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Detalhe de afresco de Fra Angelico mostra São Lourenço sendo julgado pelo imperador romano Valeriano.
Detalhe de afresco de Fra Angelico mostra São Lourenço sendo julgado pelo imperador romano Valeriano.| Foto: Reprodução/Domínio público

Causou furor a campanha conjunta do governo do estado da Bahia com a Secretaria da Promoção da Igualdade Racial e dos Povos e Comunidades Tradicionais (Sepromi) no Instagram, no ar há vários dias. A primeira imagem interpela: “Você acha que não, mas é intolerância religiosa sim...” E, no texto do post, um lamento perfeitamente plausível:

“Infelizmente, em pleno 2023, seja por falta de conhecimento ou por discriminação, a justificativa para casos de intolerância religiosa segue disfarçada de opinião. Mas esses tipos de frases e comentários carregados de ódio são crimes, de acordo com o Código Penal Brasileiro.”

E o que se segue é o típico carrossel do Instagram. Só que, no caso, um carrossel de mentiras patrocinadas pelo poder público.

“Não é só Jesus”

A marmota já começa no segundo slide, que inclui, entre as frases que constituiriam crime:

Você precisa encontrar Jesus”: “Não é só Jesus. O princípio básico de todas as religiões é o amor, o que basta é encontrar aquela que te faz bem e que eleve a espiritualidade e o afeto entre as pessoas.”

Antes de tudo, devo perguntar: por que diabos o governo do estado da Bahia se meteu a discutir a verdade religiosa? Quem é o governo do estado da Bahia para dizer se é ou se não é “só Jesus”? Ele até poderia ter dito “não é só o cristianismo”, e estaríamos na seara do pluralismo religioso. Mas negar que alguém precise conhecer Jesus é uma intromissão teológica; é o Estado metendo o seu dedo sujo no feijão. Vai azedar.

Negar que alguém precise conhecer Jesus é uma intromissão teológica; é o Estado metendo o seu dedo sujo no feijão

É compreensível, embora torpe, que o Império Romano tenha feito isso; um governo que tinha um panteão, e um panteão aberto. Os romanos até aceitariam Jesus, se ele fosse apenas mais um dos deuses reconhecidos pelo império como Religio Licita, e se os cristãos topassem cultuar a Jesus e ao imperador ao mesmo tempo. O problema é que os cristãos não toparam; negaram a existência de todos os deuses e ainda por cima afirmaram que Jesus, o Rei dos reis, era rei até de César.

Mas o conflito cristão com as autoridades começou antes mesmo disso, quando os discípulos de Jesus começaram a pregar a todos que Jesus era o Messias, e que todos precisavam encontrar Jesus. As autoridades de Jerusalém ficaram furiosas, porque isso questionava sua sabedoria e sua autoridade, e mandaram trazer os homens:

“E, depois de trazê-los, os apresentaram ao Sinédrio. E o sumo sacerdote os interrogou, dizendo: Não vos ordenamos expressamente que não ensinásseis nesse nome? Mas enchestes Jerusalém desse vosso ensino e quereis lançar sobre nós o sangue desse homem. Respondendo, Pedro e os apóstolos disseram: É mais importante obedecer a Deus que aos homens.” (Atos 2,27-29)

O problema é esse mesmo: se você prega que Jesus é o único caminho para Deus, e que os outros caminhos são falsos, vai deixar muita gente irritada. Mas suponhamos que você tenha absoluta certeza disso, tanto quanto Pedro, que alegava ter visto o Cristo ressuscitado. Honestamente: você daria a mínima para os sentimentos das autoridades, com o destino eterno dos outros em jogo? Se Cristo ressuscitou, não é muito mais importante obedecê-lo do que ao governo do estado da Bahia?

Pois bem: apenas suponhamos que de fato Jesus seja o único caminho para Deus: nesse caso, quem tiver essa informação estará automaticamente sob a obrigação moral de dizer, a todas as pessoas que puder, que elas precisam encontrar Jesus. E esse anúncio de Jesus não seria uma violência, mas um ato de amor, tanto quanto convencer pessoas antivacina de que a vacina é boa para elas, por exemplo.

Mas o governo do estado da Bahia, do alto de sua competência sacerdotal, quer regular o discurso religioso público e convencer os cristãos de que só eles precisam de Jesus! Pior: quer criminalizar a evangelização.

Não há a menor possibilidade de essa estratégia colar, no caso do cristianismo. Porque o que há, no coração do cristianismo, é um evangelho. A palavra “evangelho” vem do grego euangelion, que significa boa notícia. É isso, uma notícia. Ela vem sendo noticiada, ensinada e argumentada há séculos. Noticiar a boa notícia é o trabalho das igrejas cristãs há mais de 2 mil anos.

Tudo isso me causa uma preguiça mortal.

Violando a laicidade do Estado

O cristianismo não chegou à liberdade religiosa e ao princípio da laicidade sob a tutela de mentes secularizadas, mas a partir de seus recursos internos. A própria formulação moderna do princípio da tolerância nasceu em berço cristão. Providence, a primeira comunidade moderna combinando separação de igreja e Estado e plena liberdade religiosa, foi fundada em 1630 pelo teólogo batista Roger Williams em Rhode Island. John Locke, para dar outro exemplo, era um pensador protestante.

E o que a laicidade do Estado significa, na origem? Não que a religião seja proibida de ter presença pública e de se disseminar, mas que o Estado é proibido de se meter nas coisas da religião. A laicidade existe para proteger as igrejas e a sociedade civil da interferência estatal. De modo que o post do governo da Bahia é uma violação da laicidade do Estado.

E, como se não bastassem seus pitacos teológicos espúrios, o governo do estado da Bahia assume a posição de sacerdote, para ensinar sobre como o cidadão deve escolher uma religião: “O que basta é encontrar aquela que te faz bem e que eleve a espiritualidade e o afeto entre as pessoas.” Desde quando governo é guru para dizer o que basta em religião?

O Estado é proibido de se meter nas coisas da religião. A laicidade existe para proteger as igrejas e a sociedade civil da interferência estatal. De modo que o post do governo da Bahia é uma violação da laicidade do Estado

Mas, quanto ao mérito da questão, para o cristianismo nada disso “basta”. Como dizia Francis Schaeffer, ou a fé cristã é a verdade sobre o universo, ou não vale a pena. Daí a tradição cristã ter se esforçado para encontrar critérios racionais e sensíveis para essa discussão. A crítica do sagrado é uma questão de vida ou morte.

Mas esse critério do governo do estado da Bahia é tão notoriamente instrumental e sentimentalizado que se torna indistinguível de uma peça de autoajuda. Poderia ser usado para descrever a terapia de grupo, a equipe de trabalho na empresa, uma roda de maconha, a melhor balada do finde ou as samambaias que você quer espalhar na varanda. Serve até para a trilha sonora da festa de aniversário: “o que basta é encontrar a melhor playlist, que te faz bem e que eleve a espiritualidade e o afeto entre as pessoas”. Uma verdadeira piada.

O que o governo do estado da Bahia faz é propor uma concepção terapêutica e laicista sobre a função da religião, e tentar enquadrar nela a pregação cristã.

“Não temos direito de julgar e criticar”

É de gesso, não vai te ouvir: “Cada pessoa é livre para acreditar no que quer e seguir o que acha ser o melhor para si. Não temos o direito de criticar ou julgar.”

De fato, cada pessoa é livre para acreditar no que quiser. Mas não consigo me lembrar em qual parágrafo da Constituição, em qual código legal ou em qual documento do sistema internacional de direitos humanos se pode ler que criticar ou julgar a crença do outro seria proibido. Deve ser porque isso não existe em lugar nenhum. É invenção de algum estagiário do Sepromi.

A verdade é, muitíssimo pelo contrário, que as crenças e práticas religiosas não estão sob a mesma proteção que a dignidade da pessoa humana. Como já escrevi aqui na Gazeta, criticar o sagrado do outro não viola os direitos humanos.

Em 2001 um grupo de países islâmicos liderados pelo Paquistão conseguiu a aprovação, no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Durban, de uma resolução sobre o “combate à difamação das religiões”. A tese era de que a difamação da religião seria fonte de violência; mas o que esses países queriam era normalizar suas leis antiblasfêmia sob a alegação de que elas protegiam a sociedade. Muitos jornalistas e religiosos foram mortos ou silenciados com base nessas leis. À medida que o assunto era discutido mais detidamente, ficou claro que a tese geraria uma censura intolerável, legitimando crimes contra a liberdade religiosa e a liberdade de expressão em muitos países.

O Parlamento Europeu acabou rejeitando a tese das leis de blasfêmia a partir da Resolução 1.510, de 2006. Em seguida, a Recomendação 1.805, de 2008, negou que o insulto religioso ou difamação de religião fosse ato criminoso segundo as normas da ONU, afirmando que comentários de conteúdo religioso só seriam puníveis se com clara intenção de causar distúrbio e incitar à violência. A assembleia decidiu que a legislação europeia deveria ser revisada para garantir que a blasfêmia ou insulto a uma religião nunca fossem considerados atos criminais.

Depois disso, em 2009, o Conselho de Direitos Humanos sofreu enorme pressão de religiões e de organizações da sociedade civil, bem como de alguns países, como os EUA, mas a tese das leis antiblasfêmia persistia. Até que em 2011, ano da Primavera Árabe, a Organização para a Cooperação Islâmica (OIC) finalmente desistiu de sua tese histórica. Foi publicada a famosa Resolução 16/18, na qual a estereotipificação negativa de pessoas com base em sua religião ou crença foi condenada, mas as leis antiblasfêmia e a proibição da crítica à religião foram igualmente rejeitadas. Foi um avanço muito importante: a dignidade das pessoas religiosas tem de ser protegida, mas as crenças religiosas não herdam essa dignidade. Elas estão sujeitas a debate público.

A se levar a sério essa estúrdia proposta pelo governo do estado da Bahia, toda a discussão racional seria imediatamente expulsa do mundo da fé

O Plano de Ação de Rabat, que refina e especifica as providências para implementação da Resolução 16/18, foi aprovado na 22.ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, chegando à seguinte orientação:

“Frequentemente se supõe que a liberdade de expressão e a liberdade de religião ou crença teriam relações tensas ou mesmo contraditórias. Na realidade, elas são mutuamente dependentes e se reforçam. A liberdade de exercitar ou não exercitar a religião ou crença por alguém não pode existir se a liberdade de expressão não for respeitada (...) De fato, o pensamento livre e crítico no debate público é a forma mais saudável de testar se interpretações religiosas aderem ou distorcem os valores originais que subjazem à crença religiosa.”

Depois de 20 anos de debates, essa foi a conclusão mais acertada. Pense comigo o leitor: a se levar a sério essa estúrdia proposta pelo governo do estado da Bahia, toda a discussão racional seria imediatamente expulsa do mundo da fé. Com o direito de debater criticamente a religião abolido, não morreria apenas a liberdade de expressão; morreria instantaneamente quase toda a filosofia da religião moderna.

E o carrossel do governo do estado da Bahia segue girando, com mais absurdos:

“Macumba é coisa do Satanás”: “As religiões de matrizes africanas são parte da nossa diversidade religiosa e têm como referência a cultura e ancestralidade de vários povos. Ofender essas crenças é espalhar ódio.”

“Ofender crenças é espalhar ódio”? Mais uma mentira deslavada. O pressuposto do debate público é justamente que crenças podem ser questionadas e refutadas – e, assim, “ofendidas”. O que não pode ser ofendido é a pessoa. Porque dignidade humana não torna crenças respeitáveis. Crenças só são dignas de respeito se forem provadas intelectualmente sustentáveis e eticamente férteis.

A crítica ao sagrado é absolutamente necessária para revelar o falso sagrado e auxiliar na caminhada religiosa

Na verdade, os instrumentos internacionais deixam claro que as crenças religiosas podem ser escrutinizadas e contestadas no debate religioso e filosófico público, desde que as pessoas não sejam estereotipadas e que a violência não seja estimulada. Dizer que alguém foi enganado por um demônio não é negar a dignidade humana fundamental, nem significa uma autorização para a violência. Seria Jesus Cristo um inimigo da dignidade humana porque expulsava demônios?

“Crente ou quente?” “Declarações, julgamentos e atitudes praticadas para desqualificar a fé de uma pessoa instigam o preconceito e potencializam violências.”

Céus! Nesse caso podemos jogar a tradição profética hebraica inteirinha no lixo. Incluindo todos aqueles irritantes textos milenares nos quais os profetas questionavam a fé das autoridades de Israel por seu desprezo pelo pobre. E quando um pastor tiver comportamento de mercenário? Sua fé não poderá mais ser questionada? E quanto à hipocrisia e à inautenticidade religiosa? Não devem ser questionadas?

E quanto ao fundamentalismo religioso? Aparentemente o governo do estado da Bahia se esqueceu de que chamar uma crença ou uma sociedade religiosa de “fundamentalista” desqualifica a fé e instiga o preconceito. Será que os wahabistas do Estado Islâmico podem ser chamados de fundamentalistas? Aparentemente não, porque isso “potencializa a violência”.

A ideia parece ridícula porque é ridícula mesmo. O que deveria ser dito é que “declarações, julgamentos e atitudes praticadas para desqualificar as pessoas de uma certa fé instigam o preconceito”. Mesmo assim, entre a crítica da religião e a violência há uma longa estrada, e não se pode colocar a conta da violência na mera crítica religiosa. Pelo contrário: a crítica ao sagrado é absolutamente necessária para revelar o falso sagrado e auxiliar na caminhada religiosa.

Mentiras, mentiras, mentiras

“Isso lá é religião?” “Todas as doutrinas promovem bons sentimentos e afeto. Ser intolerante é atitude que vai contra qualquer princípio religioso. Um terreiro é tão sagrado quanto uma igreja.”

Falso. Não é verdade que todas as doutrinas promovem bons sentimentos e afeto. O cristianismo, por exemplo, promove a culpa. Claro, eu considero a culpa um bom sentimento, se você realmente é culpado, mas muitos psicanalistas alegariam que o cristianismo deixa as pessoas doentes. O cristianismo e o judaísmo também promovem, por exemplo, a suspeita contra as outras religiões, por sua tese monoteísta – o que, para mim, é uma coisa boa. O wahabismo promove a violência religiosa. A teologia da prosperidade promove a ganância. Essa conversa mole de que todas as religiões ensinam a mesma coisa tem de acabar.

Ademais, lugares sagrados de outras religiões não são sagrados universalmente; isso é a mais pura tolice. O sagrado do outro não é automaticamente sagrado para mim, sem uma experiência de transcendência, uma narrativa e vínculos espirituais com aquele lugar. Como podemos considerar sagrados lugares de culto dedicados a deuses que para nós são inexistentes, por exemplo? O que consideramos sagrado, isso sim, é o sentimento religioso do próximo. Isso é algo que precisa ser tratado com o máximo de seriedade. Nesse caso, respeitamos lugares sagrados em respeito à sacralidade da pessoa humana.

Há uma realidade aqui que todos conhecemos, mas poucos confessam: boa parte desses gestores públicos (não todos) não acredita em nada mesmo, em termos religiosos, e trabalha para tornar as religiões o mais domesticadas possível dentro de um paradigma liberal-progressista. Para muitos deles, a verdade que existe é a verdade político-ideológica, e as religiões seriam no máximo formas de elevar a “espiritualidade”.

O governo do estado da Bahia – e, nesse respeito, um grande naco da militância progressista – não quer ver cristãos dizendo para as pessoas que elas precisam de Jesus. Porque o proselitismo cristão interfere na Pax Liberalia

Isso não seria um problema se essa neutralidade se mantivesse apenas heurística, sem que os gestores públicos se metessem a consertar as religiões para que elas joguem o seu jogo político. O problema com o progressismo nos últimos 20 anos é que ele não se contenta mais com isso. Ele quer todas as religiões jogando com as suas cartas, e para tanto não pode aceitar à mesa qualquer discussão sobre a verdade das doutrinas, nem um mercado religioso aberto. Todas as religiões são lindas e iguais porque são todas igualmente falsas.

É por isso que o princípio da tolerância e da liberdade foi substituído pela “diversidade”. Diversidade é uma coisa estética, carnavalesca; como nossas diferenças não importam, sendo apenas superficiais, podemos celebrá-las alegremente. Tolerância é outra história; é admitir não apenas a diferença, mas a divergência. E admitir a divergência é admitir que o outro me diga: você está errado.

O governo do estado da Bahia – e, nesse respeito, um grande naco da militância progressista – não quer ver cristãos dizendo para as pessoas que elas precisam de Jesus. Porque o proselitismo cristão interfere na Pax Liberalia. Não é isso uma versão fofa do que fazia o Império Romano?

E assim, infelizmente, em pleno 2023, seja por falta de conhecimento ou por discriminação, a justificativa para restringir a liberdade religiosa segue travestida de direitos humanos.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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