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Esse veneno tem de sair
| Foto: Himsan/Pixabay

O que devemos desejar para o governo Lula? A raiva contra as hipocrisias e agendas tortas da esquerda, se deixada solta e sem supervisão, nos fará desejar o pior, inevitavelmente. Que seja um governo desastroso, incompetente, detestável, para que todos vejam que o lulopetismo não merece nenhuma confiança.

A pequena dificuldade, implicada nesses sonhos para alguns inconfessáveis, mas declarados por outros tantos, é que a derrocada mais completa da gestão Lula só poderia significar a derrocada nacional, com crise financeira, aumento da pobreza, piora na criminalidade e na segurança pública, e por aí vai. E o fato é que não podemos desejar essas coisas para Lula sem desejá-las, por consequência lógica, a toda a comunidade brasileira.

Lula nem assumiu o posto e já deu aos liberais e conservadores motivo de zombarias –considerando a convulsão financeira internacional e o bom desempenho do Brasil, falar num “tal” de ajuste fiscal é passar mais um atestado de irresponsabilidade econômica, pois sem esse “tal” de ajuste fiscal estamos lascados – e nem eu lhes recusaria esse direito. Mas, então, a linha tênue: apostar no desastre econômico a ponto de desejá-lo nos colocaria em um lugar moral muito parecido com o daqueles setores radicais da esquerda, que almejam canhões e ruínas.

A derrocada mais completa da gestão Lula só poderia significar a derrocada nacional, com crise financeira, aumento da pobreza, piora na criminalidade. Não podemos desejar essas coisas para Lula sem desejá-las, por consequência lógica, a toda a comunidade brasileira

Uma política melhor precisa fazer melhor do que isso. E, antes que alguém torça o nariz acusando aqui uma discussão lateral e irrelevante, quero lembrar que foi o nojo antipetista, em parte, o que elegeu Bolsonaro, e foi o “nojinho” antibolsonarista o que elegeu Lula no começo do mês. Sentimentos políticos não são questões laterais; eles têm impacto em todas as etapas do trabalho político. Não por acaso, a psicologia política é um campo de estudos em franco desenvolvimento.

Em todo caso, não é a partir desse subcampo da ciência política que julgo a “linha tênue”, mas da mera perspectiva cristã. E a partir desse ângulo o juízo é claro e incontroverso: não podemos desejar o pior para o governo Lula. É simples assim.

Isso não significa desistir da oposição, nem que o ridículo não deva ser ridicularizado, nem que os desmandos não devam ser denunciados, nem que o erro não deva ser acusado, nem que a perversão não deva ser odiada; pelo contrário, como Lucas Berlanza escreveu em uma de suas mídias, noutro dia desses, a direita deve dar ao lulopetismo e ao governo a mais infernal oposição.

Aceito-o como metáfora, se falamos do inferno como símbolo da ira divina contra o mal. Infernal contra o ridículo, o desmando, o erro e o mal. Oposição contra a interferência nas liberdades civis fundamentais, no direito das famílias, na liberdade econômica, no combate à criminalidade, no aparelhamento da máquina e na construção da hegemonia sobre a sociedade civil. Oposição infernal contra as manipulações da esquerda cosmopolita.

O caso, no entanto, é que há outro sentido para “infernal”; numa leitura menos caridosa, infernal é o demoníaco, é a obra do mal, o próprio ridículo, a mentira, a perversão das coisas sagradas. E a linha tênue é essa mesma: quando corre solto o prazer torpe, a alegria maldosa, o riso cáustico diante da desgraça, submergindo toda a compaixão pelos que sofrem as consequências, não se trata mais da ira divina, mas de concupiscência demoníaca. Essa alegria torta é como uma alma seca de ressentimentos regada com a água salgada da vingança. Sua sede só aumentará, até o infinito.

Se, dando voz ao meu lado cura d’almas, pareço haver abandonado a análise cultural, insisto, em minha defesa, que essas questões da alma subjazem a todo o processo político e não podem ser ignoradas. Se uma oposição conservadora a Lula pode ser tão infernal a ponto de tornar-se demoníaca – e temo que isso já tenha ocorrido em muitas mentes –, isso terá consequências históricas.

As Escrituras não proíbem a ira e a indignação diante do mal. Mas dizem que isso não pode ser o seu pão de cada dia, o seu feijão-com-arroz, o seu café da manhã

Falando, então, como cura d’almas: a terapêutica judaico-cristã tem um modo muito peculiar para o tratamento do azedume moral:

“Não te aborreças por causa dos homens maus, nem tenhas inveja dos malfeitores.
Pois em breve secarão como relva, murcharão como erva verde.
Confia no Senhor e faze o bem; assim habitarás na terra e te alimentarás em segurança.
Agrada-te também do Senhor, e ele satisfará o desejo do teu coração.
Entrega teu caminho ao Senhor; confia nele, e ele tudo fará.
Fará tua justiça sobressair como a luz, e teu direito, como o meio-dia.
Descansa no Senhor e espera nele; não te aborreças por causa daquele que prospera em seu caminho, por causa do que trama o mal.
Deixa a ira e abandona o furor; não te aborreças, pois isso só lhe trará o mal.
Porque os malfeitores serão exterminados, mas os que esperam no Senhor herdarão a terra.”
(Salmo 37,1-9)

O trecho do salmista é claro como o dia: “não te aborreças”, “nem tenhas inveja”, “deixa a ira e abandona o furor”. Não é que as Escrituras proíbam toda a ira e toda a indignação diante do mal. Mas que isso não pode ser o seu pão de cada dia, o seu feijão-com-arroz, o seu café da manhã. Já vi um intelectual de esquerda, militante identitarista, identificar explicitamente a obra do Espírito Santo e o poder de sua ressurreição com a raiva da militância contra os opressores. Mais do que uma bobagem, uma verdadeira blasfêmia.

Mas então, não são poucos os eleitores e militantes de direita cujo café-da-manhã se chama ressentimento. Acordam e dormem com raiva, imersos em notícias sobre as maldades lulopetistas. E, no entanto, como repetiria o próprio Jesus em seu Sermão da Montanha, não são os amargos e enraivecidos que herdarão a terra, mas os mansos.

E quanto à raiva? “Isso só lhe trará o mal”. É por isso que esse veneno tem de sair. É um combustível tóxico, poluente, que corrompe na raiz a ação política. Esse combustível é amplamente utilizado em todos os discursos revolucionários e agonísticos, cujo propósito é exacerbar o conflito na esperança de ver nascer a sociedade nova. Mas o cristianismo nos ensinou que só o amor e o autossacrifício trazem coisas novas.

Na verdade, sob a luz implacável do evangelho, uma condição ainda mais preocupante se revelará. Pois o fato é que, havendo atravessado a linha tênue muito tempo atrás, muitos bolsonaristas já se tornaram moralmente indistinguíveis dos inimigos que desejam combater, e eu não hesitaria em dizer que alguns cristãos à esquerda, mesmo que poucos, talvez tenham lutado contra a tentação do ódio político recorrendo a este mesmo salmo davídico. Em alguns momentos de nosso moribundo governo Bolsonaro, cristãos de esquerda e de direita deram suas mãos, sem o saber, buscando em Deus o auxílio para não serem consumidos de ressentimento. De minha parte, não tenho dúvidas de que esse milagre anônimo se repetirá durante o novo governo. Ele sempre se repete, e será assim até que a raiz de Davi derrote seus inimigos.

Se Jesus nos ordenou o amor aos inimigos, orar pelos oponentes políticos não pode ser tão difícil assim. Na oração começamos a espremer a peçonha do ódio para fora da alma; e precisamos fazê-lo

De modo que a leniência de cristãos conservadores com esse espírito mesquinho e ácido tem de acabar. No limite, até uma guerra pode ser justa, mas, até lá, é preciso tomar a iniciativa e participar, não só como oposição, mas à mesa de negociações. É preciso inclinar o novo governo para a direção certa. Podemos ser “infernais”, sim, no confronto das agendas e na defesa da justiça, mas, se nada celestial se manifestar em nosso trato com a esquerda e o governo Lula, temo que essa luta dos infernos não passe de uma briga em família.

Mas que passos dar, objetivamente? Enquanto não sabemos o que fazer e como dizer, ou sabemos, mas não temos poder para tanto (e esse é o caso da maioria dos cidadãos), há algo que todo cristão pode fazer, muito mais útil do que vomitar indignações em mídias sociais: orar por Lula e pelo novo governo. Se Jesus nos ordenou o amor aos inimigos, orar pelos oponentes políticos não pode ser tão difícil assim. Na oração começamos a espremer a peçonha do ódio para fora da alma; e precisamos fazê-lo. Para o bem de todos nós, esse veneno tem de sair.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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