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Cena do filme "Vidas Secas", de Nelson Pereira dos Santos, baseado na obra de Graciliano Ramos.
Cena do filme "Vidas Secas", de Nelson Pereira dos Santos, baseado na obra de Graciliano Ramos. | Foto:

Jair Bolsonaro teve expressivos 49 milhões de votos, muitos votos a mais que o Cavalo de Tróia petista. Parto do princípio de que as urnas eletrônicas funcionaram a contento. Notícias e relatos sobre fraudes – já esperados, porém desmentidos – não determinaram o rumo das eleições. (Aliás, em todas as eleições acontece a mesma coisa.) O leitor mais afeito às teorias conspiratórias pode ficar por aqui; os argumentos a seguir não lhe servirão. Para aqueles que aceitam os números como se apresentam, há que se ponderar uma ou duas coisinhas.

Em seu primeiro discurso após a confirmação do resultado, Bolsonaro acertou e errou; mais acertou que errou. Errou, novamente, ao desconfiar da lisura do pleito, da legitimidade de um sistema em que aceita disputar. Afirmou que não venceu por causa dos problemas nas urnas eletrônicas. É a mesma questão de sempre: caso sua vitória se confirme, o que deve acontecer, ele deveria renunciar ao mandato, pedir a impugnação do pleito, exigir a conferência dos votos. Duvido que o fará.

Por outro lado, Jair Bolsonaro acertou em cheio naquilo que seus eleitores mais têm errado: evitou culpar os nordestinos pelos votos que lhe faltaram. No que fez muito bem. Nas redes sociais pipocam frases de invulgar sabedoria política, do tipo: “Os cornos liberais que não votaram no Bolsonaro…”; “Nordestino nem é gente…”; “Os nordestinos deveriam ter vergonha de sair de casa…”; “Eu tenho vergonha de ser nordestino…”.

A despeito de seus correligionários, o candidato do PSL, num gesto de aproximação que não lhe é comum, apelou a valores e disse que o PT mentiu muito e instrumentalizou sua miséria. “O que quero para o Nordeste é que uma região que através do seu povo, humilde, conservador e trabalhador, fique livre da mentira, fique livre da coação que sempre existe por parte do PT. Eles fazem um verdadeiro terrorismo desses que pertencem ao grupo de gente mais humilde no Brasil”. E é verdade. Finalmente, algum juízo parece ter caído dos céus na cabeça do Messias; uma pena que não sobrou muito para seus eleitores.

De todo modo, a vitória do PT na maior porção do Nordeste (Bolsonaro ganhou em algumas capitais) é a vitória de um certo modo de fazer política – e de um certo vocabulário político – que o partido domina como ninguém: o da chantagem, o da instrumentalização da miséria, o da política como mercado futuro. Sempre num horizonte mais distante haverá desenvolvimento, água, chuva, trabalho; enquanto isso, cuidamos de vocês bem de pertinho. Absurdo não é ter vencido lá; absurdo seria se não vencesse. Lula ainda tem força para fazer um ou dois de seus truques.

O entusiasmo com Jair Bolsonaro, concentrado na região sudeste e em outros focos mais ao centro-sul, fez com que se esquecessem que ele não era ninguém para boa parte do país. O Brasil é grande demais e bastante heterogêneo. Ele, um candidato carioca, de carreira até agora inexpressiva, soube falar a determinado público em muito pouco tempo. Tudo aconteceu em aproximadamente um ano. Há seis meses, o super-herói Paulo Guedes era ilustre desconhecido para quase toda a militância.

A última coisa a fazer, nesse momento, é justamente a primeira que os militantes já estão fazendo: disparar ofensas a um povo que já se sente ofendido o suficiente. Não me rendo à demagogia. Não se trata de defender o nordestino de seus próprios erros, até porque nascimentos são acidentes, mas tão somente reconhecer que, end of the day, a política eleitoral é um mercado de peixes, e políticos bons de voto sabem vender peixes; se os venderem podres, irão à falência.

Há necessidades materiais urgentes a serem atendidas, e o envolvimento do Partido dos Trabalhadores com as classes mais pobres não é de hoje. O assistencialismo, quando fim em si mesmo, é desastroso; no entanto, é o que sempre se fez e sempre deu certo. Para que Bolsonaro vença ele precisa falar a esse povo, e não lutar contra ele. Precisa conter seus discursos nos limites razoáveis da retórica política e aparar as arestas restantes.

Bolsonaro ainda não venceu por muitas razões, mas uma das mais importantes é essa: sua campanha arrivista – que repele, em vez de atrair; que antagoniza, em vez de conciliar. Depois de atingir uma base sólida de eleitores, não soube ou não quis ajustar o discurso; falou para si mesmo, para os seus, esquecido de que eleições se vencem com maiorias. Cresceu o bastante para garantir o favoritismo, porque o voto antipetista e a rejeição a Fernando Haddad também cresceram, mas ainda não o suficiente para sepultar de vez o PT.

Eleitores são clientes que têm de ser conquistados, e é comum a um cliente confiar em quem já conhece. Se você xingar o seu cliente, ele procurará outro. Quando o inacreditável General Mourão cisma de falar em branqueamento racial, não podemos esperar outra coisa senão a persistência do vermelho nas urnas: “Fui um idiota”, admitiu ele. Tu o dizes, General. Pelo jeito, o vice-presidente parece ter errado na proporção da receita, e lido Gustavo Barroso demais para Gilberto Freyre de menos. Não é preciso haver fraudes quando há Mourões. Por mais que a virada seja quase impossível, há que se ter cuidado com a boca, porque ela fala daquilo que o coração está cheio. Depois não fará sentido culpar as urnas eletrônicas ou os institutos de pesquisa, quando a burrice basta e sobra para fazer o serviço completo.

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