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Gilberto Morbach é advogado e mestrando em Direito Público (Unisinos/CNPq). Membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da ABDPro – Associação Brasileira de Direito Processual.

1 Fale de sua formação e de suas referências em teoria do direito e temas processuais e constitucionais.

Sou mestrando em Direito Público pela Unisinos, como bolsista do CNPq, e minha pesquisa é, em linhas bastante gerais, sobre o pensamento de Jeremy Waldron – o que me leva à segunda parte da pergunta. Na teoria do direito, minhas maiores referências são o próprio Waldron, cuja teoria propõe reflexões sobre direito, política e moralidade – às quais subjazem ideais típicos de uma tradição liberal-democrática –, e Lon Fuller – que, em The Morality of Law, articulou a ideia de que sistemas jurídicos só são legitimamente jurídicos na medida em que respeitem os princípios próprios de uma moralidade interna que torna o direito possível.

Com relação ao direito processual, parto da premissa de que o processo judicial é uma garantia do indivíduo e não um instrumento do Estado; nesse sentido, impossível não destacar, no Brasil, o trabalho pioneiro da Associação Brasileira de Direito Processual, que personifico aqui em Igor Raatz, Eduardo José da Fonseca Costa e Antônio Carvalho.

Por fim, but definitely not least, meu orientador, o Professor Lênio Streck. E se a representatividade que o próprio nome carrega torna desnecessário falar sobre a importância de Streck para o direito brasileiro, falo sobre um aspecto do Professor que nem todos conhecem: seu espírito verdadeiramente democrático. Perdi a conta das vezes em que, no gabinete de pesquisas, discuti desacordos com o Professor. Posso dar exemplos concretos. No direito, discutimos – e discordamos – sobre alguns pressupostos do positivismo jurídico. Na ética, discutimos – e discordamos – com relação ao pluralismo valorativo: sou, como Isaiah Berlin, uma raposa; ele, como Ronald Dworkin, um ouriço. E o que fica disso é, afinal, exatamente aquilo que deve caracterizar um núcleo de pesquisas: a independência e a autonomia intelectual e, sobretudo, a busca pela verdade.

2 Em julho de 2018 você publicou o muito pertinente texto: “Supremacia judicial e democracia: o Judiciário não nos salva de nós mesmos”. Aqui na Gazeta do Povo também escrevi sobre isso: o tribunal não nos salvará das urnas. Ou aprendemos a votar e, sobretudo, assumimos as consequências do voto, ou viveremos crises institucionais intermináveis. Comente um pouco mais sobre esse impasse muito brasileiro.

Nosso impasse muito brasileiro parece-me típico de momentos e contextos nos quais há forte descrença com relação à política representativa – algo que tem sido constante por aqui. Nesse sentido, o que acaba acontecendo às vezes é que, diante da imagem de um Parlamento corrupto, composto por representantes que não representam ninguém, contrapõe-se um retrato idealizado de alguma outra coisa. À esquerda e à direita, essa outra coisa já foi o Poder Judiciário. De um lado, progressistas que, no lugar de um Legislativo supostamente atrasado e insuficientemente representativo, apostavam em uma Suprema Corte “iluminista”, responsável por fazer avançar pautas que não pareciam encontrar espaço no Congresso; de outro, conservadores que, descontentes com uma classe política envolvida em escândalos de corrupção, viram em juízes e procuradores a solução para o problema da impunidade.

Acontece que, muito embora eu concorde integralmente com seu ponto, e mantenha integralmente minhas palavras à época do texto por você mencionado, o fato é que, no Brasil, ninguém morre de tédio. A descrença não é mais apenas com relação à política; é uma descrença institucional. A crise de legitimidade transcendeu a esfera política e, hoje, o descontentamento, que é geral e difuso, parece-me direcionado às“elites” e, na medida em que não há um consenso que sustente uma definição precisa para essas elites, elas acabam por significar justamente aquilo que é projetado pela própria insatisfação. A elite política, corrupta, que não representa “o povo” (seja lá o que isso signifique); a elite jurídica, tão cheia de privilégios quanto leniente com a corrupção; a elite acadêmica, apartada da realidade, atrás dos muros das universidades; a elite dos meios de comunicação que, atendendo a interesses privados, é responsável por propagar fake news (o fato de “fake news” ser hoje uma expressão corrente em nossa linguagem ordinária diz muito sobre nossos tempos).

Nesse sentido, o Poder Judiciário deve fazer o que o Poder Judiciário deve fazer. Nem mais, mas nem menos também. O que quero dizer é que há um justo meio; um justo meio entre, em um dos polos, um Judiciário que reivindica para si a titularidade do bem comum e, no outro, juízes complacentes que se tornam reféns de uma lógica de rejeição aos mais básicos princípios de freios e contrapesos. O Judiciário não vai salvar o país, e nem deve; salvar o país não é seu papel. Deve, sim, garantir que se observe e respeite o império da lei. A Suprema Corte é só a Suprema Corte: nem mais, mas nem menos também.

3 Para homenagear seu professor, o jurista Lênio Streck, pergunto: “O que é isto – o ativismo judicial?” E, a propósito, para além do quid est, quais são seus perigos? Ainda: por que o direito não deve ouvir “a voz das ruas” – ou deve?

Eu diria que, em nosso contexto de civil law, o ativismo judicial é o que caracteriza uma decisão judicial cujos fundamentos são mais políticos, morais (ou até pessoais) que jurídicos. Evidentemente que o processo decisório é complexo, e que a própria prática envolve elementos morais e políticos; uma cisão absoluta entre essas esferas será, no plano teorético, uma construção artificial e, no plano prático, wishful thinking. Por outro lado, ainda que as relações entre direito, política e moral sejam mais complexas do que sugere uma abordagem meramente conceitual, daí não se segue que seja legítimo que a decisão judicial rebaixe os parâmetros jurídicos a um segundo plano. Para simplificar, e assumindo o risco de uma certa imprecisão (talvez até um pouco grosseira), diria que o juiz ativista é aquele que reivindica para si um papel que não é seu.

Nesse sentido, o Judiciário não deve ouvir a “voz das ruas”, e não deve fazê-lo, primeiro, porque não é seu papel, e, segundo, exatamente pelos perigos que esse tipo de postura representa. O ativismo judicial é, por princípio, antidemocrático. Claro, isso exige uma pequena inflexão: especialmente nestes nossos tempos interessantes, falar com responsabilidade sobre conceitos contestáveis – como é, por excelência, o caso de “democracia” – exige que se deixe claro a concepção que adotamos. Merquior bem dizia que termos históricos, posicionais, jamais permitem uma definição no sentido exato do termo, mas o ponto é que, se não definimos minimamente o que queremos dizer, corremos o risco de fazer desses conceitos abstrações que não significam nada. Além disso, e parafraseando Isaiah Berlin, o uso do termo “democracia” é um dos mais precisos indicadores da posição de alguém (segundo o Pravda, o regime soviético era uma ditadura “democrático-revolucionária”, afinal). Por isso, quando digo que o ativismo judicial é antidemocrático, deixo claro que a concepção de democracia que tenho em mente é a democracia liberal ocidental pós-1870, constituída por princípios de autonomia e responsabilidade individual, liberdade religiosa, direitos humanos, ordem legal, separação de poderes, governo representativo.

Falo isso porque parece consolidar-se cada vez mais a ideia de que ouvir a “voz das ruas”, o “povo”, a “vontade popular” – esses, sim, termos abstratos que significam qualquer coisa: de que essa é a verdadeira democracia. É essa perspectiva que pode degradar a democracia a partir dela própria, servindo de trunfo a todo tipo de salvacionismo autoritário. Meu lado otimista diz que, mesmo em tempos de crise, a democracia sobrevive, uma vez que segue sendo o mais aceito critério de legitimidade no mundo moderno; mesmo aqueles que rejeitam seus princípios assim o fazem justificando-se em nome dela. Meu lado pessimista diz que é precisamente isso que pode engendrar aquilo a que nos alertava Tocqueville: um “majoritarianismo” que, na inobservância de condições mínimas, expressa e justifica a tirania.

É por isso que o ativismo judicial é antidemocrático. O próprio conceito é antitético a tudo aquilo que me parece caracterizar uma democracia autêntica, na medida em que se trata de um voluntarismo que, baseado em boas intenções, rejeita os limites institucionais da autoridade. E se estou correto em dizer que a democracia é o pior de nossos critérios de legitimidade – à exceção de todos os outros –, daí se segue que o ativismo judicial é ilegítimo. Ilegítimo porque ontologicamente arbitrário; e, afinal, não há espaço para arbitrariedade em uma democracia que se respeite enquanto tal.

Ainda, por fim, partindo de uma abordagem mais teórica, há quem sustente que o ativismo judicial estaria justificado na hipótese de a decisão ativista em questão chegar à resposta correta, verdadeira (dos pontos de vista ético e metaético, de primeira e segunda ordem); na mesma proporção, e partindo da mesma premissa, há quem diga que a rejeição por princípio a posturas desse tipo fundamentar-se-iam num ceticismo segundo o qual seria impossível falar em respostas corretas em direito. Meu ponto fundamental segue o que diz Waldron sobre o judicial review norte-americano: haja ou não uma resposta correta, haja ou não objetividade moral, não importa; o ativismo será sempre ilegítimo porquanto carece de uma epistemologia compartilhada apta a demonstrar a correção dessa resposta.

(Amanhã será publicada a segunda parte da entrevista)

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