• Carregando...
Arquivo pessoal
Arquivo pessoal| Foto:

Arthur Tuoto é crítico de cinema e cineasta. Tem artigos publicados em livros e catálogos diversos, e colabora com as revistas Cinética e Multiplot! Mantém um canal no YouTube onde publica críticas e vídeo-ensaios. Ministra a Oficina de Crítica Cinematográfica. Seus filmes já foram exibidos no Festival de Berlim, Festival de Brasília, Mostra de Cinema de Tiradentes, entre várias outras mostras no Brasil e no mundo.

 

1 Como se deu sua formação em crítica de cinema? Sei que também é cineasta: é preciso ter trabalhado com filmes para ser um bom crítico? Quais são suas referências: autores e livros?

Minha formação foi majoritariamente autodidata. Estudei na Academia Internacional de Cinema (aqui em Curitiba e em São Paulo), mas o curso serviu mais como uma introdução básica a certas teorias, já que a escola possui um caráter mais prático. Desde que comecei a estudar cinema, seja por conta própria ou fazendo cursos, sempre escrevi sobre filmes. Algo que vem desde que eu tinha 15 anos e, portanto, minha relação com a crítica desde cedo teve ligação com a minha cinefilia. Mesmo quando muito jovem, e quando ainda não me considerava crítico, eu ia atrás não só de entender como os filmes eram feitos, mas de que maneira eles foram recebidos e como isso influenciava o seu legado.

Minhas primeiras referências foram os críticos da Contracampo (em especial o Luiz Carlos Oliveira Jr e o Ruy Gardnier). Inclusive colaborei para um blog sobre crítica musical junto com o Ruy durante algum tempo. Paralelamente a isso, lia os teóricos franceses o os principais críticos da Cahiers du Cinéma. Em especial André Bazin, Jacques Rivette, Serge Daney, Alexandre Astruc e Eric Rohmer.

Dois livros essenciais que influenciaram o meu pensamento foram: O Cinema e a Encenação, do Jacques Aumont. E os Ensaios do André Bazin.

Críticos como Paulo Emílio Sales Gomes e Jean-Claude Bernardet também foram essenciais.

De uns tempos pra cá, venho pesquisando e lendo textos da geração britânica dos anos 60 e 70, como VF Perkins, Ian Cameron e Robin Wood. O pessoal da Movie Magazine que, no geral, não parece ganhar muito reconhecimento. Apesar de serem sido tão fundamentais quanto alguns críticos da Cahiers.

Acredito que o trabalho do Adrian Martin, no seu livro Mise-en-scene – Film Style and Interpretation, é essencial no sentido de englobar outras bibliografias e definições que vão além da tradição francesa.

Vale ressaltar também o trabalho da Annette Michelson, falecida ano passado, que tem um trabalho extraordinário no que diz respeito a cinema experimental. Alguns textos dela inclusive estão influenciando os temas dos meus vídeos e artigos.

Frise-se que acho completamente possível existir um bom crítico sem experiência prática. Conhecimento da linguagem é sempre interessante, e ter noções técnicas básicas podem ajudar no texto. Mas isso não necessariamente precisa estar atrelado a uma experiência prática propriamente. Inclusive, pode ser até positivo ter essa distância, porque aí você julga o filme como um trabalho final, não como o seu “processo”. Até porque o legado de qualquer obra será pensando a partir desse produto final.

2 Os críticos já não são influentes como intelectuais públicos e comentadores de cultura, como talvez tenham sido nos tempos da Cahiers du Cinéma, centro de gravidade da crítica francófona, ou, no mundo anglófono, Pauline Kael e Roger Ebert, para citar dois exemplos pop (reduzo tudo em poucos nomes, entre tantos outros importantes, eu sei). No entanto, nunca se escreveu tanta crítica, em blogs e sites. Como vê o cenário – presente e futuro?

Falei sobre isso em dois vídeos:

https://youtu.be/ps8RQwrWH7M  https://youtu.be/6FiKGUssUEU

Apesar de existir muito conteúdo, percebo uma polarização perigosa entre um conteúdo mais rotineiro (portais, jornais, sites de cultura) e um outro de viés acadêmico. Esse conteúdo mais rotineiro, me parece, se foca muito mais em analisar filmes do que criticar propriamente. É um conteúdo mais ilustrativo e didático. O que por um lado é bom, já que apresenta certos elementos e conceitos para quem é leigo (a proliferação de vídeo ensaios no YouTube ajudou nisso), e por outro é ruim, já que, muitas vezes, não se dedica a ir mais fundo no filme, a criticá-lo propriamente, a colocar o filme em crise e tirar novas ideias disso.

O conteúdo de viés acadêmico (como a Revista Cinética e outras publicações que seguem a linha da já desativada Contracampo) faz esse “movimento crítico” muito bem, desconstrói as obras e reflete mais profundamente sobre a linguagem cinematográfica, mas acaba sendo limitado por não ser tão didático e usar termos e conceitos que o leitor precisaria já estar familiarizado.

Ou seja: o conteúdo em pauta acaba sempre sendo o mais acessível, porém ele é um pouco mais limitado. O meu projeto crítico, pelo menos o projeto que venho tentando desenvolver desde que passei a produzir de maneira independente (sem ligações com outras publicações e colocando conteúdo no meu site e YouTube) é propor algo que faça essa ponte. O leitor/consumidor geralmente fica preso entra essa polarização (o conteúdo ilustrativo e o conteúdo de viés acadêmico). Existem muitos leitores nesse “meio termo”. Pessoas que querem aprender sobre cinema, descobrir sobre novos conceitos, mas não desejam apenas ser informadas. Querem ir mais fundo na linguagem, mas falta um conteúdo que, digamos, faça a ponte entre esses dois polos. Acredito que até exista alguns sites e críticos que façam isso (Pablo Villaça, Marcelo Hessel), mas ainda é pouco. Quando eu criei um canal no YouTube e um curso sobre crítica foi para tentar alcançar mais esse público. Inclusive deixei de escrever para a Revista Cinética e passei a produzir conteúdo em texto para o meu site onde tento traçar esse equilíbrio entre uma abordagem didática e, ao mesmo tempo, questionadora.

3 Steven Spielberg reacendeu a polêmica em torno do cinema versus streaming. Para ele, e para alguns outros cineastas, cinema é o que se vê no cinema; filmes em streaming podem ser bons e relevantes, mas são filmes de televisão. Concorda, discorda ou há “terceira margem do rio”?

Comentei sobre a questão da Netflix nesse vídeo: https://youtu.be/F1H0ZL8EkJI

Discordo completamente. Com certeza são experiências distintas. Mas dizer que algo é menos cinema porque é streaming não possui a menor lógica. Até porque existem vários filmes “televisivos” senso exibidos no cinema. O que importa muito mais é a relação do trabalho com a linguagem e não o seu formato final. Inclusive essa distância entre cinema e streaming tende a ficar cada vez mais frágil com trabalhos exibidos em ambas as plataformas. Ou com grandes cineastas (Coen, Scorsese) lançando trabalhos para a Netflix. São mercados que dialogam, mas que também são independentes entre si.

4 Ainda a propósito desses novos tempos, Martin Scorcese descascou os agregadores de crítica, como Rotten Tomatoes… Mesmo problema, ou aqui temos uma variação? Esse tipo de proposta forma ou deforma o gosto do distinto público?

Qualquer agregador deve ser visto como é: uma perspectiva coletiva que passa somente uma ideia vaga da reação imediata do público e da crítica. O real legado de um filme só é definido pelo tempo e por uma relação muito mais descentralizadora do que essa. O grande problema é quando esses espaços se tornam canônicos. O top 250 do IMDB com certeza é absolutamente revelador, mas não deve ser visto como algo sagrado e final. Acho interessante observar essas reações imediatas – elas com certeza nos informam sobre um certo estado das coisas – mas devem ser tratadas pelo que são.

5 O movimento #MeToo abalou os alicerces da indústria do cinema, especialmente nos EUA. O estrago foi grande, e sujeitou figuras como Kevin Spacey ao ostracismo. Sem discutir o mérito da questão – as relações de poder e seu abuso entre produtores e artistas –, você acredita que falhas éticas podem ou devem apagar méritos artísticos? Parafraseando Theodor Adorno: é possível ouvir Michael Jackson depois de Neverland?…

O movimento tem grande importância nos casos de abusos e acho que foi essencial para a indústria. Quanto à questão de que se falhas éticas devem apagar os méritos artísticos: eu acho que não devem. Compreendo quem não separa o artista da obra, o espectador tem completa liberdade de fazer isso. Mas acredito que, quando uma obra está no mundo, ela já não pertence a mais ninguém. Uma grande obra supera o seu autor e com o tempo se torna um produto independente em si mesmo. Um produto que, definitivamente, pode gerar os mais variados debates e perspectivas a partir das responsabilidades morais do seu autor, mas que não deve se limitar a um só contexto.

Enfim, acho ruim falar o que “deve” ser feito. As pessoas têm liberdade de quererem trabalhar com alguém como o Spacey ou não. Não acredito numa moral universal nesses casos e sim em cada um ter as suas vontades respeitadas. Na minha perspectiva, existe perdão e acho possível uma pessoa se recuperar e, de algum modo e na medida do possível, pagar pelo que fez após qualquer possível condenação. Outra coisa reveladora disso é o caso do James Gunn, que fez umas piadas retardadas há um tempão e tem o seu presente redefinido por elas. Ainda bem que a Disney voltou atrás.

6 Você é professor, e ministra uma Oficina de Crítica (nota ao leitor: eu faço e recomendo). Fale um pouco sobre essa experiência, e o que pretende – e promete aos alunos – com ela. Outros projetos à vista?

A principal ideia da minha Oficina é tratar a crítica como ela é: um lugar que rejeita as simples análises, as meras “leituras” de um filme, e, no lugar disso, propõe uma perspectiva, traça um olhar sobre o filme, defende uma ideia em relação a obra. Um vício muito grande que eu percebo no atual cenário crítico é que um filme é analisado por seus elementos isolados (a fotografia é bonita, o roteiro é bem escrito etc). Tudo é analisado através de uma cartilha arbitrária, uma cartilha que dita as “regras” que um filme deve seguir. O bom crítico rejeita essa cartilha. Ele assimila o filme como um universo de princípios próprios, uma cosmologia que traça uma relação única com a linguagem. O trabalho do crítico é assimilar essa relação e propor um olhar sobre ela. É nisso que eu acredito e é sobre isso que trato na Oficina. Tudo a partir de uma linguagem acessível e direta. Meu curso não tem um “nível” e é aberto para todos os interessados. Para além dessas questões teóricas, apresento também o meu método de criticar um filme. Algo que, acredito, pode ajudar tanto os críticos já praticantes como os que pretendem começar a escrever.

Meu projeto é continuar produzindo conteúdo gratuito semanalmente (no meu site, canal do Youtube, Facebook e Instagram) e focar na minha Oficina de Crítica. Em maio irei lançar uma segunda versão da oficina, que irá contar com mais de 7 horas de conteúdo. Minha ideia é sempre ir atualizando o curso e adicionando novos materiais. Fazer do curso uma documentação do meu próprio estudo como crítico.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]