Há algo de especialmente condenável na difusão do tratamento precoce como solução para a covid-19: a manipulação da esperança. Com tantas contaminações e mortes, o desejo do leigo é se agarrar a qualquer coisa que possa servir de amparo. Nada melhor do que remédios que supostamente conhecemos bem e que figurões da medicina recomendam através de “observação clínica”. E aqui já vale o destaque, que pode ferir o sentimento de alguns, mas que é a mais pura verdade: nem médico é necessariamente autoridade científica, nem observação clínica serve como estudo.
É falso que haja ausência de evidência para efetividade dos medicamentos que compõe o chamado Kit Covid. Existe, isso sim, excesso de evidência provando que não funcionam. As alegadas provas de que funcionariam são insuficientes, oriundas de mera observação, preprints não analisados por pares, metanálises com padrões enviesados e outros tipos de pesquisas menos precisas, como os estudos in vitro, que servem para criar hipóteses.
Os mais variados Estudos Randomizados Controlados, que compõem o padrão de excelência dos estudos clínicos já demostraram que, seja de forma precoce, nos primeiros dias de sintomas ou em agravamento da doença, remédios como cloroquina, hidroxicloroquina e ivermectina simplesmente não funcionam.
O fluxo contínuo de informações na internet, ao invés de esclarecer o debate, fez com que se tornasse poluído e desvirtuado. Pesquisas padrão ouro são respondidas com outras que nem de perto tem a mesma acuidade, estabelecendo uma equivalência fraudulenta que beneficia os que espalham boatos e informações falsas.
Estamos diante do maior caso de efeito placebo coletivo da história humana. E isso por uma razão muito simples: a maior parte dos casos de coronavírus (mais de 95%) tende a ser composta de assintomáticos ou sintomas leves. Isso leva a uma confusão básica: casos que não agravariam naturalmente acabam sendo atribuídos como solução mágica dos medicamentos que, na verdade, não fizeram diferença nenhuma.
Observações clínicas de pacientes não são evidência científica e quase sempre acabam criando desvios interpretativos. Um médico pode atender um conjunto grande de pacientes, mas isso não significa que possa estabelecer critérios comparativos entre grupos. Esses tipos de nuances são fundamentais para a composição de estatísticas. De modo que seu testemunho dos “resultados” obtidos não pode se sobrepor ao conjunto de evidências obtidas por pesquisas mais precisas.
Outro tipo de argumento usado para “provar” a eficácia do tratamento precoce é apontar cidades que adotaram esse tipo de procedimento como exemplos do que fazer. Não se pode tomar como válidas as informações agregadas num local muito específico de modo a tê-las como referência num nível maior e menos agregado. Na estatística isso chamado de falácia ecológica.
Quando o coronavírus começou a se espalhar, cientistas, médicos e estudiosos saíram em busca de potenciais medicamentos que pudessem sanar ou atenuar essa nova doença. Com o tempo, a experimentação científica descartou inúmeros tratamentos que, de modo incipiente, indicavam potencial efeito benéfico. Em outros casos, acabou comprovando a eficácia, como o Rendesevir, que tem sido usado para pacientes graves.
O debate sobre o tratamento precoce permanece apenas no Brasil, em que foi instrumentalizado politicamente por um presidente negacionista. No resto do mundo, a busca foi pela imunização em massa. As vacinas se mostraram efetivas não só nos mais rigorosos exames clínicos como também na prática, com os resultados robustos no Reino Unido, em Israel e nos EUA. Em nenhum desses países a pandemia foi derrubada usando remédio para verme ou nebulizando cloroquina.
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