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Foto Priscila Forone/Gazeta do Povo
Foto Priscila Forone/Gazeta do Povo| Foto:

O projeto de lei apresentado por Jair Bolsonaro à Câmara dos Deputados, que trata de alterações em leis de trânsito e regras da CNH, serve como medida entre aqueles que elogiam o que há para ser elogiado no governo e todos os outros, que fecharam com Bolsonaro e não abrem sob hipótese nenhuma. Para estes últimos, se o presidente assinar decreto dizendo que a Terra é plana, doravante será plana. Aliás, há gente próxima dele que confessa ter dúvidas...

Não vou me ocupar com a discussão de todo o projeto, de todas as alterações. Algumas podem ser úteis. Por exemplo, não vejo sentido num prazo tão curto para renovação da carteira; o aumento de cinco para dez anos soa razoável. Arrisco que até mesmo a ideia de dobrar o número limite de pontos é defensável.

Porém, há poréns.

Qual será, exatamente, o benefício social em desobrigar exame toxicológico para motoristas profissionais? De que maneira isso “desburocratiza” o ambiente de negócios? E, se desburocratizar, a que preço? Quer dizer que um exame já estabelecido, justificável para o tipo de atividade, deixa de ser obrigatório apenas porque sim? Somente porque, em tese, isso facilita a vida dos motoristas profissionais, conquanto possa facilitar também a vida de motoristas pouquíssimo... profissionais?

O affair da cadeirinha é amostra ainda mais eloquente do que há de pior nessa adesão cega a qualquer terraplanismo político, desde que vindo com o carimbo de “liberal na economia e conservador nos costumes”, desde que talhado pelo Messias nas tábuas da lei. A obrigatoriedade – com multa – do uso da cadeirinha é regra internalizada, aceita e compreendida socialmente. Não é questão que se discutia à mesa de bar. Não havia revoltas populares contra o uso da cadeirinha. Não temos sindicatos a favor de que as crianças viajem soltas no banco de trás. É uso – e obrigatoriedade – que faz sentido.

Julgo oportuno, de vez em quando, refletir sobre os conceitos de Estado e mercado não como visões de mundo – este é estatista, aquele livre-mercadista –, mas como tecnologias sociais. Ou seja: em vez de pensar tudo em termos de mais Estado, menos mercado, mais mercado, menos Estado, pensemos em Estado e mercado, cada um à sua maneira, como ferramentas de que o homem faz uso para (tentar) solucionar problemas.

É possível argumentar que esta tecnologia é melhor ou pior do que aquela. Um liberal dirá que o Estado é, já e cada vez mais, tecnologia obsoleta, ferramenta grosseira para solucionar problemas tão complexos quanto os culturais. Outro qualquer, menos liberal – e, por que não?, conservador – defenderá que o Estado é instrumento robusto o suficiente para lidar com certos defeitos que o mercado deixa de lado por excesso de delicadeza.

Se, por um momento, tratarmos então de Estado e mercado como maneiras mais ou menos apropriadas para resolver determinados problemas, e de coerção e liberdade como atitudes-reações correspondentes, o caso da cadeirinha deixa de representar o embate quase mitológico entre visões de mundo para terminar numa pergunta singela: neste caso, quais são os efeitos colaterais ruins da coerção estatal? Ante a obrigatoriedade que traz efeitos benéficos, qual é a vantagem de suspender a coerção e, com isso, assumir o risco de que mais crianças morram em acidentes de trânsito?

Considerando que o Estado existe e intervém de um jeito ou de outro, o grau de intervenção do Estado, em casos como o da cadeirinha e do cinto de segurança, parece proporcional. Nem mais, nem menos. Gera efeitos mais benéficos que prejudiciais. O uso da cadeirinha reduz mortes de crianças em acidentes de trânsito e, no mais, foi bem assimilado como regra? Pois que seja mantido. Se porventura pesquisas relevantes cientificamente comprovarem, com pouca margem a dúvidas, que as cadeirinhas potencializam o resultado-morte, a história será outra: arranquem-se as cadeirinhas. Se a indústria inventar carros mais seguros que dispensem o uso, dispensamos o uso. Em política pública, números importam.

No atual estado da questão, quem argumenta contra a obrigatoriedade apela de algum modo à filosofia libertária, em que tudo se justifica de acordo com a premissa geral de que sempre, em qualquer circunstância, época e contexto, o Estado atrapalhará. Li por aí um gaiato que dizia: “Se querem usar cadeirinha, continuem usando. Bolsonaro não proibirá o uso”. Outro, mais conservador que o avô da minha avó, resumiu o debate num displicente: “A responsabilidade pela criança é dos pais, não do Estado”. Muito bem. Isso vale também para aborto, mudança de sexo, uso de drogas e casamento gay, ou nesses casos é melhor que o Estado proíba mesmo? Mistérios.

Nem um nem outro, nem o libertário bolsonarista nem o bolsonarista libertário, se ocupam de ponderar que o diretamente interessado – a criança – não será capaz de proteger-se a si mesmo e optar por usar ou não a cadeirinha. Para isso é que crianças precisam de adultos prudentes à volta. Caso contrário, a criança estará à solta no banco e à mercê da filosofia política dos pais, ou do acordo entre as convicções paternas e as convicções do presidente. Se para eles tudo bem, então tudo bem. Se a criança vier a sofrer as consequências do déficit de segurança do carro e do déficit de sensatez presidencial, o problema e a filosofia são dos pais. Entre a cadeirinha e as convicções, a vida infantil é um valor que não interessa à equação.

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