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Certas crônicas merecem guardar o luto. Escrevê-las no suor da hora, respondendo ao rodopiante noticiário cotidiano, é tratar vulgarmente o que merece quase religioso pudor. Seria conveniente, talvez metafísico, silenciar, não tocar no assunto, evitar o comentário, mas o silêncio é insulto quando os fatos enchem de vergonha até a cara dos paralelepípedos.

Dias atrás um carro de passeio foi alvejado pela Polícia Militar do Rio de Janeiro. A suspeita: o carro teria sido roubado. O fato: havia uma família no carro, bandido nenhum. Pai, mãe, sogro, criança, adolescente. Oitenta e três tiros foram disparados. O motorista, Evaldo Rosa, morreu no local. Luciano Macedo, catador de lixo, tentou ajudar a família e foi atingido. Morreu dias depois.

O Comando Militar do Leste (CML) alegou que os militares haviam sido alvo de agressão por parte dos ocupantes do carro. A família contestou, a polícia averiguou e o Exército resolveu se lembrar direitinho de como tudo aconteceu. Era uma família simples, como outra qualquer, indo a um chá de bebê. Os militares confundiram o carro com o de um assalto que ocorrera por perto; mesma cor, outra marca e diferente modelo. No Brasil, tudo funciona mais ou menos assim: ninguém é inocente, até prova em contrário. Se pobre, tanto pior. Se pobre e preto ou pardo, sempre estará no lugar errado e na hora errada. Qualquer lugar, qualquer hora.

Os militares foram presos, mas notícias dão conta de que responderão em liberdade. Na ocasião, o Ministro da Defesa lamentou o “acidente”, e acidentes de vez em quando acontecem, não é mesmo? Não, não é mesmo. O que aconteceu foi execução, essas de filmes mexicanos. Minto: essas de realidade brasileira.

Não é possível tergiversar, dar tratos à bola, transformar em eufemismo o que é pleonasmo: o Estado brasileiro é autoritário, executa gente, abusa de autoridade, achaca o cidadão, estimula e pratica crimes. O crescimento do crime organizado só é possível porque o crime se organiza não à borda do Estado, mas dentro dele, com anuência dele. Existe uma violência sistêmica, estrutural, viciosa, do Estado contra o indivíduo.

Apontar isso não implica adotar o discurso daquela esquerda alienada e alienante, acusadora e cúmplice, que interpreta o crime como fenômeno sociológico e econômico, ou como justa revolta diante do “sistema capitalista”. O fenômeno do crime é sociológico, mas é muito mais que isso. É, em muitos casos, decisão moral.

Por decisão moral entendo não apenas o ato individual de cometer o crime, de escolher este ou aquele caminho ético e existencial, mas todo o rol de justificativas e motivações que pretendem explicar ou justificar o que muitas vezes não tem justificativa nem explicação. Também vale registrar que a esquerda, a mesma esquerda que denuncia a violência policial e o fascismo de Estado, é aquela que historicamente tem parte grande de culpa na legitimação do bandido como anti-herói – ou, nos casos mais explícitos, como herói em sentido estrito.

De todo modo, o combate ao crime não pode se transformar numa caçada oficiosa e à margem da lei; no incentivo à atuação de milícias e em sua legitimação moral; no fuzilamento de gente inocente que passeava por ali; na política do atira-primeiro-pergunta-depois; no discurso de que “lamentáveis acidentes” acontecem; na condecoração de snipers como honrados samurais.

Os mais de oitenta tiros contra a família que ia ao chá de bebê; os mais de oitenta tiros que mataram o músico e pai de família Evaldo Rosa; os mais de oitenta tiros que mataram Luciano Macedo, catador de lixo e, este sim, herói – os mais de oitenta tiros foram disparados por alguém. Os mais de oitenta tiros têm nome e sobrenome, têm ordem e progresso, tem patente e uniforme.

Lamentável acidente é só o Brasil.

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