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Gabriel Jesus na estreia do Brasil na Copa 2022 contra a Sérvia.
Pelo acordo entre Nike e MPF, torcedor não pode personalizar a camisa da seleção com termos como “Jesus” nem se esse for o seu nome, como é o do atacante Gabriel Jesus.| Foto: Juan Ignacio Roncoroni/EFE

No dia 11 de novembro a Fisia, distribuidora da Nike no Brasil, e o Ministério Público Federal fecharam um acordo para garantir que não haja discriminação religiosa na política de marketing da empresa.

A ação foi motivada pela onda de reclamações, nas mídias sociais, de que termos relacionados a religiões de matriz africana não podiam ser usados na personalização das novas camisas da seleção brasileira, ao passo que termos associados ao cristianismo estavam liberados. Um funcionário público acionou o MPF e a Fisia foi chamada para uma conversa. O desfecho? Nenhuma sinalização religiosa, de qualquer natureza, nas camisas da empresa.

Pessoalmente eu não me incomodaria com a ausência desses temas no marketing da Nike; mas as movimentações tectônicas que andam ocorrendo são muito mais importantes do que esses pequenos tremores. Interessa-me o que pensa o MPF e o militante on-line quando fala em “laicidade” e “discriminação” religiosa.

O regramento jurídico do nosso país foi elaborado para proteger a expressão religiosa em sua potência máxima, interpondo-se contra tentativas em contrário

Na coluna de hoje, o jornalista e cientista da religião Jonathan Goudinho nos apresenta a sua objeção à abordagem do MPF e da empresa e o que penso ser o melhor remédio para esses tempos de polarização: o pluralismo. Goudinho estuda as controvérsias públicas que envolvem os conflitos de valor entre as dimensões políticas e religiosas das democracias contemporâneas e é membro do Laboratório de Estudos em Religião, Modernidade e Tradição (PUC Minas) e do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia (PUC-SP).

Suprimir expressões religiosas não ajuda a acabar com a intolerância religiosa

O que fazer para garantir que não haja discriminação religiosa no Brasil? Essa é uma pergunta que precisa ser levada a sério. Liberdade religiosa é um direito fundamental dos cidadãos garantido pela Constituição brasileira e resguardado por uma série de outros instrumentos legais, inclusive globalmente – como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.

Isso significa que o regramento jurídico do nosso país foi elaborado para proteger a expressão religiosa em sua potência máxima, interpondo-se contra tentativas em contrário. Mas o que a realidade nos diz sobre a aplicação desse regramento?

Igualdade na marra

Em agosto deste ano, quando a Nike começou a vender as camisas da seleção brasileira para a Copa do Mundo do Catar, alguns consumidores perceberam um problema na personalização do produto. Expressões ligadas às religiões de matriz africana, como “Ogum” e “Exu”, não estavam disponíveis. Em contrapartida, termos cristãos, como “Jesus” e “Cristo”, estavam livremente à disposição.

Diante da flagrante incoerência, o Ministério Público Federal (MPF) foi acionado e rapidamente instaurou um inquérito para apurar – e corrigir – a possível discriminação religiosa. O desfecho do caso aconteceu dias atrás, com a celebração de um acordo entre o MPF, por meio da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no Rio de Janeiro, e a Fisia Comércio de Produtos Esportivos Ltda., empresa detentora dos direitos de comercialização da Nike no Brasil.

Os mais ingênuos dirão que o MPF acertou na deliberação. Mas o custo da decisão é altíssimo: na impossibilidade de discriminar uns, é melhor discriminar a todos

E qual foi o teor do acordo? A expansão das restrições, com a proibição geral de expressões religiosas na personalização das camisas, em consonância com a política de marketing da Nike, replicada pela Fisia no Brasil.

Em nome do louvável interesse de “proteger símbolos religiosos e estimular o esporte como instrumento de tolerância à diversidade”, você não poderá torcer pelo hexacampeonato com uma camisa personalizada com expressões como “Jesus” (mesmo se esse for seu nome), “Ogum” ou “Kardec”. Muito embora não haja nenhuma restrição para nomes problemáticos como Lenin ou Jim Jones, para dar exemplo de dois líderes-divindades de seitas político-religiosas altamente destrutivas.

O MPF ficou satisfeito com o acordo, visto como uma justa “adoção de medidas para construção de uma cultura de paz, tolerância e respeito pela diversidade, sem quaisquer preconceitos ou discriminações em virtude da orientação religiosa”. Problema resolvido, não é mesmo?

Os mais ingênuos dirão que o Ministério Público Federal acertou na composição da deliberação, uma vez que agora não haverá mais, a princípio, nenhuma expressão religiosa sofrendo discriminação. Mas um olhar mais atento levará à conclusão de que o custo da decisão é altíssimo: na impossibilidade de discriminar uns, é melhor discriminar a todos.

Obviamente, há algumas discussões subjacentes que expandem muito o problema. O fato de haver uma empresa cuja política de marketing regulamenta, na prática, a restrição de liberdade já deveria provocar profundas discussões. Por muito menos, embora em outra seara, a Apple foi processada e condenada no Brasil. Mas vamos deixar esse debate para outra ocasião. O caso do acordo entre o MPF e a Nike é bastante didático e representa com algum grau de fidelidade o Zeitgeist das instituições brasileiras em relação à garantia de liberdades civis fundamentais.

O viés laicista

De acordo com a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, é obrigação do MPF promover medidas efetivas em benefício da equidade racial e religiosa, de modo a superar os obstáculos que “impedem a consolidação de uma sociedade justa, plural, representativa, pacífica e harmoniosa”.

Ora, se esse é o entendimento da própria instituição e se há tanto referencial jurídico no Brasil em relação à garantia da liberdade religiosa, por que o MPF se sentiu tão confortável com a ampliação da restrição, sem nenhuma problematização? Nas entrelinhas, a isonomia foi garantida pela supressão, não pela presença.

O problema, provavelmente, ocorre em função de uma inadequação na leitura e interpretação quanto à laicidade do Estado.

A isonomia foi garantida pela supressão, não pela presença

Toda essa conversa tem origem na Revolução Francesa (1789-1799), com sua perspectiva de separação radical e contenciosa entre o poder político (a coisa pública, em geral) e a religião. Encantados pelo mito do iluminismo, os proponentes do movimento defendiam que a realização do esclarecimento total implicaria a eliminação de todos os elementos religiosos da vida humana. A religião era antagonista à razão. Não é à toa que a declaração do abade de Etérpigny Jean Meslier (1664-1729), o “padre ateu”, de que “o homem só será livre quando o último rei for enforcado nas tripas do último padre” esteja tão associada ao imaginário social da revolução.

É dessa interpretação que procede a ideia de laïcité como uma autonomia em desfavor da religião, leitura que se tornou a mais popular na opinião pública e no inconsciente das instituições brasileiras, a despeito de experiências distintas, como a dos movimentos iluministas da Inglaterra e dos Estados Unidos. No limite, é dessa perspectiva que resulta a noção contemporânea de que a religião está permanentemente forçando os limites da laicidade a ponto de quase sufocar a democracia.

Laicismo ou pluralismo?

Casos ilustrativos como o do acordo do MPF com a Nike ajudam a mostrar por que autores como o filósofo canadense Charles Taylor compreendem que é necessária uma redefinição radical da laicidade, esse movimento de ruptura derivado de um fenômeno maior, a secularização. Em Why we need a radical redefinition of secularism (2011), Taylor afirma que “nós pensamos que a laicidade (ou laïcité) tem a ver com a relação do Estado com a religião; no entanto, tem a ver com a (correta) reação do estado democrático à diversidade”. Por isso, a resposta do poder político secular à diversidade deve ser… mais diversidade – não o contrário!

“O Estado não pode ser nem cristão, nem muçulmano, nem judeu, mas, da mesma forma, também não deve ser nem marxista, nem kantiano, nem utilitarista. […] Isto não é fácil de fazer; as linhas são difíceis de desenhar e devem ser sempre redesenhadas. Mas essa é a natureza do empreendimento que é o Estado secular moderno. E que melhor alternativa existe para democracias diversas?”, argumenta Charles Taylor.

Falta à intelligentsia pública brasileira um melhor entendimento daquilo que escreveu o sociólogo austro-americano Peter Berger (1929-2017) sobre a distinção entre secularismo e pluralismo. No artigo Secularization falsified (2008), já em fase bastante madura da carreira, ele afirmou que “a modernidade não é necessariamente secularizadora; é necessariamente pluralizante”. A argumentação foi retomada em The many altars of modernity (2014), ao reforçar que o pluralismo “é a maior mudança provocada pela modernidade em relação ao lugar da religião, tanto nas mentes dos indivíduos quanto na ordem institucional”.

É crucial, portanto, ter a clareza de que a religião não é meramente privada nem puramente irracional, ao passo que as instituições públicas não são puramente racionais nem isentas de vieses. Por isso, afirmar a secularização e a laicidade do Estado envolve o complexo compromisso e exercício da aceitação de novas e múltiplas disposições de crenças, defendidas em sua integralidade. Isso tudo sem perder de vista aquilo que Charles Taylor sublinhou no seu clássico A secular age (2007): “a religião permanece inerradicável no horizonte da irreligião”.

O desafio não é pequeno – e estamos atrasados. Nossas instituições precisam acordar para isso rapidamente.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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