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“Prefiro não”
“Prefiro não”| Foto:

Uma pequenina resposta em meio às tantas grandes respostas de que é feito este país me chamou a atenção.

Dias atrás, perguntaram à apresentadora Maisa por que ela não prestaria a prova do Exame Nacional do Ensino Médio, o famigerado ENEM.

Se Maisa fosse um pouco mais pretensiosa, um pouco menos irreverente, talvez tivesse ensaiado qualquer explicação cheia de bom-senso e de gravidade, preocupada com a repercussão da fala e com a reputação de quem fala. O trabalho isso, a vocação aquilo, o futuro, os jovens.

Nada.

Para minha surpresa, para meu gosto, ela apenas disse: “Na verdade, eu não quero”.

Somente isso: eu não quero. Sem maiores sociologias, sem inflar o peito, sem empostar a voz. Uma declaração singela e justa de quem sabe o que quer da vida, ou sabe o que não quer, o que é ainda mais importante. E o ENEM ela não quer. Talvez queira num outro ano, talvez não queira nunca, mas o certo é que hoje ela não quer.

O leitor não julgue vã essa minha admiração. Tanto não é vã que me fez lembrar de imediato da resposta de Bartleby, o escrivão, personagem de uma pequena novela de Herman Melville, mais famoso como autor de Moby Dick.

Num pequeno escritório de advocacia em Wall Street, um jovem escrivão é contratado para fazer serviços simples e intranscendentes: cópias, ditados, relatórios, contas. Seu patrão, homem consciencioso e afável, parece satisfeito com a presteza de Bartleby. E Bartleby, a seu modo, parece satisfeito com o que faz.

Até que um dia não parece mais satisfeito. Uma pequena recusa vira do avesso a ordem do escritório, do advogado, dos colegas, de Wall Street, quiçá do mundo todo.

Chamado às pressas para ler em voz alta e revisar o próprio trabalho, Bartleby diz: “Prefiro não”.

Mas como não?, pergunta o dono do escritório.

“Prefiro não”.

E daí por diante, para todo trabalho que lhe é solicitado, Bartleby murmura – sem violência, sem energia, sem paixão, sem maldade, sem filosofia, sem mais nem por quê: “Prefiro não”.

A história pode ser lida, e mal lida, como uma espécie de ode à preguiça, à depressão, ao fastio, ao niilismo, à acídia. Eu compreendo outra coisa. A recusa de Bartleby nos parece absurda porque estamos acostumados a obedecer, a fazer, a cumprir, a dobrar os joelhos, a girar a roda, a dizer sim, sim, sim. Toda a vida moderna é um sim para tudo o que nos pedem, nos mandam, nos exigem, nos ameaçam, nos sussurram.

Bartleby prefere não. Sua desobediência é, mais que civil, humana; mais que humana, metafísica. Ele se vê – e se quer ver – livre para dizer que prefere não, para afirmar a recusa, sem explicações, motivos ou justificativas, porque enfileirar explicações, motivos e justificativas no fundo é um outro jeito de se submeter, uma outra maneira de dizer sim, ainda que disfarçadamente. Bartleby prefere não, não, não.

Pois foi o que fez, com naturalidade e graça, a Maisa. É possível que ela não conheça a história escrita por Herman Melville, é provável que não se interesse pela moral da história de Bartleby, mas o espírito ela tem.

Por que não se submete ao exame, Maisa?

“Prefiro não”.

E assim a vida imita a arte mais uma vez.

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