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Cena do filme "A Onda" (Die Welle), do diretor Dennis Gansel
Cena do filme "A Onda" (Die Welle), do diretor Dennis Gansel| Foto:

Um amável leitor disse que tenho “jeitinho de petista disfarçado de gente normal”. Lembro-me dum outro que me chamou de “jornazista”. Chorei de inveja. Alguns leitores são mais criativos que o Guimarães Rosa. Queria ter inventado o termo, precioso neologismo que me agradou demais. Continuem, leitores, não sou nada sem vocês.

Este texto não é ato falho, choramingo, defesa, muxoxo, beicinho, chacoalhar de bandeira branca. É uma espécie de conversa, tentativa de esclarecer mal-entendidos. Tenho certeza de que alguns não serão convencidos de jeito nenhum – mesmo que eu prove que se enganam. Paciência. Continuem enganados sobre mim e sobre si mesmos, se assim preferirem. A ignorância é tantas vezes uma bênção.

E, a propósito, comentem o que quiserem, pois o espaço de comentário é para comentar – bem, mal, sensata ou desvairadamente. Dou pouco valor a essa cada vez mais famosa (e perigosa) “ofensa à honra subjetiva”. Não devia ser crime, não devia existir o tipo penal. A reputação não é minha, é do outro que me vê e me julga. Tenho opções: ou mudo meu comportamento, para agradar; ou dou de ombros e continuo a me comportar como quero.

Todos os dias questionam minha orientação política, como se eu fosse mulher da vida. Retifico: como se eu fosse mulher petista ou de petista. A leitura de cada texto é contaminada por aquilo que acreditam ser, em altos voos imaginativos, a doutrina inconfessa do autor. O petismo enrustido. Se critico o Bolsonaro, gosto do Lula. Se critico a direita, sou de esquerda. Se faço ressalvas ao entusiasmo liberal, sou indubitavelmente comunista.

Tudo assim, preto-no-branco, tão somente porque desconfio do governo e espicaço o governante respectivo. Não rezo pela fé improvisada do Messias? Sou infiel. Não acho graça de sua ignorância assumida? Sou herege. Não me deixo seduzir por seu conservadorismo que é muito mais tacanho que propriamente filosófico? Sou arrogante.

Eu poderia deixar como está e tocar a vida, incompreensões à parte, mas não me custa nada propor algumas questões. Acordei bom samaritano.

Esta é minha segunda passagem pela Gazeta do Povo. A primeira, que durou sete meses, teve de ser interrompida em virtude de problemas pessoais. Superados os problemas, aceitaram-me de volta, filho pródigo que sou, em agosto de 2018. Agradeço muito, espero ficar, ir ficando, até que a Gazeta me considere parte da mobília e se esqueça de me demitir.

Aqui estou, aqui estamos.

Meu primeiro texto neste jornal, Trocando em miúdos, data de 6 de novembro de 2017. Notem que em novembro de 2017 estávamos sob governo de Michel Temer. Dilma já havia sido impedida. Lula estava prestes a ser preso.

De lá pra cá foram, com este, 278 textos. Não é pouca coisa. Em nenhum, rigorosamente nenhum desses textos, o sommelier de ideologia encontrará algo que se aproxime de elogio a governos petistas, a personagens petistas, ao modus operandi petista (incluam PSOL nessa). Nenhum, zero, nada, finito. O mais próximo disso foi a defesa do direito de Jean Wyllys querer sair do país, se estivesse sofrendo ameaças. Minha posição é a seguinte: verdade ou mentira, não serei eu o fiador da vida alheia. Deus me livre e guarde. Se quer ir, vá. Se quer ficar, fique. Não tripudiarei. Amém.

Salvo nessa ocasião, em todas as outras empilhei críticas à esquerda radical e antidemocrática,  ao PT, aos partidos satélites, a Lula e a seus candidatos amestrados. Critiquei até enjoar. Literalmente: enjoar. Certa feita, depois de escrever sobre Lula, me veio alguma náusea à boca da alma e falei para mim mesmo: estou enojado de ter nojo do PT. “Só falo disso, meu Deus”. Não apenas nesta Gazeta, mas em outros blogs dos quais participei, nas mídias sociais, no livro que publiquei. Não acredita? Pois desafio o leitor mais desconfiado a ler o primeiro texto e fazer o caminho de volta.

Procure com minúcia de entomologista minha declaração de esquerdismo, minha carteirinha de petista, meu saudosismo comunista. Encontre aí um voto, um aceno, uma hesitação. Se encontrar, avise. Se não encontrar, faça um favor a mim e a si mesmo: critique, julgue, xingue, despreze, ignore o quanto queira, mas não finja que lê o que não lê. É feio. É fake news isso daí, tá ok? Não pretenda etiquetar politicamente quem não se encaixa nesse quadrado político que você construiu para habitar.

A origem da confusão entre o que escrevo e o que alguns leitores leem talvez seja esta: muita gente acredita que há uma única possibilidade ou doutrina à direita. Negá-la seria o mesmo que negar toda a direita. Como se não ter votado no Bolsonaro significasse ter votado no Lula ou no poste do Lula. Também muitos acreditam que qualquer discussão que não se submeta ao espartilho ideológico está errada. E isso é errado.

Do fato de que a política contamina tudo não se pode tirar o valor de que tudo precisa ser contaminado pela política. Devemos resistir. Existem problemas políticos que podem, sim, ser pensados sem o marcador ideológico direita-esquerda. Querem um exemplo? Ambientalismo. É verdade que a esquerda instrumentalizou o problema ambiental para que se tornasse uma renovada frente contra o capitalismo. O comunismo esverdeou. No entanto, também é verdade que existe um problema ambiental objetivo a ser considerado. Embora eu não seja catastrofista, temos problemas concretos com os quais lidar. A imundície nos oceanos não é de esquerda nem de direita. A devastação das matas não é de direita nem de esquerda. As soluções não precisam ser de direita ou esquerda, mas científicas.

Querem outro exemplo? Pobreza. Os meios de se mitigar a pobreza e distribuir a riqueza são aqueles inventados no capitalismo. O capitalismo é o único jeito seguro e constante de se produzir e distribuir riqueza. Ponto. Entretanto, existem desabrigados, doentes, famintos no mundo. Agora, neste exato momento. São os pobres de que falam os Evangelhos. Consideremos o seguinte: a vida humana é curta e frágil. Um choque liberal fará bem a qualquer país, a médio prazo, mas no meio do caminho ele pode não servir àquelas pessoas que já tinham sido tragadas pela extrema miséria. Velhos, crianças, doentes, gente sem instrução e que vive em regiões isoladas. Essas pessoas sofrerão mais do que outras, a curto prazo, das dores de parto do crescimento econômico. Estão à margem. Pois elas precisam de alguma assistência social, que talvez o Estado possa prover, ainda que transitoriamente. Ponderar isso é ser de esquerda? Um pouco de proteção social equivale a muito comunismo?

Ao leitor de boa vontade que tenha chegado até aqui, agradeço efusivamente. Para o bem de todos, e para a construção de um debate político mais rico e fértil, seria interessante que as dicotomias fossem menos pronunciadas. Seria ótimo um gosto mais cultivado pela nuance e uma paciência maior para a complexidade das discussões. Por que tanta pressa? Para que tanto ruído? Existem escolhas menos óbvias em jogo. Este aqui é de esquerda, mas não é estalinista. Aquele ali é de direita e não é fascista. Aquele outro gosta de livre-mercado, porém não descuida de alguma proteção social.

Por fim, temos um novo governo em curso e não posso viver de criticar o petismo e ignorar o resto. Seria fácil me acomodar na espreguiçadeira da indignação: ataco o PT todos os dias e recolho os elogios do distinto público. Contudo, prefiro a dificuldade de escrever sem o drible fácil de quando o jogo está ganho. O PT veio, devastou o país, mas está nas cordas; o eleitor o rejeitou. Outro fenômeno político importante acontece diante de mim e tenho obrigação de examiná-lo como examinei os anteriores. Prezo muito quem tenha criticado o PT quando o PT estava no poder, eu mesmo fiz isso, porém não admiro quem faça fama e fortuna apenas por criticar o PT, e feche os olhos para o que veio em seguida ou virá adiante. O Partido dos Trabalhadores já foi meio de vida para seus filiados; que não se torne meio de vida para os críticos que não sabem criticar nada que não seja o partido. O Brasil continua, os problemas idem, continuemos também.

I rest my case.

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