• Carregando...
De Graciliano Ramos a essa do Queiroz
| Foto:

Pensei em construir um novo cemitério, pois o que temos dentro em pouco será insuficiente, mas os trabalhos a que me aventurei, necessários aos vivos, não me permitiram a execução de uma obra, embora útil, prorrogável. Os mortos esperarão mais algum tempo. São os munícipes que não reclamam.

Graciliano Ramos, Relatórios (Editora Record)

 

 

São obscuros os caminhos da língua portuguesa. Da metrópole à colônia, da colônia à metrópole, os grandes escritores portugueses se confundem com os grandes brasileiros; estes aprendem com aqueles; aqueles renascem na língua destes.

Ainda mais improváveis, mas nem por isso impossíveis, são os liames entre a literatura daqui e a política de lá; a literatura de lá e a política daqui. Nada é por acaso, dizem os crentes. Sou um crente. Acredito em Deus e, se precisar, acredito até mesmo no Gustav Jung e na mais estranha sincronicidade.

Entre os anos de 1929 e 1930, Graciliano Ramos foi prefeito do município de Palmeiras dos Índios, no estado de Alagoas. No tempo de sua administração, lidou com os problemas mais comezinhos, anônimos e tristes daquela gente sertaneja, naqueles anos em que a Bolsa implodia o mundo, mas o mundo não implodia Palmeira dos Índios, porque nem a conhecia.

Graças a Deus, o mundo veio a conhecer os Relatórios do prefeito da cidade alagoana.

Para quem não sabe, o velho Graça escrevia relatórios precisos, irônicos, meticulosos – e sobretudo engraçados –, e os enviava ao então governador, Álvaro Paes. Contava dos gastos e dos cortes de gastos, dos privilégios, dos cachorros de rua, das estradas, do lixo, dos impostos, dos fantasmas, dos funcionários, dos funcionários fantasmas, e de um sem número de miudezas que um município do interior dum estado pobre são assunto e problema.

Graciliano morria de tédio. Renunciou ao cargo, depois de dois anos, não sem antes deixar dois bons exemplos, cada vez mais raros nos nossos homens de política e de letras. O primeiro, de probidade inapelável. O segundo, de uso excelente da língua portuguesa.

Antes que me adiante, um terceiro exemplo ele deixou: fez uma coisa e outra sem alarde, sem arrogância, sem vaidade.

Pois os Relatórios foram parar nas mãos de Augusto Frederico Schmidt, poeta e editor, que publicou Caetés, que se transformou em clássico, que fez do ex-prefeito o escritor do Brasil. Um dos grandes, tão grande quanto Eça.

E agora, anos depois, essa do Queiroz.

O ex-assessor de Flávio Bolsonaro, um daqueles funcionários que Graciliano teria demitido de pronto, movimentou milhares de reais, foi descoberto, sumiu do mapa, adoeceu, sarou, apareceu e deu entrevista. Garantiu, vaidoso, que é bom negociador de carros; daí o dinheiro. Não deixa de ser irônico que tenha alegado tal atividade como causa do enriquecimento; irônico porque, convenhamos, negociadores de carro já não têm boa fama. Que me perdoem os bons e probos negociadores. De carros.

Ortega y Gasset dizia que o homem é ele e sua circunstância; pois há aqueles que se comprazem em ser tão somente o encontro desnorteado de suas circunstâncias, voláteis como nuvens, e passam muito bem assim. Salvando-as ou não.

Essa do Queiroz é daquelas em que só acredita quem quer acreditar em mitos. Em mitologias. Se calhar, melhor mesmo é seguir os conselhos do prefeito de Palmeiras dos Índios, e nos fingirmos todos de mortos. Como bons munícipes que nunca reclamam.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]