Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Guilherme Fiuza

Guilherme Fiuza

Poderes

Por uma constituinte informal 

(Foto: João Risi/Audiovisual/PR)

Ouça este conteúdo

Salvo engano, o Brasil foi o único país representado nos funerais do Papa Francisco pelos presidentes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Se essa conjunção é uma novidade para o mundo, os brasileiros já podem se dizer habituados a ela. Não há dúvidas de que o poder estatal tem sido exercido de uma forma nova no Brasil. 

Fatos comuns na história do país envolvendo dissenso entre os três poderes parecem improváveis hoje. No nascedouro do processo de impeachment de Dilma Rousseff, por exemplo, o parlamento e a suprema corte tiveram alguns embates interpretativos até que o rito fosse efetivamente admitido. 

No governo FHC, mesmo com o Plano Real embalado por seus bons resultados, o presidente frequentemente precisava recorrer a medidas provisórias por não ter vida fácil no Congresso. 

Hoje, um anseio majoritário dentro do próprio Congresso pode ser recalcado pela cúpula, se não estiver em consonância com as outras cúpulas - a executiva e a judiciária.

Nunca se viu os três poderes tão sintonizados politicamente - e isso é uma matéria sobre a qual os jurisconsultos precisam se debruçar (certamente já estão se debruçando). O princípio da harmonia entre os poderes está na Constituição. O pressuposto da independência entre eles também está. 

A harmonia hoje é facilmente constatável. E a independência? Como se faz a aferição dela - sem partidarismos ou tendências ideológicas? Pode parecer fácil, mas não é tanto assim. 

Muito se fala sobre a extinção do foro privilegiado para parlamentares como forma de garantir a independência entre o Congresso e a suprema corte. 

Mas se a sociedade hoje aceita que processos envolvendo indivíduos sem a “prerrogativa de função” possam começar e terminar na corte máxima, o possível problema não é mais o foro privilegiado

Mesmo sem ele, na forma como funciona atualmente a Justiça brasileira, processos contra parlamentares poderiam ser avocados pelo STF, como tem ocorrido em diversos casos sem a chamada prerrogativa de função. 

Essa prática não está correta? Bem, de uma forma ou de outra pode-se dizer que está sendo aceita pela sociedade - não tendo sido até hoje repelida pela maioria da imprensa, das entidades representativas do direito e do parlamento. Enfim, está em vigência. E sob essa vigência, o fim do foro privilegiado não modificará nada nesse aspecto. 

É possível a existência de uma democracia equilibrada com os três poderes atuando em bloco? Os jurisconsultos estão com a palavra. Primeiro, para dizer se o que se vê hoje no Brasil é, de fato, uma atuação em bloco do Executivo, do Legislativo e do Judiciário.

A imagem no funeral do Papa é só um símbolo do que se tem observado em outras situações: entrevistas das autoridades máximas dos poderes sempre consonantes entre si, inclusive com verbalização do presidente da República de que “nós governamos” o país - em discurso onde aludia a representantes dos outros poderes. 

Em segundo lugar, a tarefa dos jurisconsultos hoje no Brasil é responder se o equilíbrio entre os poderes precisa de nova demarcação constitucional, e como seria ela. 

Se os poderes não se tornaram um bloco, mas se o Judiciário passou a ser um moderador, além de uma instância política - como muitos advogam - isso precisa estar na carta magna. 

O que se tem hoje é uma suposta “atualização” de atribuições, com praticamente um novo desenho institucional baseado em premissas interpretativas. A subjetividade precisa de letras que a sustentem. 

A menção aqui à figura do jurisconsulto é uma tentativa de trazer os dilemas brasileiros para o crivo da técnica. Estamos em meio a vozes múltiplas, muitas delas legítimas (outras nem tanto), mas a pulverização do debate público hoje em dia faz com que tudo vire uma “guerra de narrativas” - para usar a famigerada expressão da atualidade. 

O Brasil precisa de um fórum independente para se olhar no espelho - como uma constituinte informal, capaz de radiografar as práticas vigentes nos poderes e emitir um juízo sóbrio a respeito delas. Teria boas chances de guiar o debate para fora da “guerra de narrativas”.

Ainda há meia-dúzia de brasileiros com espírito público, independência intelectual e notório saber jurídico? Talvez não seja uma pergunta de fácil resposta, num país que parece não saber sequer distinguir notório de notável.

VEJA TAMBÉM:

Conteúdo editado por: Aline Menezes

Use este espaço apenas para a comunicação de erros