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Hélio Schwartsman gostaria que Bolsonaro morresse de coronavírus. Ele mesmo escreveu isso na Folha de São Paulo, que resolveu fazer de suas prestigiosas páginas divã para a publicização dos pensamentos funestos de um de seus colunistas. O jornal tem o direito de escolher esse caminho, mas não deixa de ser assustador constatar que a liberdade de expressão passou a ser usada sem pudor até para expressar o desejo pela morte dos contrários.

Mas Schwartsman nos assegura que sua torcida é por um bom motivo. Ele diz que “o sacrifício de um indivíduo pode ser válido, se dele advier um bem maior”. É que como Bolsonaro é um negacionista dos perigos da doença, se acabasse sendo vitimado por ela “presumivelmente pouparia vidas em todo o planeta”.

A argumentação do colunista é a mesma dos mujahidins, os soldados da guerra santa islâmica que tem por hábito se explodir em meio a multidões de civis ou jogar aviões em prédios comerciais. A morte do que eles chamam de “infiéis” ajudaria a purificar o mundo. Os nazistas pensavam o mesmo enquanto mandavam os judeus para as câmaras de gás. Os campos de extermínio foram construídos para que a suposta raça superior prevalecesse. Nos países comunistas a mortandade ocorria em nome de um mundo ideal de igualitarismo. O tal consequencialismo advogado por Schwartsman teve aplicações variadas na história humana, sempre com justificativas das mais nobres para produzir cadáveres.

O nível de vulgarização moral e banalização da vida em nosso país se tornou sem precedentes. Mas não apenas pelo texto que mencionei. As dezenas de milhares de vítimas do coronavírus foram normatizadas. Tomou-se de barato que são aceitáveis e devemos aprender a conviver com elas. Não impactam mais nem como estatísticas. A cada nova leva de brasileiros tragados pela peste, consolida-se o pensamento de que esse é o cotidiano. E isso quando não se põe em dúvida a ocorrência de todas essas mortes.

A rede de fake news convenceu muita gente de que isso seria parte de uma conspiração envolvendo médicos, legistas, governadores e muitos outros profissionais e agentes públicos. E aí Bolsonaro tem enorme responsabilidade, pois parte dele uma série de declarações não apenas relativizando e diminuindo a letalidade da doença, mas também lançando a senha para que esse tipo de questionamento fosse difundido por aí.

O presidente também se insurgiu contra o uso de máscaras. Entrou na Justiça para não precisar usá-las e vetou trechos importantes da lei que regulamenta a utilização pela população em geral. Tudo isso com o falso argumento de preservar a liberdade individual. Como se os indivíduos tivessem direito de serem vetores de contaminação.

Por fim, depois de contaminado pelo vírus, Bolsonaro passou a ser cobaia pública do uso de cloroquina, remédio que entre seus apoiadores virou uma espécie de tylenol do covid.

A polarização política somada com a pandemia e a postura de irresponsabilidade intransigente da maior autoridade do país criaram o cenário ideal para que a divergência política fosse enterrada como indigente. Foi substituída por um festival de baixarias, de ataques pessoas, de injurias, calúnias, difamações, e, também, de manifestações de desapreço pela vida alheia.

E é bom lembrar que Schwartsman não está sozinho no exercício boçalidade mórbida . Se voltarmos para 2015, constataremos que Bolsonaro desejou a morte de Dilma Rousseff de “infarto ou câncer”. Não faz muito, alias, o próprio Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, ofendeu sua colega Joice Hasselmann após ela ser diagnosticada com coronavírus. “Não sabia que covid dava em porco”, escreveu com a delicadeza que lhe é peculiar.

Em seu Twitter, o advogado Gilberto Morbach fez muito bem em lembrar uma frase de Albert Camus no ensaio filosófico “O homem revoltado”: “Carregamos todos, dentro de nós, as nossas masmorras, os nossos crimes e as nossas devastações. Mas nossa tarefa não é soltá-los pelo mundo: é a de combatê-los, em nós mesmos e nos outros”.

Não é porque discordamos, não gostamos ou nutrimos até repugnância desse ou daquele governante que devemos partir para a prática da selvageria, mesmo que limitada ao campo da retórica. Também não é preciso desejar o mal ao outro, mesmo que esse eventualmente tenha desejado o mal a outros antes.

Aos nos pautarmos por essas condutas deturpadas, não valorizamos a civilidade e muito menos a vida, apenas alimentamos o espírito do tempo que destrói nossa sociedade.

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