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Campanha #MeeToo nas redes sociais. Foto Pixabay
Campanha #MeeToo nas redes sociais. Foto Pixabay| Foto:

Os debates públicos estão cada vez mais contaminados por aquilo que o ensaísta Theodore Dalrymple chama de “sentimentalismo tóxico”. O que vale são as intenções ou sua representação – as boas intenções nossas, as más intenções dos outros –, como se os sentimentos fossem atores à procura de plateias. Não importa se o fundo é falso, se a virtude é pose, se a indignação é barata, se o choro é método. Assim como à mulher de César não bastava ser honesta, mas tinha de parecer honesta, aos progressistas ser bom é quase irrelevante. Os discretos que me desculpem, mas parecer bom – em público – é fundamental.

Em meio a tanta gritaria sobre lugar de fala, afirmações identitárias, ideologia de gênero e respeito às minorias políticas ou culturais, movimentos como #MeToo e Black Lives Matter, para citar dois exemplos contundentes, são mais exclusivistas, autorreferentes, vaidosos e reacionários que muito pequeno-burguês que se preze. O feminismo contemporâneo, radical e puritano, repudia o macho e até mesmo a própria liberdade sexual, e destila ressentimento de fazer inveja às freiras mais histéricas da Idade Média.

Concedo que o ativismo seja necessário, em certos momentos, ou inevitável, em outros; causas como o sufrágio feminino e a abolição da escravatura não poderiam ser defendidas sem entusiasmo e proselitismo. O problema é quando grupos e movimentos se organizam de modo que sua sobrevivência, aos poucos, acaba por se tornar mais importante do que a causa pela qual nasceram e existem. Ideologia ou ativismo como meio de vida, fim em si mesmo, impermeável às contradições e alternativas. Como dizia Millôr Fernandes, não acredito em idealista que lucra com seu ideal.

Idealismo cada vez mais à parte, cada um acha sua turma e se recusa à conciliação civilizada. A tolerância desses personagens para o debate de seus próprios pressupostos é pequena, e denuncia uma intolerância de fundo. Tudo depende de quais são os valores hegemônicos. Numa dada época, uma mulher podia ser presa, agredida e morta por ofender a fé ou a moral vigente. Hoje, um homem pode ser preso, agredido e morto por ofender outra fé e outra moral vigente. Julgamentos sumários e execuções sumaríssimas têm acontecido todos os dias, mas não é de bom tom mencionar certas variações culturalmente aceitas de macarthismo. Existe macarthismo do bem.

Em contradição flagrante, o libertarismo de muitos desses grupos e protagonistas prefere flertar com o mundo islâmico – por vê-lo como afronta ao detestável ambiente judaico-cristão –, a aceitar o fato de que, feliz ou infelizmente, o arranjo ocidental é aquele que melhor acolhe os grupos ditos minoritários. A confusão vem de longe: Michel Foucault, pensador-chave dessa ruptura cultural e de suas derivações, conseguiu se entusiasmar com o reacionaríssimo aiatolá Khomeini e sua revolução iraniana.

Há quem escreva, há quem se manifeste com o único intuito de parecer gente do bem, estar do lado certo, encontrar sua turma, fazer check-in ético em rede social, marcar território no território dos bons, como um cachorrinho bem adestrado a fazer seu ideológico xixi no lugar apropriado, no jornalzinho dos valores mais corretos.

Valores que ontem foram aqueles, hoje são estes, amanhã serão outros. O que importa é que a boa aparência – que será diferente para cada tempo, mas sempre, de algum modo, comunitária, coletiva, ordeira, obediente – tem de prevalecer.

A continuar assim, os extremos vão se tocar muito antes do que imaginam: os preconceitos e estereótipos serão cada vez mais parecidos entre si, e ambos semelhantes ao “homem cordial”, para quem tudo começa e termina em sentimento e paixões cegas – e cada vez menos surdas aos apelos da razão.

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