“O anti-woke é uma máscara para o racismo e para os esforços de neutralizar narrativas que deixam algumas pessoas desconfortáveis com nossa história e com a própria ideia de igualdade. Para alguns, promover, proteger e preservar as hierarquias históricas de patriarcado e branquitude são uma prioridade. E acho que, é claro, no Brasil há alguns que buscam promover o status quo da mesma forma, o que é profundamente lamentável.” (Darren Walker, presidente da Fundação Ford)
Senhoras e senhores: os ricos estão perturbados com a nossa baixa wokeidade. Darren Walker, presidente da Fundação Ford, concedeu uma reveladora entrevista à Folha de S.Paulo, publicada no último domingo: “‘O anti-woke” é a nova máscara para o racismo’, diz o presidente da Fundação Ford.” Sim, meus amigos, wokeísmo é virtude. Mas os virtuosos andam preocupados.
Nascido na Louisiana, em 1959, Walker é, como diz a chamada, “o primeiro negro e gay à frente da gigante filantrópica global”. Somos informados de que ele estudou em escolas públicas do Texas, que sua avó era doméstica, que passou seus apertos e que progrediu com o auxílio de políticas de ação afirmativa. Alguém que vem de baixo, não é? Em tese, um autêntico representante do proletariado!
Mas o homem subiu, e subiu muito. Graduou-se em Direito na Universidade do Texas em Austin, em 1982; trabalhou numa firma de Direito Internacional (a Cleary, Gottlieb, Steen & Hamilton); gastou sete anos na divisão de mercados de capitais do Union Bank of Switzerland (UBS); e, então, ingressou no campo nonprofit – as organizações sem fins lucrativos – como gestor e estrategista, administrando projetos de desenvolvimento comunitário e dinheiro grande. Trabalhou na Fundação Rockefeller, onde foi vice-presidente, e entrou para a Fundação Ford em 2010 como vice-presidente para Educação, Criatividade e Liberdade de Expressão, gerindo um programa de doações de US$ 140 milhões. Mas foi em setembro de 2013 que Darren Walker se tornou presidente da Ford Foundation. À testa de uma fundação de US$ 16 bilhões, o executivo está muito interessado no Brasil.
A elite cosmopolita fornece os valores e os quadros para promover, no governo, economia e terceiro setor, uma versão do que seria “justiça social” que ignora completamente a realidade comunitária e simbólica do proletariado cultural
Ele já esteve por aqui antes; participou, em 2016, do 9.º congresso do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife), que reúne investidores sociais privados do Brasil e promove a cultura da filantropia. O Gife inclui pesos-pesados como Fundação Norberto Odebrecht, Fundação Bradesco, Fundação Banco do Brasil, Fundação Cargill, Grupo Volkswagen, Fundação Lemann, Fundação Roberto Marinho e a própria Ford; mas há muitas outras, financiando e sendo financiadas. Seu investimento social combinado anual gira em torno de US$ 5 bilhões. A agenda geral é o “bem comum”, incluindo-se entre as suas prioridades a democracia, direitos básicos e o combate à desigualdade e à discriminação. Na ocasião, Walker declarou, sobre a Fundação Ford, que “nosso papel é de dar voz a representantes de pessoas da sociedade que são desfavorecidas, apoiar suas instituições, liderança e ideias”. O ponto merece destaque: a Ford não apenas investe em projetos sociais, assim como os gestores do Gife: eles investem nas ideias de pessoas desfavorecidas.
Pois bem: devo dizer que não acredito nas palavras de Warren; mas não é por descrer de sua honestidade pessoal ou das suas intenções, de modo algum. Não acredito nele porque minha pobre sociologia não me permite crer em sua posição institucional. Quanto a organizações como Rockefeller e Ford, confesso meu ateísmo.
O caso é que vivemos, neste momento, no fogo cruzado de uma nova guerra de classes, entre uma elite gerencial, com valores cosmopolitas, individualistas e laicistas, e um largo proletariado cultural e financeiro, com apoios aqui e ali de uma pequena elite conservadora. Cito Michael Lind, em The New Class War:
“A Guerra Fria foi seguida pela guerra de classes. Uma guerra de classes transatlântica explodiu simultaneamente em muitos países ocidentais entre elites posicionadas nos setores corporativos, financeiros, governamentais, midiáticos e educacionais, e populistas de classe trabalhadora desproporcionalmente nativos. O velho espectro de esquerda e direita deu lugar a uma nova dicotomia na política, entre os de dentro (insiders) e os de fora (outsiders).”
A classe gerencial ou administrativa, segundo Lind, é constituída primariamente por burocratas públicos e privados que controlam grandes corporações locais e internacionais, agências governamentais e as organizações do terceiro setor. Essa classe, como a antiga burguesia latifundiária, transmite sua herança de forma hereditária, através do sistema de credenciamento universitário, no qual “os graus acadêmicos são os novos títulos de nobreza e os diplomas, os novos brasões de armas”. Mas não é que não haja mobilidade social nesse sistema; representantes do proletariado cultural são admitidos condicionalmente, na medida em que recebem o credenciamento e trabalham sem questionar a visão de mundo da classe, que é basicamente o individualismo expressivo (na definição de Robert Bellah).
Considere uma organização como o Gife: há os capitalistas, que possuem a grana, e há a classe que é paga para fornecer a inteligência do investimento social. A elite cosmopolita é quem fornece os valores e os quadros para cumprir esse papel no governo, economia e terceiro setor, promovendo uma versão do que seria “justiça social” que ignora completamente a realidade comunitária e simbólica do proletariado. Sua religião, sua moralidade, seus enraizamentos locais e familiares são invisíveis para essa elite, que deseja comunicar às massas a sua visão de mundo. Ora, essa elite quer promover a democracia, e entrega uma grana a uma burocracia tecnocrática em nome da democracia.
Mas o mundo é complicado; as mesmas massas proletárias que são objeto de amor e compaixão das elites tecnocráticas vêm apoiando cada vez mais movimentos contrários aos valores dessa elite. Diz Lind:
“A revolução tecnocrática neoliberal de cima para baixo, conduzida sucessivamente pelas nações ocidentais por uma elite gerencial cada vez mais agressiva e poderosa, tem provocado um backlash populista de baixo para cima, por uma classe trabalhadora nativa defensiva e desempoderada.”
Nós, negros crentes, não rejeitamos o wokeísmo para mascarar “racismo” nenhum. A elite cosmopolita é que usa o antirracismo para justificar sua cruzada contra nossos valores religiosos
Quem é Darren Walker? Um insider, evidentemente. Um legítimo representante da elite gerencial/cosmopolita, preocupado, sim, com justiça e igualdade, mas absolutamente despreocupado com o compartilhamento do poder com o proletariado cultural. Sua compreensão da justiça social-democrata-liberal-woke inclui, na área dos “costumes” (gênero, ética sexual, família e “direitos reprodutivos”), visões completamente contrárias ao cristianismo.
Na entrevista à Folha isso fica bem claro; Walker se mostra preocupado com o Brasil, que ele chama de “farol para o mundo”. Não, ele não está preocupado com tolerância ou pluralismo democrático, mas com “as ideias das pessoas desfavorecidas”. Lamentando a crise do wokeísmo nos EUA, faz advertências sobre a necessidade de resistir a essas tendências no Brasil, e acusa o anti-wokeísmo de ser uma máscara do racismo.
Mas há um sério problema quanto ao Brasil, sobre o qual me pergunto se Walker tem consciência. O problema é que o grupo mais negro do país é o campo evangélico e católico conservador. As elites privilegiadas, por aqui, são as mais “embranquecidas” e as mais secularizadas. E o nosso proletariado cultural, cristão, também é um proletariado econômico. Nós somos o lado de baixo na nova guerra de classes, e Walker, negro e liberal-progressista, assim como os gestores de fundos do Gife, é o lado de cima. Nós, do lado de baixo, concordamos sobre inclusão social, sobre combater o racismo, sobre igualdade; mas jamais concordaremos com a pauta de costumes da elite cosmopolita e da Fundação Ford. Nós, negros crentes, não rejeitamos o wokeísmo para mascarar “racismo” nenhum. A elite cosmopolita é que usa o antirracismo para justificar sua cruzada contra nossos valores religiosos e financiar, por exemplo, visões sobre gênero e aborto que insultam o brasileiro pobre. Se Walker levasse a sério “as ideias das pessoas desfavorecidas”, precisaria levar a sério ideias-de-crente.
A Fundação Ford quer nos comprar com dinheiro. Quer nos comprar com promessas de justiça social e de uma sociedade melhor. E não vai custar nadinha: só a nossa alma.
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