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Meia dúzia de perguntas para José Francisco Botelho
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JOSÉ FRANCISCO BOTELHO nasceu em Bagé, em 1980. É jornalista, escritor e tradutor. Colaborou com mais de dez veículos, entre jornais e revistas, e assina colunas sobre literatura e artes na revista Veja e no Estado da Arte (Estadão). Foi finalista dos maiores prêmios literários do Estado e do país. Seu livro de contos A árvore que falava aramaico recebeu uma indicação ao Açorianos em 2012; sua tradução de Contos da Cantuária (Companhia das Letras) levou um dos troféus do Prêmio Jabuti em 2014; e levou o segundo lugar na categoria tradução de 2017 por Romeu e Julieta. Traduziu obras de Bram Stoker e Arthur Conan Doyle. Sua obra é objeto de estudos no exterior e sua versão de Contos da Cantuária é considerada uma referência internacional em tradução de poesia medieval. Em 2018, lançou sua tradução de Júlio César, continuando um projeto de longo prazo de recriações shakespearianas em português brasileiro. Botelho é Bacharel em Comunicação Social pela PUCRS e doutorando em Letras/Literatura pela UFRGS.

 

1 De Shakespeare você traduziu Romeu e Julieta e Júlio Cesar; sei que está traduzindo A tempestade. A história termina aí ou teremos surpresas?

A história não termina enquanto eu não chegar àquele que sempre foi meu alvo: Falstaff. Sou obcecado pelo personagem desde que vi Chimes at Midnight, de Orson Welles, lá no início de meu auto-didatismo cinematográfico e dramático. Essa erupção de linguagem e de espírito, de sentimento e de zombaria, que apenas a expressão “larger than life” pode definir, é meu sonho de tradutor. Portanto, não, não pararei, nada me deterá antes que eu chegue ao velho bebedor de xerez.

 

2 A propósito: como isso teve início? Me fale dos acidentes mais ou menos planejados que fizeram de você tradutor, e tradutor de Shakespeare e Geoffrey Chaucer (Contos da Cantuária), em especial.

Existe uma história que muitos pensam ser fictícia, mas que é, de fato, verdadeira, e foi o que me levou a traduzir mais de mil páginas de poesia medieval e renascentista nos últimos cinco anos. O causo começa no milênio passado, em um inverno especialmente cruel (ou benévolo, sob o ponto de vista de quem gosta de sensações congelantes, como eu), quando me caiu nas mãos um exemplar semi-destruído de Historia de la Noche, do Borges. Nesse livro há um poema em prosa chamado “El caballo”. Para que se compreenda o causo, preciso citar um trecho: “La llanura que espera desde el principio. Más allá de los últimos durazneros, junto a las aguas, un gran caballo blanco de ojos dormidos parece llenar la mañana. El cuello arqueado, como en una lámina persa, y la crin y la cola arremolinadas. Es recto y firme y está hecho de largas curvas. Recuerdo la curiosa línea de Chaucer: a very horsely horse. No hay con qué compararlo y no está cerca, pero se sabe que es muy alto.” Fiquei parado naquele trecho atribuído a Chaucer: “a very horsely horse”. Por muito tempo, aquela linha me obsidiou. Quando via um cavalo de verdade, pensava: será que este é “a very horsely horse”? Resolvi achar o livro do Chaucer, e o cavalo dentro do livro. Consegui uma tradução em inglês moderno, mas não achei o enigmático e hiperbólico animal. Pensei que talvez o tradutor o houvesse apagado; então, resolvi estudar inglês medieval para poder procurar o misterioso eqüino no original. Isso, naturalmente, levou alguns anos. Pois bem: ocorre que ao fim e ao cabo, li The Canterbury Tales em inglês medieval e constatei que aquele verso não existe. Borges, que citava muita coisa de memória, estava provavelmente pensando nesta linha do Conto do Escudeiro: Therwith so horsly, and so quyk of ye (Therewith so horsely, and so quick of eye). Ou seja, eu tinha passado anos procurando um verso inventado pelo deslize mnemônico de Borges. Com uma mistura de indignação e prazer, acabei escrevendo esta tradução para a linha inexistente: “Era um cavalo muito cavalar”. Depois, traduzi o resto do conto, ainda por birra, para enfiar ali a cavalaridade do meu cavalo. Alguns anos depois, por absoluta coincidência, um editor e escritor muito meu amigo, o Leandro Sarmatz, perguntou se eu não queria traduzir os Contos da Cantuária para a Penguin-Companhia. O fato de já ter estudado o livro e pensado em uma forma de recriar os versos de Chaucer me ajudou muito. E, bem, depois de Chaucer, a minha promiscuidade com o pentâmetro iâmbico me levou diretamente a Shakespeare; e aqui estamos nós.

 

3 Reza o clichê que traduzir é trair. Jorge Luis Borges, à sua maneira, sugeria o contrário: que a tradução é um duplo do original e que, se bem feita, será tão valiosa quanto o original: traduzir é fazer novamente, de uma outra maneira. Onde você se situa, nesse enrosco?

Sem dúvida, com Borges – e não com Nabokov, que, aliás, tinha opinião radicalmente contrária. Curiosamente – e não sei se alguém já reparou isso – o Brasil é a terra da tradução borgeana. Com todos os nossos problemas, talvez insolúveis, temos essa glória para nos gabarmos, ainda que seja uma glória ilhada e intransferível. Se pegarmos tudo o que o Borges escreveu sobre tradução, e tentarmos encaixar nesse parâmetro uma tradição nacional, será, até onde sei, a nossa. O elã tradutório brasileiro hoje é muito semelhante ao dos ingleses de Chapman a Sir Richard Burton passando por Pope: traduzir é também construir uma literatura, é reviver o passado com o sangue do presente, mirando num futuro talvez infinito. Espero que tenhamos esse futuro, ou ao menos parte dele. Por falar em sangue, gosto muito de imaginar um bom tradutor como um Ulisses ou um Eneias viajando ao mundo dos mortos, cercado de sombras que perderam a memória e a voz humana. É preciso dar-lhes sangue para que recuperem a lembrança e a fala.

 

4 Se li Shakespeare numa tradução sua, ou numa excelente tradução qualquer, li de fato Shakespeare ou li outra coisa?

Terá lido uma boa, excelente, mediana ou péssima tradução de Shakespeare. A respeito disso, gosto muito de recordar o seguinte causo: em uma conferência de clérigos no início do século XIX, o arcebispo de Dublin, Richard Whately, subiu ao púlpito, sacudiu na mão direita a Bíblia do Rei James, e declarou de forma retumbante: “Cavalheiros, isto aqui não é a Bíblia. É apenas uma tradução da Bíblia!”. Naturalmente o advérbio “apenas” é injusto; afinal de contas a Bíblia do Rei James tornou-se merecidamente um dos pilares da língua inglesa. Por outro lado, concordo com a ideia de que a Bíblia do Rei James não é a Bíblia. Tampouco a Ilíada de Alexander Pope é a Ilíada de Homero; e a Eneida de Odorico Mendes não é a Eneida de Virgílio. Especialmente na tradução de poesia, nem sempre compensa sacrificar o literário em nome do literal; há momentos em que apenas a tradução criativa pode fazer jus a um Shakespeare, a um Homero. É minha opinião que a linha entre o Verdadeiro e o Belo é muito mais ampla e generosa do que às vezes somos levados a imaginar.

 

5 Você não é tradutor, apenas; é também escritor e dos bons: li os contos de A árvore que falava aramaico. Há mais prosa – ou poesia – a caminho?

Há prosa e poesia, juntas, o que está fora de moda, e talvez por isso mesmo a idéia tenha se assentado em mim. Meu próximo livro se chamará Soldados da Fortuna. Será um livro de contos, propositalmente híbrido, como o primeiro, talvez de forma ainda mais extrema. Em A árvore que falava aramaico existem esboços de vários universos ficcionais, entre eles uma fronteira gaúcha imaginária, vagamente semelhante ao sertão e com alguns laivos de realismo mágico. Esse mundo, que, repito, é imaginário, não uma descrição fotográfica de lugar algum, é explorado mais profundamente na primeira metade de meu novo livro. Mas, da metade em diante, como parece ocorrer fatalmente comigo, tudo se vira de pernas para o ar, então teremos uma espécie de “rimance” em decassílabos, sobre a vida de São Simeão, o Estilita; uma “história trágico-marítima” ao estilo da Nau Catrineta; um tratamento ficcional da teoria de Leibniz sobre os mundos possíveis; um exercício de história alternativa sobre a Primeira Guerra Púnica; essas coisas. Naturalmente, estou trabalhando também em um romance, como todo mundo em Porto Alegre.

 

6 Bárbara Heliodora ou Millôr Fernandes? Talvez – Carlos Alberto Nunes? Por favor, seja antiético e comente as virtudes e os defeitos das traduções de Shakespeare que temos no país. Destes e de outros.

Heliodora e Nunes têm o mérito, nada negligenciável, de haverem traduzido Shakespeare em versos. O Millôr, na minha opinião, trouxe uma nova vitalidade ao texto shakespeariano pelo uso ousado da linguagem e pela aplicação, ao texto traduzido, da verve pessoal do tradutor/autor. É impossível não enxergar o Millôr em suas traduções. Os resultados são variados, claro, mas sou muito grato a ele por minha primeira experiência de maravilhamento literário com Shakespeare: sua tradução de Rei Lear, naquela edição da L&PM, que me causou enorme impacto, quando eu tinha lá meus dezoito anos, e que talvez tenha despertado minha primeira faísca de bardolatria. Escusado dizer que hoje temos um tradutor brilhante, Lawrence Flores Pereira, cuja atuação elimina qualquer dúvida sobre o status da tradução enquanto arte literária. Ele elaborou um método próprio para verter Shakespeare, cujos resultados espetaculares já podem ser vistos em seu Hamlet e seu Otelo, publicados ambos pela Companhia das Letras.

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