitas vezes significa dizer não a fusões e aquisições, ou até mesmo pulverizar empresas. Outras vezes significa retirar barreiras de entrada criadas com o apoio de grandes corporações. Transparência pode significar dar de volta o poder de decisão para os acionistas. Além disso, fenômenos ligados à inovação, como a desocupação provocada pelo deslocamento tecnológico, precisam ser encarados de frente.
Nenhuma dessas observações impede que empresas comprometidas com alguma causa sejam bons negócios. O mercado permite que elas possam competir se forem bem geridas e se esses compromissos não forem impostos através dos lobbies que influenciam a regulação. O racha no capitalismo é um sinal de que há de que as pessoas esperam mais das corporações e que há mais de um caminho para atender esse anseio. O da competição ainda parece ser o melhor.
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Comentários [ 19 ]
Rômulo Viel
± 8 dias
Boa discussão...
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Antônio Márcio
± 9 dias
Muito boa análise.
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Baulé
± 9 dias
não concordo com a premissa de que a única maneira de implementar o stakeholder capitalism seja pela intervenção estatal, acho que é uma evolução benéfica, que vai tornar a "vida fácil" dos CxO mais desafiadora e os seus altos rendimentos mais "merecidos", se um conselho de administração cobra isso dos CxO, aplausos, se o estado for se meter nisto, vaias! o estado deve se meter na briga de arena das empresas unicamente e justamente para estimular a competição, coibir oligopólios, proibir monopólios (inclusive estatais) e acabar com privilégios de qualquer natureza.
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GUSTAVO_RJ_70
± 10 dias
Nos anos 70 empresas como Microsoft e Apple foram criadas com intuito, entre tantos, de derrubar a gigante (e 'maldosa') IBM. Pois bem, essas daí se agigantaram, passaram e muito a IBM, e se tornaram, junto com o Google, muito piores que ela, no sentido de impedirem a competição. As empresas de garagem hoje são criadas para serem compradas por essas gigantes, pois sabem que não tem chance de chegar ao topo. Fora que o Google manipula as buscas e promove ideias progressistas e esconde e desmonetiza conteúdo conservador. (seus fundadores, pegos em vídeo de 2016, disseram que a missão agora é barrar Trump)
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Diz
± 10 dias
Pois é, aí temos um globalismo de esquerda, usando como disfarce o capitalismo para impor a dominação do mundo.
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Willy Rossi Dierkes
± 10 dias
Em qual empresa você investiria? Com a palavra os realistas.
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Celio Aparecido Alves Beserra
± 10 dias
Até admito que a eterna questão “ Regulação Estatal x Livre Mercado” mereça ser discutida, mas aconselho que a turma intervencionista escolha nomes melhores que Warren Pocahontas, Crazie Sanders e Anti-semita Corbyn...
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GuiMazzo
± 11 dias
Na minha humilde opinião, aqui está a principal falha do Estado onde o compete regular o capitalismo e não o faz, principalmente no Brasil: "...Manter a competição muitas vezes significa dizer não a fusões e aquisições, ou até mesmo pulverizar empresas. Outras vezes significa retirar barreiras de entrada..."
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Vanderli Camorim
± 11 dias
Mais um socialista que não gosta de mostrar a cara. Denigre o capitalismo mas adora as facilidades e comodidades que este lhe fornece. Mal agradecido? Sem noção? O socialista malha o capitalismo a todo momento que acha oportuno. Sem o capitalismo que gera riqueza o socialista não existiria. O socialista é o parasita do capitalismo. Em alguns casos torna-o anêmico e pode até mata-lo. É a natureza do parasita.
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renato mello
± 11 dias
"m resumo, com essa proposta teremos produtos e serviços mais caros. Os CEOs decidirão onde irão alocar os recursos com base em influências políticas de governos de esquerda ou de direita e a maior parte dos consumidores suportarão custos maiores. O mesmo aconteceu na década de 80 nos EUA quando as empresas foram sujeitas a tributação mais cara perdendo o interesse na inovação com o Japão assumindo a vanguarda tecnológica. As empresas chinesas devem estar rindo à toa.
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HENRIQUE
± 11 dias
É pra levar isso a sério ou é uma coluna de humor?
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Oliveira
± 11 dias
Menos Friedman, mais Mises.
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Biancogres Cerâmica SA
± 11 dias
Tem como dar 1000 likes?
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Vitor Chvidchenko
± 11 dias
Quem fala em mais "regulações" com um suposto fim "nobre" de tornar o capitalismo mais "humano", ou é ignorante em Economia, ou está agindo de má-fé. A história tem mostrado que as maiores fontes de formação de monopólios e de grandes corporações que abusam de seu poder têm sempre sido a associação espúria entre grandes empresas e governo - o que é conseguido justamente através das tais "regulações". A melhor forma de eliminar do mercado corporações que agem de forma deletéria à sociedade ainda é a de permitir a livre concorrência e livre entrada de novos competidores, e deixar o consumidor escolher de quem quer comprar.Nada de interferência estatal, mesmo que travestida de "boas intenções".
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WILSON VICENTE COSTA DE ALVARENGA
± 11 dias
Excelente artigo.
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Patrick
± 11 dias
Muito interessante. Quando li pela primeira vez a respeito desse assunto, achei apenas que seria uma tacada hipócrita e "bonitinha" desses CEOs. Não sabia que havia uma questão de regulação governamental por trás. Nesse caso, acabei me lembrando de A Revolta de Atlas da Ayn Rand com aqueles personagens dizendo toda hora que "é preciso pensar no social".
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Juliana Saad de Carvalho
± 9 dias
Excelente discussão!
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GUSTAVO_RJ_70
± 10 dias
mas Patrick... "quem é John Galt ??" kkkk, tmj
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renato mello
± 11 dias
Em resumo, com essa proposta teremos produtos e serviços mais caros. Os CEOs decidirão onde irão alocar os recursos com base em influências políticas de governos de esquerda ou de direita e a maior parte dos consumidores suportarão custos maiores. O mesmo aconteceu na década de 80 nos EUA quando as empresas foram sujeitas a tributação mais cara perdendo o interesse na inovação com o Japão assumindo a vanguarda tecnológica. As empresas chinesas devem estar rindo à toa.
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