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Meus agradecimentos ao amigo Daniel B. Cunha, meu Goebbels de estimação, pela foto acima.
Meus agradecimentos ao amigo Daniel B. Cunha, meu Goebbels de estimação, pela foto acima.| Foto:

Antigamente era mais difícil mentir.

Mentir dava trabalho. Era preciso engenho, deliberação, estudo, alguma habilidade. Com o avanço tecnológico, o barateamento dos aparelhos e a acessibilidade dos dispositivos, manipular imagens, vídeos e sons deixou de ser coisa para técnicos ou peritos; qualquer um, com interesse e um pouco de capricho, reinventa a verdade e a distribui sem muita cerimônia; qualquer priminho vira um Goebbels mirim.

Não que esse tipo de interferência seja inédito; inédita é a escala de sua expansão. A internet e a tecnologia tornaram muitas coisas obsoletas, mas pelo menos uma delas foi enterrada para sempre: o ditado bastante popular, atribuído a Confúcio, segundo o qual “uma imagem vale mais do que mil palavras”.

Uma imagem não vale mais nada. A imagem agora é a puta das provas.

Os soviéticos eram mestres inigualáveis. A manipulação das fotografias do período stalinista atingiu o estado da arte, e é possível recontar a verdadeira história da União Soviética por meio de suas reiteradas mentiras. Não foram apenas os comunistas que se aproveitaram disso, é claro, mas uma coisa é certa: nós daríamos orgulho a Stalin.

Hoje queremos editar a realidade para que ela caiba em nossas expectativas de realidade. Não aceitamos mais a hipótese contrária, não aceitamos o confronto entre o que desejamos e o que a realidade nos devolve.

Essas eleições de 2018 foram (estão sendo) um show à parte. Se as pessoas soubessem o que aconteceu, ficariam enojadas!

Primeiro, tratou-se de criar a expectativa: as urnas serão fraudadas a depender dos resultados, os institutos de pesquisa terão mentido a depender das pesquisas. Plantada a suspeita, bastava esperar para que a realidade, feitos os devidos ajustes com um bom software, correspondesse às expectativas.

Não se enganem, entretanto, a respeito dos protagonistas, porque nesse bang-bang não há mocinhos: não foi apenas Jair Bolsonaro e seus acólitos que se recusaram (e ainda se recusam) a ver o que está a um palmo de distância; também os petistas e outras espécimes mais exóticas se fartaram nas suspeitas e nas alucinações.

Quando o candidato do PSL foi esfaqueado em Juiz de Fora, houve gente – e muita gente – que garantisse tudo ter sido manipulação, mentira, jogo de cena, teatro, golpe. (Outro golpe.) O homem entre a vida e a morte, os descrentes negando; as imagens estapeando a cara da audiência, a audiência tapando os olhos para não ver imagem nenhuma.

Fiquei sinceramente impressionado.

O atentado deixou de ser notícia, a bolsa de colostomia do deputado perdeu relevância, a campanha continuou e as mentiras se multiplicaram. Até chegar o dia em que a narrativa previamente armada tivesse sua triunfal confirmação.

Milhares de “notícias” e “relatos” de urnas fraudadas correram o país. Gente que tentava votar em candidato estadual de outro estado e esgoelava indignação; gente que compartilhava “fotos” de boletins manipulados semelhantes a outros boletins manipulados, com pequenas variações; vídeos editados para provar que, quando se digitava Bolsonaro, aparecia a imagem de Darth Vader.

O fato puro e simples é que ele não ganhou já no primeiro turno porque, afinal de contas, tem um forte adversário na rinha de galo da política nacional; não Haddad, que é fraco, mas a quadrilha que ele representa. No país que elegeu o PT para quatro mandatos sucessivos, nada mais razoável que o partido ainda tivesse votos suficientes que o levassem ao segundo turno. Foi por pouco, mas foi.

Ainda que Jair Bolsonaro vença, e acredito que vencerá, uma coisa parece estar perdida para sempre: a noção singela de confiabilidade. Ninguém acredita mais no que vê com os próprios olhos, porque todos agora manipulam, recortam, editam, colam, copiam e distribuem pedaços de mentira sem pudor algum. Todos só querem acreditar no que manipulam com os próprios dedos.

O desmentido é trabalhoso e tem de ser feito por mil cruzamentos e explicações. Mesmo assim, não adianta. Some-se a isso a disposição viciosa de só acreditar naquilo que previamente se encaixa nas expectativas anteriores ao evento, pronto: entramos de cabeça na era da mentira em escala industrial.

Como lidar com esse maravilhoso e terrível mundo novo é assunto para epistemólogos e filósofos da ética. No mundo da pós-verdade, a verdade verdadeira é uma inconveniência perfeitamente dispensável.

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