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Emma Woodhouse (interpretada por Gwyneth Paltrow) e George Knightley (Jeremy Northam) em cena de “Emma”, adaptação de 1995 da obra de Jane Austen.
Emma Woodhouse (interpretada por Gwyneth Paltrow) e George Knightley (Jeremy Northam) em cena de “Emma”, adaptação de 1995 da obra de Jane Austen.| Foto: Divulgação

Em nossa coluna da semana passada introduzimos uma nova categoria para entender – e criticar – o programa moral da esquerda brasileira: a noção de capitalismo emocional. Programa moral “da esquerda”, grosso modo, obviamente. Há muita gente nesse campo político que mantém éticas pró-vida, pró-casamento e pró-família, mas é claro que elas são hoje uma minoria quase sem voz e com pouca coragem. Daí que seguiremos falando em ética “da esquerda” ou, como eu prefiro dizer, do “liberalismo expressivo”.

Afinal, a esquerda atual é, no campo da micropolítica do corpo, do sexo e da família, completa e acabadamente liberal. Sua ética sexual standard é o liberalismo moral, essa visão de que a única norma para a regulação das relações afetivo-sexuais é o consentimento. Em suma, “meu corpo, minhas regras”. O aborto é só o direito de jogar fora o “lixo” produzido pelos atos sexuais do Homo consumans.

Nossa alegação é que essa ética sexual “progressista” não passa de uma ferramenta de expansão do capitalismo emocional. Ou, em outros termos, o liberalismo moral é a falsa consciência sexual do capitalismo emocional. Esse capitalismo trouxe, sim, um aumento da liberdade de escolha, mas que podemos considerar contraditório, uma vez que destruiu mais riquezas do que produziu, levando a uma ampla refugação da saúde comunitária e, em muitos casos, da própria felicidade individual.

O liberalismo moral é a falsa consciência sexual do capitalismo emocional

O mercado do amor

Em Por que o amor fere: uma explanação sociológica (Why Love Hurts: a sociological explanation, de 2012), um tour de force na sociologia da afetividade moderna, Eva Illouz assumiu o encargo de fazer com o amor o que Marx fez com as commodities:

“[...] mostrar que ele é moldado e produzido por relações sociais concretas; que o amor circula em um mercado de atores competidores desiguais; e argumentar que algumas pessoas detêm maior capacidade de definir os termos nos quais são amadas do que outras.”

Essa abordagem se segue àquela já assumida em O amor nos tempos do capitalismo: se, por um lado, o capitalismo de consumo se reconstrói a partir da lógica afetiva, por outro lado a afetividade se reestrutura segundo a lógica do capitalismo de consumo, num “entrelaçamento do emocional e do econômico”.

Assumindo uma postura honestamente moderna-crítica, Illouz louva os valores emancipatórios da modernidade, mas admite que eles trouxeram miséria emocional e a destruição de mundos de vida tradicionais, fazendo da “insegurança ontológica uma característica crônica das vidas modernas”. Essas misérias seriam resultantes da desregulamentação dos mercados afetivos e do matrimônio, criando uma situação de laissez-faire emocional que, embora aumentando a liberdade sexual das mulheres, elevou grandemente o risco e a incerteza do envolvimento afetivo.

Tomando como exemplo a caracterização do amor na obra de Jane Austen, no princípio do século 19, Illouz nota que o amor aparece associado a uma elevada capacidade de discernimento e a um sólido compromisso moral com o progresso da pessoa amada. Comentando a unidade de emoção e moralidade em personagens de obras como Emma (1816) e Persuasão (1818), ela observa:

“Personagens como Knightley, Wentworth e Anne Elliot não se conduzem como se houvesse um conflito entre o seu sentido de dever moral e sua paixão. De fato, não há sombra de tal conflito em seu comportamento, ‘porque a totalidade da personalidade está integrada’. Em outras palavras, é impossível separar o moral do emocional, porque é a dimensão moral que organiza a vida emocional, que assim tem também uma dimensão pública.”

O laissez-faire emocional, embora tenha aumentado a liberdade sexual das mulheres, elevou grandemente o risco e a incerteza do envolvimento afetivo

Essa integração ocorria em razão de certa ecologia e arquitetura da escolha, integrando psicologia individual e relações sociais, que protegia a mulher de ser posta em situação de insegurança social e emocional, forçando o homem a padrões estritos de aproximação, cortejo e compromisso. Illouz contrasta esse regime com o “regime da autenticidade emocional”, segundo o qual os sentimentos são os tijolos do relacionamento e precedem as regras da relação: “No regime da autenticidade, o compromisso não precede, mas se segue de emoções que são sentidas pelo sujeito e se tornam a motivação alternativa do compromisso”. Temos, assim, paradigmas matrimoniais histórica e sociologicamente distinguíveis:

“Uma diferença... caracteriza o casamento baseado em compromisso daquele baseado na autenticidade emocional. O último se baseia na tentativa de reconciliar e harmonizar dois egos emocionais independentes e deve continuamente criar e recriar as condições emocionais e razões que os uniram da primeira vez. O compromisso, em contraste, não irradia do ego emocional individualizado e não busca satisfazer contínuas aspirações emocionais. As emoções são os efeitos dos papéis sociais, e não suas precondições a priori.”

Se as emoções são efeitos de papéis sociais, mesmo que apenas em parte, alterar os papéis sociais pode mudar profundamente as emoções. Recorrendo à analogia ecológica: poderia a mudança social destruir um ecossistema afetivo e moral?

“Mutação” do casamento?

É comum falar-se em mutação institucional, no tocante ao casamento; mas uma explanação mais plausível é a de que se constituiu uma nova espécie de relação; a união romântica, que existia à parte e independentemente do matrimônio, deslocou a relação baseada no compromisso. Esse deslocamento é reconhecido em vários âmbitos, como o do direito, mas sua apreensão não é sempre crítica. Assim, atuando como porta-voz e agente do campo afetivo no âmbito do Direito de Família, a ex-desembargadora Maria Berenice Dias entende o fenômeno como mutação:

“O novo olhar sobre a sexualidade valorizou os vínculos familiares, que passaram a se sustentar no amor e no afeto. Sem afeto não se pode dizer que há família. É o afeto que conjuga. E, assim, o afeto ganhou status de valor jurídico e logo foi elevado à categoria de princípio. Resultado de uma construção histórica em que o discurso psicanalítico é um dos principais responsáveis, vez que o desejo e o amor começaram a ser vistos e considerados como o verdadeiro sustento do laço conjugal e da família.”

De fato, se trata de uma construção histórica fundada no discurso psicanalítico; o que a ex-desembargadora expressa é exatamente a atividade do campo afetivo, com seu paradigma antropológico e seu hiperbem sentimental, no esforço pela captura, reinterpretação institucional e assimilação sociológica da família tradicional. Assim, como ela dirá logo depois,

“... o princípio da dignidade humana alça a afetividade à condição de princípio jurídico, pois prioriza a realização da personalidade dos membros da família em detrimento de qualquer concepção preestabelecida de entidade familiar. A família só faz sentido para o Direito a partir do momento em que é veículo funcionalizador à promoção da dignidade de seus membros, donde o afeto tornou-se valor jurídico de suma relevância para o Direito das Famílias.
Houve a constitucionalização de um modelo de família eudemonista e igualitária, com maior espaço para o afeto e a realização individual.”

Com límpida clareza, temos aqui a declaração de que forças históricas específicas puseram em movimento uma transformação paradigmática, com a elevação da concepção moral “eudemonista” – ou a configuração ética expressivo-sentimental – ao status de regra normativa, através do artifício da fusão dessa concepção com o princípio jurídico da dignidade humana, para em seguida instituir um novo modelo de família, que se impõe como regra para todas as famílias.

Dominação capitalista sobre as famílias

Toda essa operação, no entanto, torna o direito um legitimador da dominação do capitalismo de hiperconsumo sobre as estruturas familiares. Afinal, ele está na origem dessas distorções, como nota Lipovetsky:

“A dinâmica do consumo-mundo não se detém aí. São todas as grandes instituições sociais que se veem reformatadas, ‘revistas e corrigidas’ pelo turboconsumismo. O casal? Ele se desinstitucionaliza e se privatiza, tornando-se mais contratual, mais instável, cada um se pretendendo autônomo e procurando preservar sua disponibilidade num compromisso pensado como rescindível. Baixa do número de casamentos, aumento das uniões livres, progressão do divórcio, precariedade dos laços: a família já não escapa inteiramente às estratégias temporárias, individualizadas, contratualizadas do indivíduo-consumidor.”

A despeito das esperanças de Maria Berenice Dias e dos lamentos de Gilles Lipovetsky, no entanto, o mero fato de fenômenos sociais receberem o mesmo nome não esclarece o quanto são qualitativamente aproximados. E nenhum artifício jurídico pode produzir ou consolidar uma metamorfose radical em instituições sociais.

Constituiu-se uma nova espécie de relação; a união romântica, que existia à parte e independentemente do matrimônio, deslocou a relação baseada no compromisso

O que temos, mais provavelmente, não é uma mutação de facto na família, mas a coexistência assimétrica de dois tipos de relação distintos embora aparentados, um em crise e outro em ascensão. A relação “pura”, como a descreve Anthony Giddens, enquanto lógica intrínseca ao modelo eudemonista de família, seria na realidade um novo arranjo afetivo decorrente da lógica do mercado. Temos, então, um erro de hermenêutica social; uma ontologia social falha lê erroneamente a emergência de um novo sistema de relações como se fora a metamorfose da família e, em seguida, trata inadequadamente a família, em prejuízo desta, segundo a lógica desse outro sistema. E com isso a natureza da inegável crise da família é obscurecida. Não se trata de reformatação orgânica, mas relação predatória.

Sobre a lógica dessas novas relações, o texto de Illouz é iluminador:

“O que chamamos de ‘triunfo’ do amor romântico nas relações entre os sexos consistiu primeiro e acima de tudo no desincruste das escolhas românticas individuais do tecido moral e social do grupo e na emergência de um mercado autorregulado de encontros. Os critérios modernos para avaliar um objeto de amor desenredaram-se de enquadramentos morais publicamente compartilhados.”

Essa desregulamentação mostrou-se na emergência da “ética do playboy”, a comodificação do sexo e da sexualidade e sua separação das emoções, a centralidade da atração sexual como critério para a aproximação. A “igualdade emocional” de homens e mulheres, garantida pelos mecanismos tradicionais de controle, é desfeita por essa desregulamentação, fazendo com que o poder social de que os homens já dispõem se torne ocasião para a vulnerabilidade sexual e emocional das mulheres. Com a mutação dos padrões antigos de masculinidade, que integravam afetividade e compromisso, e a liberação sexual, gerou-se uma situação de desigualdade e uma percepção de adiamento masculino do compromisso.

Injustiça afetiva

A discussão sobre a “fobia de compromisso” é um ponto crítico do argumento de Illouz. Segundo ela, a escolha romântica moderna sofre a “praga” do desalinho entre o permanente monitoramento da liberdade de escolha e a dinâmica involuntária do sentimento espontâneo. A arquitetura da escolha passa a espelhar o padrão que opera nos mercados de consumo, reproduzindo a inibição da decisão e do compromisso. O desejo de maximizar as opções e a antecipação do arrependimento sobre oportunidades perdidas afetam a energia e a capacidade da escolha, criando a abulia, um estado psicológico de ambivalência emocional, caracterizado pela hesitação. Sendo o compromisso uma capacidade de projeção do Self no futuro escolhido e assumido pelo sujeito, constitui a estrutura temporal das promessas. Mas o ideal de autorrealização do Self moderno exige a evasão de identidades fixas e projetos rígidos, o que impede a promessa e o compromisso. Temos, então, uma condição de injustiça emocional:

“A emergência das condições de livre mercado para as uniões oculta o fato de que elas têm sido acompanhadas por uma nova forma de dominação emocional da mulher pelo homem, expressa na disponibilidade emocional da mulher e na relutância do homem em comprometer-se com a mulher, em razão da mudança nas condições da escolha.”

Assim a liberdade resultante da desregulamentação dos mercados afetivos destruiu a capacidade de escolha e de compromisso, com prejuízo da parte mais emocionalmente disponível e vulnerável – a mulher, em primeiro lugar, mas também toda a teia de relações familiares envolvendo crianças e pessoas idosas.

Nesse ponto é preciso destacar a óbvia implicação: se toda a relação familiar é sujeita à lógica eudemonista-emotivista da satisfação pessoal e da autenticidade emocional, a totalidade da instituição é forçosamente submetida à mesma abulia e à mesma condição de insegurança sistêmica; e, dado o suporte estrutural dessa configuração moral no capitalismo de consumo, temos nessa fusão de “princípio de dignidade” e eudemonística emotivista o aparelhamento do sistema jurídico pelo capitalismo de hiperconsumo.

Partindo das perspicazes observações de Eva Illouz, sugerimos que, se o paradigma da liberdade individual associado à autenticidade emocional gera abulia e destrói a estrutura ética do compromisso, não pode ser plausivelmente considerado o critério central e organizador do matrimônio e do elo familiar. A situação de laissez-faire emotivista reduz gravemente a estabilidade e perdurabilidade dos vínculos, constituindo-se em uma patologia ou, por analogia, uma praga psicossocial nociva à ecologia social.

O movimento dos direitos afetivos é um dos principais vetores, no Brasil contemporâneo, da injustiça afetiva, reforçando a atitude predatória do homem e deixando mulheres e crianças na vulnerabilidade emocional

A tarefa do Direito, nessas condições, seria a de minimizar a injustiça afetiva produzida pelo Capitalismo Emocional, e para tanto é mister resistir à engenharia emotivista das relações familiares. O oposto, no entanto, vem sendo promovido por parte do Direito de Família contemporâneo; são notáveis nisso as palavras do jurista Ricardo Calderón:

“A sociedade brasileira alterou sua feição familiar... Uma das principais características dessa transformação foi justamente a eleição do vínculo afetivo como o mais relevante elo familiar, seja para as relações de conjugalidade, seja para as relações de parentalidade.”

Essa interpretação, dominante no movimento dos direitos afetivos, mostra-se claramente impotente diante do laissez-faire emotivista e deve ser considerada incompatível com uma sociologia crítica da afetividade moderna. Pior: o movimento dos direitos afetivos é um dos principais vetores, no Brasil contemporâneo, da injustiça afetiva, reforçando a atitude predatória do homem e deixando mulheres e crianças na vulnerabilidade emocional.

E quanto à esquerda? Se seu discurso no campo afetivo-sexual oculta uma grave injustiça, ela produz exatamente o contrário do que ela pensa defender. É um discurso ideológico: uma falsa consciência sexual.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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