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(Foto: Arquivo pessoal)
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FRANCISCO RAZZO é professor de Filosofia, autor de dois livros: A Imaginação Totalitária e Contra o aborto, ambos pela Editora Record. É colunista da Gazeta do Povo. Nasceu em Itapira, mesma cidade do eterno capitão Bellini. Mora com a esposa e os filhos em Sorocaba. Nunca gostou de pescar.

 

1 Fale sobre sua formação ou percurso intelectual; suas referências mais próximas; sua linha de pesquisa.

Sonhava em ser artista plástico. Arrisquei pintura e xilogravura. Fracassei. Principalmente depois de frequentar três anos e meio de faculdade de Artes Plásticas. Se não fosse um professor de História da Arte e Estética ter me acordado do meu sono dogmático, juro que morreria de tédio aos 22 anos. Faculdade sufoca. Ainda assim, antes de entrar na Filosofia, fiz um ano de Letras. Outro fracasso. Um ano na faculdade quase me matou de desgosto. Cursos de Letras só servem para formar professores de… Letras — e eu queria ser escritor, era um gênio enrustido, tinha quase certeza disso. Mamãe queria que eu fosse alguém na vida. Só de birra, larguei Letras e fui fazer Filosofia — meu destino estava selado: naquele Jogo da Vida, da Estrela, quem perde vira filósofo. Sem falsas pretensões, quase cheguei lá, a bola bateu no travessão, pois consegui, pelo menos, ser professor de Filosofia; para o desespero da minha mãe, cheguei a gandula.

No mestrado estudei William James, o irmão do escritor Henry James. Academicamente, James, o filósofo, me influenciou com seu espírito pouco acadêmico e muito aberto ao pluralismo e ao senso comum. Gostei tanto dele que decidi não seguir carreira, pelo menos por enquanto. Queria mais liberdade para escrever, e a carreira acadêmica não traz felicidade para quem pretende ser feliz escrevendo.

Sobre minhas referências próximas, em termos de afinidades pessoais, eu diria que sempre fui fascinado por Santo Agostinho, Van Gogh, Dostoiévski, Baudelaire e Thomas Mann. Todo ser humano até os trinta anos deveria ler Confissões, Cartas a Théo, O Idiota, Os Irmãos Karamazov, As Flores do Mal, A Montanha Mágica e José e Seus Irmãos. No Brasil, ultimamente tenho lido — e gostado demais — de Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos.

 

2 Com o desenvolvimento das ciências físicas e naturais, da neurologia, da linguística, da economia etc – a filosofia continua a ser relevante? Qual seria o “objeto” da filosofia, o fazer do filósofo, diante da positivação das ciências?

Para a primeira pergunta, diria que é justamente o contrário. Graças ao desenvolvimento das ciências naturais, a filosofia nunca foi tão relevante. Quem prescreve a irrelevância da filosofia, quem diz que a ciência tem respostas para todos os problemas humanos, não entendeu o lugar da ciência e o significado da atividade filosófica. Herdada da pior fase do Iluminismo, que vê obscurantismo em tudo o que não é espelho, essa arrogância não passa disso, arrogância.

O fato é que não se combate a filosofia sem outra concepção filosófica subjacente. A suposta negação da filosofia representa — consciente ou não disso — também um ato filosófico. No caso, negar a filosofia a partir da afirmação da ciência é uma atitude filosófica de péssima qualidade, pois não consegue ver que as próprias crenças motivadoras dessa atitude estão atreladas a uma filosofia.

Para a segunda pergunta, numa palavra, eu diria: ciências lidam com objetos particulares e demandam metodologias específicas para cada um desses objetos; a filosofia lida com um universo discursivo ilimitado, tudo pode ser questionado pela filosofia. Os métodos da ciência são limitados a seus objetos, já os da filosofia partem desse horizonte abrangente, sem entraves sociais ou receios ideológicos — por exemplo, ninguém pode dizer para a filosofia “esse não é o seu lugar de fala, você não pode questionar isso”.

Um bom exemplo para ilustrar essa diferença entre ciência e filosofia é a maravilhosa disputa histórica na área da química para explicar o fenômeno da combustão, que vai da teoria do flogisto, proposta por Georg Ernst Stahl, no século XVII, à descoberta do oxigênio, pelo grande Lavoisier, no século XVIII. Trata-se de uma disputa interna aos impasses gerados pelo pensamento científico ao buscar uma explicação para a maneira como certos fatos no mundo natural se manifestam e se relacionam. A explicação científica precisa ser construída a partir da análise rigorosa de dados empíricos observados em um processo — nesse caso, o processo químico da combustão. Filósofos não se ocupam de algo tão específico, sua atenção se volta para algo mais abstrato, por exemplo, “o que é a matéria?” ou “o que é o tempo?”. Meio vago no começo, mas é isso. As perguntas filosóficas são do tipo: “como é possível a ciência?”, “o que é um fato?”, “qual a natureza da identidade e da diferença?”, e por aí vai, visto que o objeto da filosofia é a “totalidade”, o “ser”.

Se o cientista começa a dar pitaco sobre a “totalidade” a partir do seu conhecimento especializado acerca de um objeto particular, ele está distorcendo os limites da atividade científica, desrespeitando a soberania de certos métodos e ultrapassando as fronteiras de certas áreas de pesquisa. É possível transitar entre essas fronteiras, que em certas regiões a passagem é bem mais flexível do que em outras — por exemplo, a proximidade da Física com a Química, da Química com a Biologia etc. Por outro lado, ao filósofo cabe a humilde tarefa de pensar a “totalidade”, a “estrutura da realidade” — o que não autoriza os filósofos a falarem de qualquer jeito a respeito de qualquer coisa.

Se me permite, gostaria de fazer uma provocação — para lembrar uma fórmula de Heidegger que já gerou bastante equívocos —: a ciência não pensa. E pela quantidade de bobagens que a gente lê por aí sobre a ciência ter superado a filosofia, Heidegger não estava errado. Mas gosto mais de Wittgenstein quando, no final do Tractatus Logico-Philosophicus, afirmou: “sentimos que mesmo que todas as possíveis questões científicas fossem respondidas, nossos problemas vitais não teriam sido tocados”. Sem dúvida é importante descobrir a cura de uma doença, quais os elementos compõem a matéria, se existe vida em outros planetas, qual a idade do Universo etc, mas isso não é vital. Por vital entendo aquela vocação humana pela busca de sentido, que parte da constatação de que somos mortais e de que não é tão simples saber se a vida realmente vale a pena ser vivida. Se ciência explica “como o mundo funciona”, cabe à filosofia a tarefa de manter em dia a pergunta pelo sentido do “ser”, sem banalizá-la.

 

3 Você é autor de dois livros, ambos pela editora Record: A imaginação totalitária e Contra o aborto: eles se relacionam entre si, de alguma maneira?

Sim e não. De um ponto de vista filosoficamente amplo, sim; são dois livros que se relacionam — e fiz de caso pensado. De um ponto de vista metodológico, do trato ao tema, não; são distintos, com abordagens distintas, com estilo e objetivos distintos.

Contra o aborto parte de uma reflexão deixada em aberto no A Imaginação. No primeiro livro, pensei o problema da atividade mental responsável por despersonalizar ­os seres humanos e autorizar a violência política contra pessoas de carne e osso. É mais fácil para um soldado nazista acreditar, em nome da glória milenar do Terceiro Reich, que esmagou um piolho do que assassinou Anne Frank. Nesse livro, refleti o aborto a partir da minha do meu envolvimento pessoal com o tema, das minhas crises de consciência. Para mim, reduzir o feto a um mero “amontado de células” exemplifica um perfil produzido por essa imaginação.

Em um “tom” de mea culpa, abordei o problema a partir das minhas memórias de juventude para mostrar o meu próprio perfil totalitário. Investiguei o tema do aborto em duas ocasiões importantes, porém insuficientes para entender os motivos, os argumentos e o desenvolvimento histórico da defesa do aborto. As pontas ficaram soltas, exigia-se, agora, um ajuste no foco para olhar com certa imparcialidade as implicações filosóficas e morais do aborto. Não bastava localizar essas implicações em um mapa mental e dizer “está vendo aqui? Também é um efeito da imaginação totalitária que eu mesmo produzi”. Ok, e daí?

Por isso, no segundo livro, Contra o aborto, analiso os principais argumentos a favor aborto e demonstro as inconsistências filosóficas deles. Não me preocupei com os dramas psicológicos, as crises existenciais e os desdobramentos jurídicos de quem tomou a decisão de abortar. Queria entender — e combater — como alguns argumentos pró-aborto se constroem e se fundamentam à luz da análise filosófica.

 

4 Aborto é questão de saúde pública, de escolha privada ou nem uma coisa nem outra?

A questão do aborto não pode ser reduzida a esses dois clichês utilizados pela retórica pró-aborto. Ou aborto se refere a uma escolha ou um problema de saúde pública. Portanto, responderia dizendo: nem uma coisa nem outra.

Gravidez indesejada não é doença, mas falta de informação, cuidado, planejamento. Se mulheres procuram o procedimento abortivo porque não querem ter o filho e morrem em virtude da qualidade das clínicas abortivas, deve-se considerar, primeiro, os motivos que antecedem essa escolha. Não digo os motivos psicológicos, econômicos ou sociais. Todos esses são importantes, mas secundários à questão moral. Aborto só seria questão de saúde pública se mulheres não escolhessem abortar, como se a gravidez indesejada fosse um tipo de doença. Por exemplo, zika vírus e microcefalia são problemas de saúde pública; aborto, não. Aborto é decisão cuja consequência inevitável é a morte de alguém.

Toda decisão é moral e em última análise uma escolha privada. Se não houvesse vontade livre, se as pessoas não fossem livres para tomar decisões segundo a própria consciência, não haveria sentido falar em responsabilidades, ética e felicidade. Sem contar que qualquer debate sobre justiça seria irrelevante. Tudo seria obediência aos impulsos, inclusive nossos compromissos morais. Nossos compromissos só são compromissos morais em virtude de sermos livres para agir. Como diz William James, numa tirada que eu leio com certo humor contra o determinismo, “o meu primeiro ato de livre arbítrio será acreditar no livre arbítrio”.

Infelizmente, a noção de “escolha privada” no contexto do debate público do aborto tem um valor semântico diverso do valor moral: “escolha privada” transformou a ideia de decisão moral referente ao aborto numa espécie de experiência pessoal de gosto. Exemplo: “Se você é contra o aborto, não aborte”. Essa sentença tem a mesma estrutura que esta: “Se você não gosta de jiló, não coma jiló”. Não se pode deduzir um imperativo categórico — um compromisso moral — da experiência pessoal de gosto: “Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através do teu gosto pessoal por jiló, uma lei universal”. Se uma mulher — e seu parceiro — decide abortar por não desejar aquele filho, ela se compromete moralmente com um problema muito mais complicado do que a decisão pessoal de qual comida refogar e pôr no prato.

Questões de gosto são muito mais flexíveis em termos de dar razões para os nossos compromissos. Ninguém exige ou oferece muita explicação quando se trata de manifestar uma opinião sobre preferir o sabor de um molho a outro. Por sua vez, crenças que motivam nossos compromissos morais são mais exigentes. No livro Contra o aborto procurei mostrar quais são algumas dessas exigências em um nível filosófico.

 

5 É possível ser contra o aborto e prescindir de argumentos religiosos e morais?

Dos religiosos, sim. Dos morais, impossível. Por argumentos religiosos entendo a necessidade de buscar suporte nos textos sagrados para responder as demandas dos nossos compromissos morais. Pense na pergunta: “por que eu não posso matar meu vizinho?”. Eu daria uma infinidade de razões para não matar alguém que se não existisse eu me tornaria uma pessoa muita mais feliz: “não devo fazer isso, posso ir preso”, “todos têm o direito de viver”, “não tenho coragem” etc. Um argumento religioso, basicamente, diria: “não mate, a vida dele é tão sagrada quanto a sua. Isso é um pecado grave contra Deus”.

Tanto “sacralidade da vida” quanto “pecado” demandam de uma visão de mundo mais abrangente, uma visão que presume um entendimento acerca da relação entre Deus e homens. Nesse sentido, nossos compromissos morais, em última instância, são muito mais compromissos com Deus do que com nós mesmos.

Penso que as questões mais importantes da vida estão diretamente relacionadas com a forma como nos relacionamos com Deus. Para minha desgraça, meu vizinho não pensa assim. Ele não está nem aí pra Deus e pra questões vitais. Agora ele deseja me matar e não acredita em “sacralidade da vida” e “pecado”. A vida dele seria mais significativa sem minha existência. Como resolver isso se seu único compromisso moral é com os desejos dele? Meu vizinho está pouco se lixando para minha fé.

Sem apelar para Deus, terei de negociar com ele. Nós nos odiamos e convivemos com relativa proximidade — diariamente. Como resolver? Apelando para argumentos religiosos não vai rolar. Sem chance. Meus compromissos morais com Deus não formam uma base comum para negociar com meu vizinho descrente e moralmente comprometido apenas com sua felicidade. Portanto, é preciso encontrar uma base comum, um canal de diálogo — caso contrário, resolveremos na bala.

Argumentos morais devem partir dessa base comum, independente dos nossos compromissos com Deus. Talvez um dia eu convença meu vizinho da importância vital de se acreditar em Deus, da sacralidade da vida e do pecado. Mas agora, infelizmente, essa não é a nossa base de diálogo. Nenhum acordo sairá daí. Temos interesses em viver e ser felizes. Mas as nossas ideias de felicidade e compromisso moral são bem distintas, incomunicáveis. Como conviver diariamente com quem você odeia? A religião já não fornece qualquer canal de comunicação entre pessoas que se odeiam e precisam conviver. A discussão pública acerca do aborto precisa partir desse contexto, do reconhecimento sincero de que convivemos com uma pluralidade inconciliável de visões de mundo.

 

6 Feministas dizem que se homens engravidassem, seria possível fazer aborto até em caixa eletrônico…

É uma hipótese realmente tentadora… aliás, se homens engravidassem, nunca teríamos sido expulsos do paraíso.

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