• Carregando...
Papa Francisco beija imagem do Menino Jesus na Basílica de São Pedro, no Vaticano, durante a primeira Missa do Galo de seu pontificado
Papa Francisco beija imagem do Menino Jesus na Basílica de São Pedro, no Vaticano, durante a primeira Missa do Galo de seu pontificado| Foto:

Não se fazem mais hereges como antigamente; nem é preciso. Basta ser católico, acessar as mídias sociais, pavonear conservadorismos de centro cultural e, voilà!, o biônico especialista em ortodoxias entrega as primeiras – e últimas, e definitivas – considerações acerca da recente exortação apostólica daquele desavisado que resolveu ocupar o trono de Pedro. Não sei se o Papa é pop; mas que ele é de esquerda, garantem que é.

Vida de construtor de pontes não é fácil. Papas são mais achincalhados do que árbitros de futebol. Para uns, comunista; para outros, liberal. Se apita assim, é conservador demais; se apita assado, é conservador de menos. Um pouco mais e concluem: ele não apita é nada (ou não deveria). Comungue-se com um barulho desses. A favor de Francisco, o óbvio: ele quase sempre só diz platitudes. Nada que a Igreja já não tenha dito tantas outras vezes. A pobreza existe e, acreditem!, os pobres também existem.

Não basta dizer ao pobre que liberais resolveram a questão do cálculo econômico, e que a correta alocação de recursos há de ser feita pelo mercado, arranjo de trocas voluntárias; não basta considerar que o conhecimento é necessariamente difuso e o Estado não o tem absolutamente; e não basta esperar que, por fim, num dia que há de vir, em data incerta e não divulgada, certa “mão invisível do mercado” sanará todas as dores e matará todas as fomes.

Semanas atrás, um menino triste e com machucado no pé veio me vender suas balas. E quando um menino sem esperança alguma tenta vender suas balas por cinquenta centavos – sob o sol a pino, como se a única coisa tão somente dele fosse aquele sol inclemente –, não é ao economista liberal que você tem de rogar, mas a Cristo. Não sem antes comprar algumas das suas balas. Sabe-se lá se não é com aquilo que haverá de comer mais tarde.

Querem um conselho? Quando virem um miserável e porventura não puderem fazer nada por ele, deem-lhe esmola.

Mas filantropia e caridade não resolvem todos os problemas, de acordo. Gosto do capitalismo até mais do que deveria, segundo alguns zelosos paparazzi espirituais. Entretanto, há pobres demais no mundo cuja fome não pode esperar pelo triunfo da ideologia liberal, pela derrocada definitiva do Estado de bem-estar social, pela fundação do novo partido libertário ou pela ascensão ao poder dos representantes da direita.

As coisas neste sempre baixo mundo simplesmente não funcionam assim. Os problemas são complexos e urgentes demais, e para problemas complexos as soluções são complexas, e para urgências de fome há que se tomar medidas urgentes.

Curiosamente, é a mesma questão levantada pelo jesuíta que anda fazendo das suas no trono de Pedro, quando fala dos pobres a quem não é pobre. A despeito de um cristianismo estritamente místico, quase de caráter iniciático, ultimamente pregado em latim via Facebook, e também ressalvadas as objeções de liberais que parecem acreditar que pobres não passam de uma invenção marxista para inocular o germe da revolução em seus fiéis, o fato é que existem miseráveis no mundo. E muitos. E milhões. E sua miséria não é argumento nem categoria.

Os evangelhos falam da pobreza espiritual de forma metafórica e alusiva. Há camadas sutilíssimas de significados, mas talvez não seja sandice considerar que os evangelhos também falam do pobre-pobre. Do faminto de pão. Do indivíduo que não tem mesmo com o que encher as panelas. Nem só de pão vive o homem, mas também de pão. Papa Francisco não diz novidades em suas exortações, e isso é um alento; a Igreja em sua Doutrina Social não se esquece de que existem famintos, nus, doentes, encarcerados, órfãos e solitários. A pobreza não é invenção de São Karl Marx, nem os direitos humanos são apenas dos… manos.

Talvez seja exatamente por isso que o socialismo, ideologia nefasta e assassina (além de supinamente ineficiente), sobreviva como íncubo da civilização cristã. O socialismo conseguiu apropriar-se da linguagem, da gramática, das regras do jogo. O que a esquerda propõe, em sua narrativa espúria, é intuitivo: existe pobreza no mundo e algo deve ser feito a respeito. Muitos dos “idiotas úteis”, eleitores de governos de esquerda, não são idiotas. São pessoas de boa vontade que ignoram os mecanismos da economia. É até razoável que protestem: “Alguém tem de acabar com isso!”

O escritor português João Pereira Coutinho notou, tempos atrás, que confundir uma “economia de mercado” com uma “sociedade de mercado” é não entender o papel importante, porém instrumental, da primeira como “sistema de liberdade natural”. Francisco relembra a ouvidos modernos e por isso moucos a mensagem da Igreja antiga que vem desde tempos antigos. O espanto que acomete donzelas liberais ou tradicionalistas não diz nada sobre o Papa; diz muito sobre a ignorância evangélica de quem só agora aterrou na Doutrina Social da Igreja, ou na cada vez mais vaga noção de caridade cristã.

Noutros tempos, quando as pessoas se indignavam com a pobreza, com a ganância dos poderosos, com a arbitrariedade dos tiranos, eram chamadas cristãs. Quando dedicavam sua vida a isso, eram santas. Hoje são militantes: à esquerda e à direita. Hoje são aquelas que acreditam sinceramente, e lamentavelmente, que não existe menino sob o sol, vendendo balas, que o menino pobre vendendo balas sob o sol é uma abstração, um ponto qualquer na curva econômica, um número na estatística, um exemplo sociológico. Mas ele existe. E a única mão invisível que toca sua pobreza e sua solidão é outra. E não é deste mundo.

 

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]