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Henrique Vieira no programa “Provoca”, da TV Cultura, em 2022.
Henrique Vieira no programa “Provoca”, da TV Cultura, em 2022.| Foto: Reprodução do Youtube

A quantas anda a relação do governo Lula com os evangélicos progressistas?

Ao que parece, eles foram deixados às traças. Na última segunda feira o pastor e teólogo Sérgio Dusilek publicou um artigo no Observatório Evangélico lamentando o “esquecimento” desses evangélicos por parte do governo. A Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito teria trabalhado duro para ganhar para Lula os 30% dos votos evangélicos. E, no entanto, nenhum líder representativo – como Ariovaldo Ramos, por exemplo – entrou no Conselhão. Dusilek adverte: em 2026 será mais difícil alcançar os evangélicos.

Penso que o Dr. Dusilek está certo e errado. Errado, em primeiro lugar, sobre a tese do “esquecimento”. Esse abandono dos evangélicos de esquerda vem sendo registrado há meses. Com os olhos na antiga articulação da Casa Civil na grande era petista, em tempos de Gilberto de Carvalho, ventilou-se durante a transição a criação de uma secretaria com foco nos evangélicos, mas Gleisi Hoffmann, presidente do PT, fechou a janela. Gleisi representa uma ala cética da esquerda, que aposta no laicismo e dispensa esse tipo de cooperação. Rebatendo falas de Edir Macedo no final do ano passado, ela foi clara: “não misturamos política com religião”. De fato, ela bloqueou qualquer representação institucionalizada.

Daí houve a posse do novo governo em 1º de janeiro, com uma ruidosa... ausência evangélica. De nada adiantou convidar artistas evangélicos populares como Kleber Lucas para a festa pública – as lideranças representativas foram meros gatos pingados. Sargento Isidório, Henrique Vieira, Ariovaldo Ramos e, claro, Paulo Marcelo Shallenberger – em termos de representatividade evangélica contemporânea, não chegou a ser nada, mas foi algo muito próximo disso. A ótima crônica da Ana Clara Costa na Piauí relatando a coisa dá a impressão de um melancólico fim-de-festa.

Ironicamente, o 1º de janeiro, dia do “começo” do novo governo, parece ter sido também o fim da “participação” evangélica nele. Depois de sua curta vida midiática, durante a campanha, os evangélicos progressistas não foram apenas esquecidos pelo governo, mas se mostraram impotentes no legislativo. As bancadas evangélicas no Senado e no Congresso já se posicionaram claramente nos assuntos de interesse, como as pautas morais e as liberdades fundamentais, e votaram massivamente com a oposição contra a interferência do Executivo no Marco do Saneamento.

Enquanto isso, evangélicos como Henrique Vieira tentam se gabaritar como vozes alternativas. O caso dessas figuras merece atenção; elas são catapultados por recrutadores da elite cosmopolita nacional, majoritariamente liberal-progressista, aparecendo em programas de televisão da GNT, incensados por produtores culturais, apresentados a políticos importantes, com a expectativa de serem os “nossos” evangélicos (deles, obviamente). Sua base eclesiástica, no entanto, é nula ou quase nula, e boa parte de seus seguidores em mídias sociais não são evangélicos típicos, mas não-evangélicos que se identificam com o discurso e dizem: “Vejam, um evangélico igualzinho a nós!” Mas isto não os torna membros das igrejas desses pastores progressistas. A maioria delas permanece vazia como sempre.

Não apenas as igrejas permanecem vazias e periféricas; alguns dos principais ícones da esquerda religiosa, como Ronilso Pacheco, não se cansam de atacar o mainstream evangélico. Em um artigo de 11 de janeiro no Intercept ele declarou que “igrejas conservadoras serão incubadoras da extrema direita” se o governo não tomar providências. É inevitável que esse tipo de discurso afaste os evangélicos do campo da esquerda, e cada vez mais rapidamente.

Mas o que impressiona acima de tudo é a esperança arriscadíssima de que o governo possa ou deva fazer alguma coisa a respeito, transpirando no artigo de Pacheco. Uma parte do progressismo evangélico quer receber ajuda do governo para reverberar a sua voz dentro do movimento evangélico, enquanto desqualifica a liderança conservadora como “fascista”. É por isso que a falta de apoio governamental é tão ruim para essas figuras; daí as reclamações pela “ingratidão do governo” Lula.

A Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito é nanica e não tem capilaridade para articulação política de grande porte

É claro que a elite cosmopolita – e principalmente sua ala midiática – se mantém em estado de autoengano quanto aos influenciadores e políticos evangélicos de esquerda. São lideranças evangélicas biônicas que não representam a comunidade, mas um ventriloquismo dos valores da elite cosmopolita. A estratégia não cola, mas a mim surpreende-me que a nossa elite cosmopolita pareça realmente acreditar nesse expediente. É como se o ventríloquo acreditasse no seu boneco.

Quanto ao governo Lula, no entanto, o que temos não é autoengano, mas perspicácia e pragmatismo. Ele não “esqueceu” os evangélicos progressistas. Pelo contrário, constatou a completa incapacidade da esquerda evangélica de se comunicar com o campo e de se viabilizar como seu representante. É verdade que o número de eleitores evangélicos de Lula cresceu em 2022, mas a alegação de que isso se deva à articulação da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito me parece absurda. A frente é nanica e não tem capilaridade para tanto. Lula recebeu esses votos por uma crise orgânica da própria comunidade evangélica com o Bolsonarismo, e que nada tem a ver com o poder de atração de figuras como Ariovaldo Ramos ou Henrique Vieira. Trata-se de uma flutuação do voto Bolsolula. Simples assim.

Os evangélicos progressistas incensados pela mídia laica vivem e “frutificam” enxertados na grande árvore cosmopolita; não passam de uma chave-de-fenda em sua caixa de ferramentas identitarista. Não têm raízes fortes nas igrejas, e se tornaram visados por seus ataques à fé tradicional. Por que cargas d’água o PT carregaria esse passivo? Posso estar enganado, mas o governo Lula e o PT de Gleisi Hoffmann não se esqueceram de nada; pelo contrário, estão acordados e com os olhos bem abertos.

Finalmente, como eu admito, o Dr. Dusilek está certo em seu outro ponto: em 2026 os evangélicos serão ainda maiores, e terão influência decisiva nas eleições. O pastor Ariovaldo Ramos fez a mesma observação à revista Piauí: “Esse grupo existe, é enorme, em dois anos será 50% da população e, nas próximas eleições, será maioria”.

Na última terça-feira, dia 30 de junho, Juliano Spyer publicou um artigo em sua coluna na Folha de S. Paulo mencionando novos estudos sobre o crescimento evangélico brasileiro. Os estudos indicam que esse crescimento é puxado por igrejas pentecostais de pequeno porte, e não por grandes blocos denominacionais: “o grupo mais importante numericamente e que puxa o avanço evangélico é o de igrejas pequenas e independentes, que funcionam em garagens nas periferias do país.” O pastor petista Marcelo Schallenberger sabe disso, e já usou esse argumento em suas propostas ao governo Lula. Mas como um governo e um partido político poderiam alcançar as “bases” evangélicas sem que esse movimento seja detectado e publicamente rechaçado? Lidar com caciques denominacionais é muito mais fácil; cooptar dezenas de milhares de pequenas congregações para o lulopetismo é uma missão virtualmente impossível.

A melhor chance da esquerda é que a direita colapse sobre o seu próprio peso, elegendo algum fanfarrão neobolsonarista. Se, no entanto, emergirem boas lideranças conservadoras e capazes de se comunicar com o cristianismo, será cada vez mais difícil para a classe cosmopolita seguir ignorando o proletariado cultural evangélico. A esquerda nacional não “esqueceu” os evangélicos, mas bem que gostaria de esquecê-los!

Quanto aos evangélicos progressistas, penso que eles fariam bem em sair do colo da elite cosmopolita e voltar a conversar seriamente e com humildade com a sua comunidade de origem.

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