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Sissi, na Copa de 1999, contra a Noruega em Pasadena, Califórnia (Vincent Laforet/Getty Images)
Sissi, na Copa de 1999, contra a Noruega em Pasadena, Califórnia (Vincent Laforet/Getty Images)| Foto:

Ao menos para a seleção brasileira, a Copa do Mundo acabou. Com ela, acaba o interesse pelo futebol feminino e podemos voltar à nossa programação normal.

Moro? Lula? Greenwald?

Sei que enfio dedo em vespeiro ideológico. Que seja. Sinceramente, duvido que toda essa súbita, emocionada, política e empostada atenção às mulheres no futebol irá resistir ao ordinário intervalo entre as Copas.

As coisas têm sido assim. Em meados dos anos 90, Luciano do Valle fez o que pôde e o que não pôde para incentivar e popularizar o ludopédio entre senhoras e senhoritas brasileiras. Jogos eram transmitidos e narrados com paixão. Tínhamos uma craque, a ótima Sissi, que hoje mora e ainda joga nos EUA. Sabem o que aconteceu?

Nada.

No decorrer desta Copa, muita gente que nunca deu bola para o jogo de bola, que sempre apontou alienação no fanatismo dos homens, que tanto ironizou as camisetas da CBF, sem mais nem menos se convenceu de que idolatrava o futebol com a ferocidade dos neófitos. Gritos. Aplausos. Lágrimas. Juras. Tudo postiço, improvisado, aprendido anteontem.

Bem mais do que a estética do jogo, as qualidades técnicas, táticas e físicas dos times, o que parecia mobilizar a audiência era a política do evento. Esse foi o tema, aliás, dum texto que defendia em maiúsculas a tese minúscula: “Torcer para a seleção feminina é um ato político”. Deus me livre e guarde de torcer nessas condições. Prefiro a alienação pré-marxista.

Repentinamente, o gramado se transformou na última fronteira da afirmação de gênero; a grande área, na derradeira barricada da guerra entre os sexos. A notícia de que Marta ganha menos do que Neymar provocou mais escândalo que morte de criancinha. Ficamos sem saber ao certo se precisamos de bons times ou de um forte sindicato e um sociólogo para o cargo de treinador.

A ironia é que Marta ganha menos do que Neymar e, voilà!, mais do que a maioria dos jogadores em atividade no Brasil. Pesquisem. “Muito bem”, perguntarão, “mas ela não deveria ganhar tanto quanto Neymar?” Não. Ainda não. Marta ganha de acordo com o interesse que a modalidade feminina desperta. E isso não é culpa de ninguém. Ou é culpa de todo mundo. Sem dolo.

Há mais de um século o futebol é praticado por homens, consumido por homens, investido por homens. Isso explica a economia e a cultura do esporte. Nasceu como passatempo de ricos e brancos; com o tempo, e não demorou muito, popularizou-se e escureceu.Virou esporte da gente pobre, dos pés descalços, dos garotos da rua ou nas ruas, dos meninos negros, pardos, mestiços. Até de brancos. Aconteceu porque aconteceu.

Aconteceu porque algum bicho nos picou, e invocamos de nos interessar, e de o interesse persistir ano após ano, jogo após jogo, jogos bons e ruins, em gramados perfeitos e esburacados. Milhares, milhões, bilhões pagam para assistir a uma partida. Compram camisas. Ingressos. Canecas. Faixas. Chaveiros. Mais camisas. Livros. Álbuns. Mais canecas. Sincronizam o calendário da vida ao calendário do time. Assistem do Desafio ao Galo à Champions League. Frequentam arenas e campos de várzea. E o pós-jogo dura mais do que o próprio jogo.

Quem abriu todos os poros de sua consciência de gênero durante esta Copa – continue assim no intervalo entre uma Copa e outra. Vá ao estádio ver qualquer jogo. Jogo feio e jogo bonito. Com chuva ou sem chuva. Jogo sem apelo fácil e compartilhável em rede social. Jogo de título e de rebaixamento. Jogo de meio de campeonato, quando seu time já não tem o que fazer, mas você conta os pontos religiosamente assim mesmo. “O que peço para as meninas é: valorizem mais!” Quem pede é Marta, não sou eu.

Isso exige algo mais do que emoção prêt-à-porter, vestidinha de crítica social, espontânea como selfie. É mais difícil do que espalhar hashtag e apelidar as jogadoras de meninas, de guerreiras, de lutadoras ou clichê semelhante.  Pois o que falta às mulheres é, vejam só, amor. Amor e romantismo – como o dos homens. Romantismo de matar e morrer (literal e metaforicamente). Amor verdadeiro ao futebol feminino, não ao tatibitate identitário e político que o envolve e o torna aborrecido. Amor pela bola e não pelo discurso. Amor pelo gol e não pela mise-en-scène. E também ódio sincero. Visceral. Inapelável. Falta odiar o escanteio curto. Quando a mulher aprender a odiar o escanteio curto, terá aprendido a amar o futebol.

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