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Protesto feminista nos Estados Unidos.
Protesto feminista nos Estados Unidos.| Foto: miawicks9/Pixabay

Foi com certo grau de espanto que encaminhei para alguns amigos o agora famoso artigo de Musa al-Gharbi na Compact Magazine, publicado em fevereiro deste ano. Só tomei conhecimento da peça em abril, via comentários na Quillete, e àquela altura o assunto não havia pipocado na mídia brasileira. A coisa só ferveu agora, quando a Folha de S.Paulo usou uma chamada com o rosto de Ron DeSantis, concorrente de Trump no Partido Republicano, para entregar o recado: “Movimento ‘woke’ entrou em declínio nos EUA, indicam pesquisas”.

O argumento básico do artigo é que os profissionais envolvidos com a “economia do conhecimento” – aqueles em tecnologia, finanças, educação, jornalismo, artes, entretenimento, design e consultorias – se tornaram cada vez mais identitaristas a partir de 2011 ou 2012, e ao mesmo tempo, cada vez mais radicais e intolerantes com a divergência. Mas, por alguma razão, a partir de 2020, o comportamento começou a mudar, com universidades se recusando a demitir ou punir professores politicamente incorretos, jornais adotando posturas ideologicamente mais moderadas e tolerando melhor os conservadores, empresas de comunicação resistindo a pressões da militância de esquerda e até mesmo uma desaceleração nas contratações em departamentos de “Diversidade, Igualdade e Inclusão” (DEI) em grandes corporações. Até mesmo a exploração de adesões ao socialismo democrático nos EUA, capitaneada por jovens profissionais homens e brancos (90% das adesões), começou a declinar em 2021.

Ou seja, o “Great Awokening” – ou o “grande despertamento” da consciência identitarista – aparentemente estaria em declínio nos EUA. Se isso se confirmar, pode ser que a grande histeria identitarista entre em processo de regressão em outras democracias como o Brasil.

A possível moderação do radicalismo de esquerda pode reduzir o fosso entre cristãos e não cristãos, facilitando a evangelização e a integração de pessoas de sensibilidade liberal-progressista na igreja

Musa al-Gharbi é sociólogo e professor da Universidade de Columbia, nos EUA, prolífico tanto na ciência quanto como analista em fundações e jornais importantes. Entre seus assuntos preferidos, os temas identitários, a sociologia e a economia da produção do conhecimento, e temas políticos afins. Mas o artigo na Compact, que fez seu nome reverberar por meses, é parte de uma iniciativa maior: um livro que será publicado em breve pela Princeton University Press: We have never been Woke: Social justice discourse, inequality and the rise of a new elite (“Nunca fomos Wokes: Discurso de justiça social, desigualdade, e a ascensão de uma nova elite”).

A obra, a julgar por seus trabalhos até agora e pelo press release, tematiza a ascensão de “uma nova classe de elites sociais que não atingiu a sua posição social pela posse de recursos materiais, nem pelo desenvolvimento ou comércio de bens e serviços materiais. Antes, elas trafegam em símbolos e retóricas, imagens e narrativas, dados e análises, ideias e abstrações”. Al-Gharbi chama essa elite de “capitalistas simbólicos”, e argumenta que os temas do antirracismo, feminismo, direitos homotrans, ambientalismo e outros se tornaram instrumentos desses capitalistas, visando enquadramento e deslegitimação dos oponentes. Em outros termos: eles são produtores de conteúdo em uma nova guerra de classes.

O mais interessante para mim – e para os que acompanham essa coluna – é que Al-Gharbi identifica expressamente os novos capitalistas simbólicos como “Classe Criativa”, justamente esse círculo que compõe a elite cosmopolita urbana, tanto nos EUA quanto no Brasil. O sociólogo os define como grandes players na economia do conhecimento, controlando as grandes instituições da economia do conhecimento. A atual guerra cultural tupiniquim é, segundo tenho argumentado repetidamente, um conflito entre a nossa elite cosmopolita, controladora dos meios de produção simbólica, e um largo proletariado cultural conservador, em grande medida católico e evangélico. Al-Gharbi parece ser um dos pensadores que podem nos ajudar na decifração da economia política desse conflito.

A reação de vários colegas ao ler o artigo foi similar à minha própria: uma mistura de ceticismo e curiosidade, já que por aqui o incêndio identitarista segue se alastrando, e intensamente, àquela altura, alimentado pelos ventos da revanche antibolsonarista. Nossas evidências locais não pareciam favorecer a tese. Mas foi impossível não notar que neste mês de junho, as celebrações do “orgulho gay” foram muito mais tímidas que as dos últimos dois anos, e isso foi notado especialmente por profissionais em ambientes corporativos. A impressão generalizada de que o “evangelho” das divisões de publicidade e DEI estava prejudicando os negócios ganhou expressão, por exemplo, na newsletter The News de 28 de junho. Entre as explicações: o publico evangélico é conservador nos costumes e grande demais para ser simplesmente ignorado. E, no entanto, é um dos mais ignorados pelas divisões DEI das grandes empresas. Um descolamento da realidade que só poderia custar caro.

Falando agora como líder evangélico: a moderação do puritanismo identitário é uma boa nova em muitos sentidos. Em primeiro lugar, pelo óbvio fato de que essa obsessão moralista é, como disse Mark Lilla, uma força despolitizadora, que quebra as pontes entre os cidadãos e destrói o seu sentido de bem comum. Se isso fez mal aos EUA – e foi importado para cá –, com sua tradição associativista e cívica, o que significaria para o Brasil, a não ser a crise da democracia? Em segundo lugar, porque alimenta o ódio contra o conservadorismo e contra a piedade evangélica, o que ameaça objetivamente o status profissional e a liberdade acadêmica dos evangélicos, exatamente como aconteceu nos EUA.

Mas a terceira e mais importante razão para celebrar essa possível moderação do radicalismo de esquerda é que ela pode reduzir o fosso entre cristãos e não cristãos, facilitando a evangelização e a integração de pessoas de sensibilidade liberal-progressista na igreja. A conversa honesta e amigável sobre a fé e a proclamação do evangelho de Jesus Cristo podem acontecer em qualquer situação, e mesmo em contextos de perseguição e conflito religioso; mas é claro que, sem o excesso de ruído político, a comunicação pode ser muito melhor. E a igreja cristã deve sempre se lembrar de que seus inimigos são o próprio alvo de suas orações e de sua missão evangelizadora.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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