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O Minotauro, em gravura de Gustave Doré.
O Minotauro, em gravura de Gustave Doré.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

Em nossa exploração sobre a moderna fé no progresso, apresentamos na semana passada a tese de Peter Harrison de que a caridade cristã passou por um processo de externalização e objetificação: ela deixou de ser uma virtude da alma para se tornar uma propriedade dos projetos políticos, através da sua tecnologia social. O bem foi alienado da alma e transferido para o sistema, de modo que promover o bem não exige ser bom, mas apoiar a ideologia certa do modo mais fanático possível.

Mas a virtude não foi apenas alienada da formação do caráter; na religião do progresso até mesmo a sua natureza foi redefinida, de modo a compatibilizá-la com a fé no poder da técnica. Essa operação gerou uma criatura nova, metade humana e metade inumana.

O nascimento do Minotauro

Em suas Gifford Lectures publicadas em 2019, o teólogo anglicano Tom Wright acrescentou uma observação muito importante para o entendimento de como o novo ideal de progresso concorre com o cristianismo: é que ele resulta, em última análise, de uma fusão de aspectos da escatologia cristã com o epicurismo, produzindo uma escatologia sem Deus, na qual a força da transcendência viria de dentro da própria natureza.

“A crença modernista de que um novo dia havia nascido e que agora seria aplicado (na verdade, como já era de se esperar no epicurismo, que se implementava a partir de dentro) constituía um novo fenômeno. No entanto, sem nunca ter feito parte do epicurismo clássico, (ele) reprovou muitas características de seu ancestral remoto, enquanto cooptava o senso judaico e cristão do propósito divino. Essa é a origem da doutrina moderna do progresso. Em geral, costumamos associá-la a Hegel, mas ele era apenas um menino quando Adam Smith e Edward Gibbon já estavam escrevendo.”

O novo ideal de progresso resulta, em última análise, de uma fusão de aspectos da escatologia cristã com o epicurismo, produzindo uma escatologia sem Deus, na qual a força da transcendência viria de dentro da própria natureza

Um exemplo: Nicolau Maquiavel, um dos principais arquitetos do ideal renascentista de personalidade livre, acreditava em um mundo construído através da arte e da inteligência política, assumindo os desejos humanos temporais como fins últimos, de forma utilitarista e sem qualquer outra teleologia, ordem natural ou propósito divino. Não é essa visão da política essencialmente epicurista? De fato, Maquiavel, pai da ciência política moderna, teria copiado à mão a obra De Rerum Natura de Lucrécio – o maior dos epicuristas latinos – no fim dos anos 1490, e sua obra mostra a clara influência da ética epicurista. A visão de Maquiavel de uma história sem destino seria descartada, mas sua visão utilitarista da liberdade humana e da ordem política seria sacramentada.

Mas Maquiavel foi apenas o princípio das dores. Tom Wright observa que o epicurismo, principalmente segundo a interpretação do clássico latino Lucrécio (94 a.C.-50 a.C.), já vinha se expandindo na Europa desde a sua redescoberta em 1417, mas alcançaria a hegemonia no mundo intelectual europeu apenas a partir do terrível terremoto de Lisboa, em 1755.

“Então, o epicurismo estava mais forte havia um bom tempo. Mas depois de 1755, tornou-se predominante e (até os dias de hoje) permanente. Esqueça as estrelas e os planetas cantando louvores a Deus. Se existe um deus, ele está muito longe e não conhece nenhum de nós nem as estrelas rodopiantes. A religião é uma invenção humana planejada para manter as massas dóceis. O mundo faz o que faz em seu próprio ritmo. Ele se desenvolve e muda de maneira aleatória, sem interferência externa, à medida que os átomos vão se movendo aleatoriamente e, às vezes, desviando-se, de modo a esbarrar uns nos outros e produzir novos efeitos. Isso é tudo que existe na vida. E, quando morremos, morremos. Portanto, em ambos os sentidos, nada temos a temer. Esse é o epicurismo em linhas gerais...”

No solo da Europa pós-renascentista, no entanto, o velho epicurismo passou por importantes transformações. Ele já havia sido incorporado na nova ciência política, a partir de Maquiavel e de Thomas Hobbes; mas penetrou então na nova economia política de Adam Smith; no pensamento evolucionista pré-darwiniano; e até mesmo na interpretação bíblica e na teologia modernista dos séculos 17 e 18.

E então, tal e qual no mito minoico da cópula de Parsífae, mulher do rei de Minos, com o touro de Poseidon, a modernidade produziu seu próprio Minotauro. Tomo emprestada aqui a concepção de Michael Polanyi, de que o “Minotauro” moderno seria um tipo de inversão moral, na qual as paixões morais alienadas do homem são canalizadas para a alimentação de um sistema monstruoso e imoral, que justifica e sacramenta o fanatismo de seus escravos; eles se tornam animais com pernas humanas. O marxismo-leninismo e o nazismo seriam, para Polanyi, epítomes do Minotauro moral.

Mas qual seria a gênese do monstro? A cópula da escatologia cristã com o epicurismo é que teria parido essa criatura completamente nova, a ideologia do progresso. Ela preservava o otimismo cristão, com sua visão linear da história e o paraíso futuro, mas tudo transplantado para a cosmovisão epicurista. Nascia, assim, o epicurismo escatológico. Esse epicurismo é o que permite justificar todo tipo de imoralidade a dissolução de todas as normas e limites em nome do paraíso terrestre.

Os traços do epicurismo escatológico emergem inconfundíveis na era das revoluções, e particularmente na Europa continental, em 1789, 1848, 1871 e 1917. Ele recebe formulações progressivamente mais sofisticadas em Condorcet e na obra de Friedrich Hegel, passando aos hegelianos de esquerda e de direita. Todo o desenvolvimento da esquerda socialista veio, então, a ser dominado por uma versão materialista da fé hegeliana no progresso, desenvolvida por Karl Marx, que também absorveu a cosmovisão epicurista.

Michael Polanyi diz que o “Minotauro” moderno seria um tipo de inversão moral, na qual as paixões morais alienadas do homem são canalizadas para a alimentação de um sistema monstruoso e imoral, que justifica e sacramenta o fanatismo de seus escravos

A nova visão, segundo a qual a história progride não sob a direção da providência divina, mas segundo uma lei dialética interna, em direção a uma sociedade ideal e sem injustiças, forma a base das concepções progressistas de progresso civilizatório. Mas suas origens são inequivocamente epicuristas. De igual modo, à direita, ideologias de progresso social, econômico e tecnológico ganharam corpo e voz. Essas doutrinas, tanto à esquerda quanto à direita, glorificam a ruptura com o passado, são ingenuamente otimistas sobre a capacidade e a boa vontade humana, e dispensam a necessidade de prudência política. Na opinião de Wright, enfim, o epicurismo tornou-se hegemônico, “cada vez mais dominante até que... passou a ser o ar nativo do Ocidente moderno”.

Epicurismo e terapêutica

Houve outra “contribuição” do epicurismo para a forma contemporânea de progressismo, que é da mais absoluta importância: a revolução terapêutica, cujos pais foram Jeremy Bentham, proponente do utilitarismo moral, e Sigmund Freud, o criador da psicanálise. Ambos adotavam a ética epicurista segundo a qual a busca pragmática de felicidade e bem-estar para si ou para o máximo de pessoas é o único bem racionalmente sustentável. Nessa perspectiva não existem propósitos morais superiores à busca inteligente e responsável do prazer. Não há uma lei natural e divina que estabeleça o modo correto de organizar a vida moral. O que há são julgamentos pragmáticos e inteligentes do homem racional para obter o máximo de prazer dentro dos limites da realidade. Freud cunhou uma expressão para descrever sua perspectiva sobre a maturidade psicológica: era corresponderia a uma boa “economia libidinal”.

A própria intelectualidade brasileira já era influenciada pelo epicurismo moral desde a penetração do romantismo no século 19 (o que foi especialmente evidente no Byronismo paulistano), mas ele ganha o centro das atenções a partir da Semana da Arte Moderna de 1922 e, em particular, do movimento antropofágico, como já observamos nessa coluna. Segundo Oswald de Andrade e seus simpatizantes, o homem é um animal desejante e nada mais; não cabem julgamentos morais sobre ele, especialmente no campo da sexualidade.

Sobre essa visão foi construída, ao longo do século 20, uma concepção nova de felicidade, que tem como projeto máximo a autenticidade pessoal e o máximo bem-estar pessoal, e não a justiça, o amor agápico ou o bem comum. Sai de cena o Sermão da Montanha com suas bem-aventuranças, e entra em cena o autoconhecimento psicológico. A nova concepção engendraria um novo paradigma de formação espiritual que o antropólogo americano Philip Rieff descreveu como o “Homem Psicológico”.

O novo paradigma se tornou hegemônico a partir da grande revolta estudantil de 1968, tendo como sua bandeira principal a revolução sexual. Sua fusão com ideias progressistas, principalmente a partir de Herbert Marcuse, garantiria que a revolução sexual e a libertação da moralidade burguesa figurassem entre as principais bandeiras da esquerda global. Tenho descrito a ascensão desse novo paradigma e sua transformação em arma política como a “revolução afetiva”, e a ascensão de um Minotauro Sentimental. Esse paradigma de felicidade, com sua visão naturalista, utilitarista e libidinal da natureza humana, tem sido hegemônico na indústria acadêmica e cultural nacional, a ponto de se tornar invisível para os próprios intelectuais como o oceano o é para os peixes.

Um conflito de esperanças

Embora Goudzwaard e Schuurman, seguindo as pistas de Herman Dooyeweerd, tenham alcançado grande sucesso em explicar o desenvolvimento da ideologia do progresso no ocidente e sua relação com o capitalismo, o tecnicismo e o ideal de personalidade livre, me parece que Tom Wright identificou com muito mais precisão o “pai” da criança. Ou melhor, os pais; se a fé no progresso é uma combinação de epicurismo, em sua negação da providência de Deus e do telos sobrenatural da existência, com o elemento de otimismo e linearidade temporal da escatologia cristã, fica muitíssimo mais claro por que ela se tornou a principal competidora do cristianismo. Ele rouba dos cristãos o seu alvo, que é sua orientação teleológica para o verdadeiro paraíso; rouba dos cristãos a sua paciência, propondo-lhes que a transcendência pode brotar de dentro da história por meio das suas obras; e rouba até mesmo a ideia de bem, equacionando a caridade com a adesão à utopia correta.

De modo que resistir ao complexo tecnicismo-capitalismo é impossível sem lidar com o elemento epicurista na imaginação moral moderna. Se a ideologia do progresso é um epicurismo escatológico, o que ela traz, em seu cerne, é uma falsa esperança de felicidade. O confronto dessa falsa esperança com a verdadeira esperança se desenrola muito além da política partidária, dentro do grande labirinto da vida comum e da moralidade popular. É nele, e não nos palácios governamentais, que a luta será decidida.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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