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Prisioneiros dos gulags trabalham na construção do Canal do Mar Báltico | Foto Wikimedia
Prisioneiros dos gulags trabalham na construção do Canal do Mar Báltico | Foto Wikimedia| Foto:

Uma divertida anedota, infelizmente apócrifa, dá conta de que, durante a escolástica, as disputas teológicas tinham se transformado em exercícios tão sofisticados e, ao mesmo tempo, tão estéreis, que havia até quem se dispusesse a contabilizar a quantidade de anjos que caberiam na cabeça de um alfinete. No Brasil, país absurdo pela própria natureza, há quem faça as contas de quantos mortos cabem num tuíte.

O discurso do ex-secretário Roberto Alvim acendeu pela enésima vez a discussão sobre o que terá sido pior: nazismo ou comunismo. Montecchios e Capuletos empunharam armas e cerraram fileiras. Esse debate, tão nonsense quanto a contabilidade angelical, teve como gatilho um cacoete, comum aos entusiastas do governo Bolsonaro, que consiste em exigir, a cada crítica à direita, uma crítica equivalente à esquerda; se o nazismo merece repúdio, o comunismo também merece; se a direita cometeu crimes, a esquerda também cometeu.

Todos, muito cheios de razão, veem no nazismo uma doutrina irremediável.  Não há, no nazismo, discurso ou parte de discurso que se possa aceitar de boa-fé. Não dá para ser um pouquinho nazista, mas se comportar bem; ser nazi, porém circuncidado; ser fascista e, digamos, favorável à imigração. O nazismo pregou o extermínio de uma determinada população – e o praticou. Sem eufemismo, sem escolástica, sem dialética. Matar judeus e anexar nações era o objetivo manifesto.

Por outro lado, para muita gente, o comunismo não é essencialmente mau, mas acidentalmente mau. Em tese, seria possível defender de boa-fé o comunismo, porque sua doutrina prega valores defensáveis e, a depender do gosto, até bonitos. Um mundo em que não haveria propriedade privada, ou seria regulada e distribuída pelo Estado; um Estado, por sua vez, absorvido numa sociedade sem classes, ditadura proletária tão natural que passaria despercebida; uma sociedade descrente das religiões, salvo a estatal; um homem livre de patrões, carpinteiro durante o dia e erudito depois do jantar. Quem não se emociona com o hino da Internacional Socialista?

Eu não me emociono. Porém é inegável que o nazismo é repugnante de um jeitinho só dele. Violento e direto como vídeo pornográfico, nojento e farsesco como cinema gore. Eu e os outros críticos do nazismo estamos de acordo que, dos pesadelos políticos, o nazismo é o pesadelo mais sombrio e impressionante. Porém, há poréns a respeito dessa distinção: ela é perigosa quando serve para minimizar, por contraste, e suavizar, por comparação, a monstruosidade do que foi o chamado “socialismo real”.

O nazismo enoja em sua especificidade preconceituosa: queria exterminar determinado povo, sem tergiversar. O comunismo engana justamente pelo que nele há de difuso e inespecífico: matar gente reduzida a números e classes, cobrando em prestações antecipadas o preço da utopia. O nazismo era tão exclusivista que durou pouco mais de uma década. O comunismo seduziu e incluiu todos os que lhe atravessaram o caminho, e durou oito décadas. O campo de extermínio não foi diferente do gulag: foi um perfeito gulag.

Depois de tantos e tantos relatos, testemunhos, documentos, arquivos e levantamentos históricos e doutrinais, depois dos Processos de Moscou e do Pacto Molotov-Ribbentrop, depois do Holodomor e do Grande Salto para Frente, depois de Lenin, Trotsky, Stálin, Mao, Pol Pot, Ceaușescu, Castro, Che, Chávez e Jong-un, não é possível relativizar o totalitarismo comunista com a desculpa de que sua mensagem original parece boa, suas intenções até hoje soam nobres, seu projeto ainda agora é viável, sua ditadura foi quase sem querer.

Para quem não é liberal ou conservador, a opção está dada, existe, de uma esquerda não comunista, social-democrata, que admite os valores da sociedade aberta, as conquistas do livre-mercado, a conveniência da representação e a segurança do constitucionalismo. Que os de esquerda advoguem, portanto, esse tipo de esquerda. Mas... comunismo? Depois de 20, de 40, de 100 milhões de mortos, depois de tortura, censura, prisões, deportações, gulag, perseguições, guerras, fome, desastres ambientais? Que ideia de jerico.

Enquanto o nazismo só tem substância, não tem acidente, o comunismo é uma espécie de ciência do acidente: foram tantas e tantas vezes a mesma tragédia “acidental”, a mesma transformação da potência em ato, a mesma previsibilidade entre causa e efeito, que esperar outra coisa dele, nessa altura do campeonato ideológico, equivale a jogar para o alto um objeto qualquer, infinitas vezes, refém da ingênua ou patológica esperança de que, depois de muitas tentativas, uma hora ou outra a gravidade finalmente falhará. Nazismo e comunismo se equivalem? Se não na pura teoria, mas na práxis; se não estética, mas na arte-final, sim: nazismo e comunismo se equivalem. Os mortos não fazem distinção.

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