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O presidente da República, Jair Bolsonaro.
O presidente da República, Jair Bolsonaro.| Foto: Alan Santos/ Presidência da República.

Como tantos brasileiros, assisti incrédulo à invasão do Capitólio em Washington no dia 6 de janeiro do presente ano do Senhor. À medida que novas informações sobre a quebradeira e o envolvimento trumpista no fato eram publicadas, cresceu em mim renovada consciência do altíssimo risco público do conspiracionismo patrocinado por autoridades. Não que o tema fosse novidade; nessa mesma coluna publicamos alguns artigos sobre fake news e guerras cognitivas. Mas dessa vez a pancada doeu mais, fez subir um belo galo na minha testa. E esse galo não para de latejar.

Aliás, foi um galo em cima de outro galo. Indignei-me, antes disso, com a sistemática sabotagem dos esforços de combate à pandemia a partir do núcleo ideológico do governo, e sob a liderança do próprio presidente. Eu não precisaria e talvez não devesse repetir aqui, mas a verdade grita dos telhados: o governo negou e depois minimizou a gravidade da pandemia, propôs duvidosos tratamentos alternativos para não ter de admitir medidas restritivas de proteção, abdicou da tarefa de uma coordenação nacional efetiva para os trabalhos, avalizou informalmente o negacionismo científico entre seus aliados, deu maus exemplos públicos e atrasou a aquisição de vacinas. Ainda que nada disso seja traduzido em responsabilidade criminal e que a CPI não dê em nada, essa foi e será uma das mais impressionantes demonstrações de incapacidade técnica, política e ética em nossa história política recente.

Mas não vou me estender nisso; perdoem o drama. Quero antes chorar o outro galo, o galo em cima do galo em minha testa curta. Seguindo de modo absolutamente consistente e previsível a mesma fórmula, empregada com “sucesso” em diversas áreas, de semear a dúvida e fragilizar as reputações institucionais, a Presidência aduba e cultiva em casa o discurso da fraude eleitoral.

À medida que novas informações sobre a quebradeira e o envolvimento trumpista na invasão do Capitólio eram publicadas, cresceu em mim renovada consciência do altíssimo risco público do conspiracionismo patrocinado por autoridades

Vejam bem: em vez de apresentar propostas criativas e interessantes para setores da vida nacional nos quais o aparelhamento da esquerda trouxe ambiguidades ou fez algum estrago, o modus operandi do governo consistiu em temerariamente denunciar manipulações e fraudes sem evidência suficiente, semear a dúvida generalizada e proclamar “verdades alternativas”. Como se viver num inferno de suspeitas fosse coisa inócua.

Foi assim no caso do meio ambiente, com as histórias de ONGs estrangeiras mascarando alegados interesses em mineração ou ameaças à soberania nacional sob seus discursos conservacionistas. O que a justiça dos EUA e a PF brasileira descobriram foi que eram membros do próprio governo os interessados em mascarar comércios escusos na Amazônia, e não as ONGs nórdicas (ironia amarga!); e, agora que “a boiada passou”, amargamos péssimos resultados para a conservação ambiental. Esses resultados se refletiram diretamente em nosso futuro econômico, atrasando nosso processo de entrada na OCDE.

Foi assim também com os desnecessários e absolutamente inúteis ataques de Abraham Weintraub ao establishment educacional brasileiro, que contribuíram muito para destruir sua capacidade de interlocução com as universidades, a sociedade civil e os atores relevantes da educação brasileira. A gritaria, as teses conspiratórias e a falta de capital social resultaram em pura esterilidade. Claro, foi assim também no Ministério da Saúde, fato público e notório; Bolsonaro e seus aliados contribuíram decisivamente para o agravamento da infodemia – a grande pandemia de desinformação, negacionismo e pseudociência que acompanhou a pandemia de Covid-19, e que levou a Unesco a estabelecer, em 31 de agosto de 2020, um painel de alto nível para buscar estratégias de resposta.

Mas eis que se aproximam as eleições de 2022, e o presidente se lança de peito aberto em outra cruzada de suspeitas, já anunciada antes, mas apenas agora posta em movimento: todo o nosso sistema eleitoral seria uma grande farsa. As urnas eletrônicas não são confiáveis nem auditáveis, e não podemos confiar no TSE. Aécio Neves teria vencido as eleições de 2014; mas a fraude deu a vitória a Dilma Rousseff. Ora, como o presidente sabe disso? Aparentemente Aécio não sabe, coitado; negou a tese, não quis saber. Nem ele nem Aloysio Nunes notaram a piscadela de Bolsonaro para eles. Enfim, não colou. Mas de onde o presidente tirou esse “fato”?

Notem bem, meus caros, isso não é de pouca importância. É claro que é plausível a tese de um sistema falho e de fraude eleitoral. Como há muitas outras coisas plausíveis – em filosofia até se usam especulações sobre mundos possíveis como método exploratório. É possível que Hitler tenha sobrevivido à capitulação da Alemanha. É possível que a facada de Bolsonaro tenha sido uma grande farsa da extrema-direita. É possível que Elon Musk visite a futura colônia da SpaceX em Marte. É possível que minha tia acerte a quina na loteria. São coisas logicamente possíveis. Enfim, há coisas que são intrinsecamente impossíveis, como um círculo quadrado ou o Superman, e outras que são logicamente possíveis, mas duvidosas, improváveis ou inverossímeis. Minha tia, por exemplo, é crente das antigas e não joga nem morta.

Ocorre que fenômenos de baixa probabilidade precisam de extraordinário reforço evidencial para serem tratados como fatos. Fenômenos ordinários, como um copo se estilhaçar após cair da mesa, podem ser aceitos corriqueiramente e assumidos sem mais a partir de um testemunho de pessoas comuns. Mas fatos extraordinários, como um fenômeno físico atípico ou um milagre, precisam de maior atestação. Aqueles de nós que cremos na ressurreição de Cristo, por exemplo, cremos porque seus discípulos aceitaram a morte precisamente para validar seus testemunhos. Em não havendo testemunhos confiáveis e coerentes, são necessárias provas. E o mesmo vale para acusações extraordinárias sobre crimes e malfeitos, que envolvem assumir a existência de conspirações de larga escala e graus profundos de traição da confiança pública. Consideremos o caso da Lava Jato: demonstrou-se para além de qualquer dúvida a existência do petrolão, com recuperação de ativos, inclusive. A suspeita cresceu a partir de sólida evidência, testemunhas e trabalho investigativo e processual competente. E não posso duvidar da minha tia por nada.

O presidente se lança de peito aberto em outra cruzada de suspeitas, já anunciada antes, mas apenas agora posta em movimento: todo o nosso sistema eleitoral seria uma grande farsa

Perdoem-me os leitores por descer à explanação de tais obviedades, mas elas se fazem necessárias em um mundo delirante no qual a esquerda espalha desavergonhadamente a conspiração da facada – a “fakeada” – e no qual a direita compra a tese logicamente possível, mas duvidosa e inverossímil, da fraude eleitoral sistêmica, como isso se fosse um fato da natureza, como o pão de queijo no Mercado Central de BH ou o cachorro que vira o lixo na esquina toda sexta-feira à noite. Ou mesmo como se qualquer suspeita oportuna pudesse ser elevada ao status de possibilidade real, apenas por existir!

É como se o fato de alguém ter dúvidas instaurasse uma obrigação investigativa; uma espécie de imperativo cínico: “será que sou mesmo filho da minha mãe?” “Será que os dinossauros estão extintos? Talvez não... como saber? Afinal, nenhum de nós explorou todas as matas e todos os oceanos do mundo; além disso, o ensino universitário foi cooptado pelos financiadores das elites universitárias!” “Será que meu bebê será uma criança transgênero? Como não tenho certeza, é melhor ignorar seus genitais e educá-la como gênero neutro!” E assim abrimos a porta para que todo tipo de vieses cognitivos – vieses de disponibilidade, vieses afetivos, contágios emocionais, comportamento de manada e tribalismo moral – deem o empurrãozinho que falta para transformar uma ideia hipotética numa “sólida” tese moral e política. Ao cabo de tudo, o que falta de evidência a gente compensa com emoções, conveniência e uma pitada de parvoíce.

Mas antes fosse apenas a estultícia. O que é grave é o descuido, a irresponsabilidade no gesto de atirar a torto e a direito as pérolas da dúvida, a suspeita pela suspeita, o hábito de pensar sempre o pior e de apostar na perversidade e na traição. Ora, isso pode parecer bastante perspicaz, vivido, até velhaco, mas trata-se de pura e simples irresponsabilidade com a coisa pública. Afinal, se o sistema é uma fraude, o atual presidente nem é presidente. O que é isso a não ser o espírito da anomia serrando o próprio galho?

De onde o presidente tira a tese da fraude? Do mundo do possível. Daquele mundo no qual tudo é possível e, como a esquerda fará tudo o que for possível para vencer, possivelmente já o fez: pronto! E, se temos fraude eleitoral, precisaremos reformar o sistema, do contrário as eleições não serão confiáveis, e o nosso grupo não poderá aceitá-las. Pois, se as fraudes podem acontecer, aconteceram; e, se aconteceram, acontecerão de novo; e, se perdermos a próxima eleição, elas foram fraudadas. Ora, falta pouco para o passo final: já que não querem reformar o sistema para evitar as fraudes, por que não dar o golpe de uma vez? Bolsonaro não chegou a tanto, mas entre seus seguidores mais apaixonados essa infecção já é comum.

Não vou concluir o texto sem fazer uma concessão: impressão de comprovantes, ou mesmo um nível adicional de fiscalização e segurança informacional pode ser interessante em nosso mundo de hackers, revolucionários e manipuladores. Quiçá fosse essa a intenção da Presidência, estimular um belo aperfeiçoamento em nosso sistema eleitoral! Infelizmente não se trata disso. As alegações de fraude já foram feitas sem provas e, no que tange ao futuro, foram devidamente profetizadas.

Ninguém aqui é criança. A verdade pura e simples é que alegar fraude eleitoral sem provas é golpismo. Não é dúvida racional, nem preocupação com a justiça e a democracia, nem desejo de melhorar o sistema: é golpismo.

Em nenhum momento, depois de deixar o governo em março de 2020, eu recomendei a qualquer de meus amigos a saída. Tenho enorme respeito pelo trabalho que eles fazem no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e em outros setores do governo, e não penso que, por termos um presidente ruim, devamos ter o pior governo possível.

Alegar fraude eleitoral sem provas é golpismo. Não é dúvida racional, nem preocupação com a justiça e a democracia, nem desejo de melhorar o sistema: é golpismo

Mas a invasão do Capitólio em janeiro ferveu e desnaturou as coisas. Destemperou o aço. Atingiu um grau inusitado e profundo de periculosidade para a democracia e a paz social. Ou melhor: a narrativa trumpista de fraude, que legitimou a invasão, que não pôde substanciar suas alegações e não convenceu nem mesmo os juízes conservadores postos na Suprema Corte pelo próprio Trump, ameaçou de necrose a estabilidade daquele grande país.

Três dias depois do fato eu me comuniquei com alguns amigos no governo e apresentei-lhes meu não solicitado conselho: que se Bolsonaro adotasse o caminho trumpiano, ali teríamos o seu e o nosso Rubicão. E de fato, nas últimas semanas, Bolsonaro deu claros sinais de que está disposto a atravessar o Rubicão. Tivesse eu qualquer influência sobre pessoas no governo, aconselharia cada uma delas a enviar um recado: “se o presidente insistir nesse curso desastroso, me demito e vou para a oposição”. Eu aconselharia a ministra Damares Alves a fincar o pé e recusar-se a atravessar. Eu quereria ver muitos cristãos em cargos de confiança negando-se a atravessar o Rubicão, e deixando suas posições para não destruir a República.

Não tenho semelhante influência, nem em sonhos. Mas Luiz Fux tem, e já entregou o recado ao próprio homem na última segunda-feira. Oremos para que Bolsonaro não atravesse o seu Rubicão e para que o Brasil seja livrado dessa provação.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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