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Arquivo pessoal
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William Bottazzini Rezende, graduado em História, é diretor acadêmico do Instituto Angelicum, além de professor de idiomas e tradutor.

 

1 Como um rapaz com jeitão de Harry Potter descobre o Latim, aprende e depois ensina? Conte-me sua história na bruxaria.

Risos. Na escola regular sempre temos algum contato com o latim, sempre há aquele professor de português que tenta impressionar a audiência com revelações extraordinárias do tipo: “A palavra ‘servo’ vem do latim ‘servus’”, mas evidentemente isso, essa etimologia de botequim, nunca me chamou a atenção. O romance com o latim se iniciou quando eu estudava Relações Internacionais na Universidade Católica de Brasília. Perambulando pela biblioteca da instituição atrás de alguma coisa para ler além dos textos obrigatórios para as provas, deparei-me com uma pequena seção dedicada ao latim que continha as obras de Paulo Rónai, Napoleão Mendes de Almeida, Júlio Comba entre outros. Peguei um dos volumes aleatoriamente, salvo engano o do Júlio Comba por parecer-me a via média entre o Rónai e o Napoleão, e fui pra casa ver o que exatamente era aquilo.

Na época eu já falava inglês e espanhol e me dedicava ao francês, ao italiano e ao alemão, mas o idioma que se descortinou diante de mim nas páginas de Júlio Comba maravilhou-me como nenhum outro. Quanto mais eu avançava nos capítulos e nos exercícios, mais consciente eu me tornava da dependência das outras línguas estudadas por mim em relação ao latim e da precisão semântica dos termos latinos bem como dos encadeamentos lógicos de sua sintaxe. Além disso, percebi que o latim tinha o potencial de conduzir-me por caminhos literários, filosóficos e culturais que nenhum outro idioma possuía. Se as outras línguas me ajudavam a situar-me no presente, o latim me levava de volta às próprias raízes do meu universo cultural e intelectual. Em suma, o chamado dos humanistas para as fontes – ad fontes!, bradavam – parecia ter-me alcançado.

Terminado o Programa de Latim de Júlio Comba, mergulhei na renomada Gramática Latina de Napoleão Mendes de Almeida e não parei mais, estudando tudo o que podia ter em mãos: os Gradus Primus e Gradus Secundus, de Paulo Rónai; Introdução à Teoria e Prática do Latim, de Janete Melasso Garcia; Latina Essentia, de Antônio Martinez de Rezende, para citar alguns. Como se vê, tomei a firme resolução de não só dedicar-me seriamente ao estudo da língua de Cícero, mas também, sem descuidar-me das que já conhecia ou estudava, dar preferência a ela.

 

2 Sobre o método, ou os métodos, para o aprendizado de Latim: o que tem a dizer?

Apesar de todos os meus esforços, carregava em mim uma pesada frustração: mesmo depois de ter feito todos os estudos possíveis com diligência em cerca de três ou quatro anos, eu tinha uma dificuldade muito grande em ler os textos latinos no original com alguma fluidez. Embora dignos de diversos méritos, os autores com que tive contato no início dos meus estudos me ensinaram a pensar o latim em termos estritamente gramaticais e sempre dentro dos moldes do português, sem dar-me sequer o vocabulário suficiente para ter uma conversa tête-à-tête com Cícero ou Tito Lívio. Explico-me.

Em primeiro lugar, o vocabulário apresentado por aqueles manuais era praticamente inútil para ler os textos no original. Não havia uma seleção de frequência que apresentasse ao leitor as palavras mais comuns encontradas nos textos latinos antes dos termos mais raros. Tampouco as palavras eram apresentadas dentro de um contexto coerente que permitisse vislumbrar com maior precisão a carga semântica que teriam em textos latinos originais. O resultado: era praticamente impossível ler um parágrafo em latim sem recorrer algumas dezenas de vezes ao dicionário.

Em segundo lugar, os exercícios de tradução em língua portuguesa de frases artificiais e desconexas entre si até tinham alguma utilidade para reforçar este ou aquele ponto gramatical abordado, mas de modo algum preparavam o leitor para o contato direto com os clássicos latinos. Na prática, tais exercícios criam obstáculos ao intelecto para que possa captar o sentido dos textos latinos em si mesmos e transmite a impressão de que compreender um texto em língua estrangeira significa necessariamente ser capaz de traduzir aquele texto na língua-mãe. Isso é falso. As habilidades de tradução e de compreensão são correlatas, mas são coisas diferentes.

Em terceiro lugar, as cascatas de regras e exceções expostas de maneira nua e crua e fora de contextos reais, quando muito apoiadas por um ou outro exercício ad hoc, mesmo que memorizadas, tinham pouca serventia para a leitura dos textos latinos. A situação era estranha, pois eu era capaz de compreender os porquês gramaticais do texto, mas não de decifrar o escrito em si, que continuava para mim um verdadeiro hieróglifo – e eu não tinha a Pedra de Roseta e começava a perder a esperança de encontrá-la.

Por fim, quando os autores daqueles manuais apresentavam algum texto original para que se trabalhasse em cima dele, recomendavam que o leitor transpusesse a sintaxe latina de cada frase para a sintaxe portuguesa. Uma vez torcida e retorcida dessa maneira, dever-se-ia proceder a uma tradução literal dos vocábulos que a compunham. Finalmente, era preciso acomodar isso a um estilo português senão mais elegante, pelo menos aceitável. Deixando de lado o fato de tal procedimento exigir umas dezenas de minutos, na melhor das hipóteses, para chegar a alguma compreensão de cada frase, a questão é que na prática isso não funcionava, pois, ao ler um texto latino, encontrava diversas frases que simplesmente não podiam ser retorcidas dessa maneira por várias razões. Ademais, essa prática destruía completamente o estilo e a beleza do original latino e, não raro, as alterações sintáticas para forçar uma acomodação com o português adulteravam o próprio sentido do texto original.

Por mais que doesse, a verdade era que nenhum autor me havia ensinado a pensar o latim através do próprio latim. O método gramatical bem como o método de tradução, apesar da ampla difusão, não funcionou para mim. A sensação era de total frustração, como eu disse, pois ficava a impressão de ter perdido tempo em algo inalcançável, isto é, a leitura fluente dos textos latinos dentro do espírito em que foram escritos. A única certeza que eu tinha era a de que havia algo de muito errado naquela abordagem. Não me parecia natural levar tanto tempo e ter tanta dificuldade para ler um simples parágrafo latino que não deveria levar mais do que alguns minutos para ser lido e compreendido. Não era possível que um discurso de Cícero de pouco mais de trinta minutos demandasse meses para ser lido. Algo estava muito errado.

Quando já faltava pouco para eu abandonar completamente o estudo de latim, aconteceu-me algo interessante. Encontrei uma página virtual em que era possível cadastrar-se para fazer parte de uma lista de e-mails em que a língua franca era o latim. Fiquei intrigado com o fato de haver pessoas que ainda usavam o latim para comunicar-se. Cadastrei-me para ver do que se tratava e fiquei impressionado de ver pessoas do mundo inteiro comunicar-se com facilidade em latim acerca dos mais variados temas. Era isso! Óbvio! Aquilo que eu fazia com as outras línguas, ou seja, usá-las ativamente sempre que surgisse a oportunidade, deveria tentar fazer também com o latim. Quanto mais o usasse ativamente, mais familiarizado com o idioma eu estaria, mais fácil seria internalizar a gramática e reter o vocabulário.

No começo era muito difícil, porque nenhum manual que eu havia estudado me havia preparado para isso. As frases que eu tentava escrever ou saíam emboladas, ou simplesmente não saíam. Certo dia, acompanhando uma troca de mensagens entre os participantes do grupo, vi que alguém sugeriu a obra Familia Romana, do dinamarquês Hans Ørberg, como bibliografia básica para quem quisesse aprender a pensar em latim. Adquiri a obra e, a partir desse momento, posso dizer que realmente comecei a aprender a língua do Lácio.

Hans Ørberg trata o latim como um idioma, não como um cadáver para ser dissecado e isso faz toda a diferença. O livro Familia Romana, com efeito, pode ser considerado um curso introdutório de cultura romana escrito em um latim que se torna progressivamente mais complexo. Tudo no livro está em latim, do começo ao fim. No entanto, o vocabulário é apresentado de forma inteligente, das palavras mais frequentes para as menos frequentes, e o significado das palavras novas é ensinado com recurso às palavras já conhecidas e quase sempre pode ser depreendido do próprio contexto. Além disso, no Familia Romana se encontram 80% das palavras mais frequentes nos autores clássicos. Isso quer dizer que, com o estudo de Familia Romana, o leitor pode ter acesso a cerca de 80% do que já foi escrito em latim. A gramática, por sua vez, sempre se apresenta dentro de um contexto. No lugar de exercícios de tradução para verificar a compreensão do que foi lido, o autor solicita que o leitor responda em latim às perguntas feitas sobre o texto. Os próprios exercícios de gramática, dados em um livro a parte, não requerem análise de gramática comparada com outra língua, mas se apresentam de modo a pôr em evidência a natureza do próprio latim. Enfim, uma verdadeira obra-prima no gênero e, de longe, o melhor manual para aprender latim. Vale ressaltar que Hans Ørberg escreveu muito mais coisa para o ensino de latim para dar suporte e continuidade ao Familia Romana. O conjunto da obra é praticamente uma universidade de latim.

O estudo de um idioma não pode ser maneta ou perneta, isto é, não basta saber só ler ou só falar, mas é importante dominar todas as habilidades linguísticas, a saber, a fala, a escrita, a leitura e a escuta. Isso é evidente para os outros idiomas e Hans Ørberg o tornou evidente também para o latim. Quando me tornei um bom escritor e um bom falante de latim, tornei-me também, modéstia a parte, um excelente leitor de latim, capaz, agora sim, não só de ler com fluidez, mas até de traduzir qualquer obra dentro do espírito em que foi escrita.

 

3 Suponhamos: começo hoje a estudar Latim, tenho uma inteligência mediana (há que discorde; para baixo). Quantas horas por dia, por semana, preciso me dedicar para chegar a resultados satisfatórios, e em quanto tempo?

A quantidade de tempo importa pouco, eu diria. O principal é manter constância nos estudos e organizar-se para ter contato diário com o idioma. Seguindo um bom método e sob a orientação de um bom professor, é possível alcançar resultados satisfatórios em cerca de um ano.

 

4 Das obras e autores latinos, quais são suas predileções?

Procuro diversificar minhas leituras e ler autores de todas as épocas. Da Antiguidade pagã, gosto de Cícero, Salústio, Virgílio, Ovídio e Tito Lívio; da Antiguidade cristã, agradam-me Tertuliano e Santo Agostinho; da Idade Média, leio Boécio, Cassiodoro, Hugo de São Vítor, Santo Tomás de Aquino e a Imitação de Cristo; da Idade Moderna, leio Erasmo com mais frequência; da Idade Contemporânea, fico com Thomas Vallaurius, Cletus Pavanetto,  Schwieder, Gandino, Guilielmus Wouters, Hugo Paoli, Marinus de Boylesve e o padre Lhomond.

 

5 É corriqueiro dizer-se, do Latim, que sua utilidade está no facilitar o aprendizado do português. É isso mesmo, é só isso mesmo?

De forma alguma. A principal utilidade do latim é abrir as portas para a literatura clássica e para o pensamento dos antigos. Como efeito, digamos, colateral, o latim traz, sim, benefícios para o raciocínio lógico, para um conhecimento mais profundo do português, para o exercício da disciplina intelectual e assim por diante. No entanto, o latim não é o único idioma a trazer esses benefícios colaterais, o alemão, por exemplo, é ótimo para o exercício do raciocínio lógico também devido à sua sintaxe. Seja como for, o objetivo principal para que alguém aprenda latim deve ser o de ter contato com a literatura clássica.

 

6 O Latim é língua morta, viva ou nem língua é?

O latim é língua morta, mas a sua morte livrou-a das vicissitudes dos tempos e dos nacionalismos diversos, de modo que se tornou uma língua atemporal e talvez o maior patrimônio linguístico da humanidade, sendo, portanto, um dos melhores veículos para a comunicação e a transmissão de ideias. Não existe candidato superior para ocupar as funções de língua franca da cultura e do conhecimento.

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