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Woody Allen e Diane Keaton em cena de "Sleeper" ("Dorminhoco"), 1973.
Woody Allen e Diane Keaton em cena de "Sleeper" ("Dorminhoco"), 1973.| Foto:

No filme Sleeper (Dorminhoco, 1973), Woody Allen é Miles Monroe. Congelado e acondicionado em uma cápsula criogênica em 1973, acorda muitos anos depois numa sociedade fascista e, meio sem querer, se transforma num dos protagonistas da resistência. Todo mundo sofreu lavagem cerebral, e Monroe, ele próprio dono de inteligência apoucada, participa da revolução. Foi mais ou menos isso o que parece ter acontecido por aqui. Basta inverter os termos, ajustar as ideologias: Bolsonaro é Monroe. A sociedade fascista é a sociedade petista. A resistência é toda essa gente esgotada de lulismo. O Brasil é o avesso da ficção.

Se o entusiasmo por Jair Bolsonaro de algum modo se justifica, a antipatia visceral também. A expectativa com seu governo começará de trás para frente. Crédito ele não tem; terá de saldar o débito e provar que não é ruim como parece ser. A lista de declarações, promessas, gafes e ameaças é longa; a lista de realizações é curta. Sua carreira não inspira vocações. Enfiou-se numa cápsula criogênica em 1991, foi encontrado anos depois; acordou prestes a se tornar presidente. Ê, Brasil. Viveu de dinheiro público a vida toda, bem como sua família; são uma pequena dinastia parlamentar. Não são nem foram empreendedores ou liberais. Nunca chuparam um picolé que não fosse pago com os nada módicos salários e benefícios que um político recebe. Esses são fatos e contra fatos não há mitologias.

Fatos à parte, e os fatos contam, a preocupação com a vitória de Bolsonaro tem saído dos limites razoáveis e já beira a histeria e o escândalo bíblico. Li algures que votar no Fernando Haddad virou questão humanitária. Acho que estão exagerando um pouquinho. Todos se lembram do medo de Regina Duarte, em 2002, de que virássemos um país comunista? Pois lembram. Tanto se lembram que fizeram piada dos exageros dela; o mundo deu algumas voltas e hoje o esquerdista se transformou numa amedrontada Regina Duarte: os mesmos olhos esbugalhados, transidos de pavor, anunciando apocalipses para breve.

A incapacidade que a esquerda tem – e sempre teve – de fazer a necessária e sazonal autocrítica ideológica deságua na obsessão por fazer a crítica alheia, com rigores que nunca impõe a si. Todos os adversários sempre foram tratados como fascistas, mesmo quando eram de centro-esquerda ou simplesmente bundas-moles, como os do PSDB. Bolsonaro se encaixa com mais facilidade no rótulo. Um verdadeiro presente para os progressistas e sua vitimização acusatória.

Essa impostura salta aos olhos da população e o antipetismo se consolida no voto de protesto. Se a esquerda brasileira tivesse juízo, teria desistido do PT de uma vez por todas, esquecido Lula no lugar onde está e merece estar, e partido para outras escolhas e possibilidades. Eduardo Jorge e Fernando Gabeira, por exemplo, nunca foram levados a sério. (São decentes demais e, portanto, suspeitos demais para figurar nos quadros.) Qualquer um, à esquerda, teria sido melhor do que o PT de Fernando Haddad e Lula. Mas a esquerda não tem juízo, nem parece querer tê-lo; atingiu a meta e quer dobrar a meta. O petismo é a doença infantil do esquerdismo brasileiro.

“Acontece que Bolsonaro afirmou isso e aquilo, prometeu isso e aquilo, agrediu verbalmente Fulano e Beltrano!” É verdade. Ele sempre falou mais do que devia, e tantas vezes confundiu a crítica ao politicamente correto com o politicamente errado. É preciso cobrar responsabilidade com o que afirma ou omite. Seu discurso está mais para comediante que propriamente estadista. No entanto, embora eu nunca julgue demais quaisquer precauções contra políticos – e contra Bolsonaro, principalmente –, há que se levar em consideração que o PT e suas linhas auxiliares não são, digamos, exatamente confiáveis.

Brucutus ameaçam a democracia, mas ela também é ameaçada e destruída de muitas outras maneiras. Comprar o Congresso é tão antidemocrático quando fechar o Congresso. O PT montou a maior máquina de distribuição de renda entre parlamentares, banqueiros e construtoras de que se tem notícia. O MST prosseguiu em sua marcha rumo à destruição do agronegócio e ao terrorismo no campo. Os black blocs depredaram patrimônio público e privado. Um prefeito foi assassinado. Um cinegrafista foi assassinado. Ditadores e terroristas foram aplaudidos e financiados. Um candidato à presidência foi esfaqueado. Etc. Longo etc. O pavor de uma escalada fascista é tamanho que muita gente se apressou a minimizar, quase a desculpar, os crimes do PT, como se fossem coisa de pouca importância, uma espécie de malufismo redivivo: roubaram, roubaram mesmo, corromperam, ameaçaram – mas fizeram alguma coisinha de bom para o povo.

Mas o povo não acredita mais nessa versão, e a bola está com Jair Bolsonaro. A encrenca caiu em seu colo, tenho a impressão de que ele não sabe bem o que fazer com ela, mas Inês é morta. (Estou certo de que vencerá.) Ele tem de entender que governará um país, não um clube de tiro. Tem de assumir o compromisso com a democracia e a legalidade, e aprender que os direitos humanos, ainda que instrumentalizados por certa ideologia vagabunda, representam um marco ético inegociável. (Até porque, Capitão, reza a lenda que Vossa Excelência não gosta de bandidos. Quem porventura agrida gays, mulheres, negros ou quaisquer outras minorias terá de ser tratado como bandido; logo, não se pode contemporizar.)

Bolsonaro deve se afastar, o quanto antes, da personagem que alimentou: a de revisionista histórico, a de militar autoritário, a de político golpista. É possível, está em tempo, seus eleitores precisam acreditar nisso; quem não vota nele precisa ainda mais. Lula era golpista, antes de ser presidente. Escreveu uma carta (Duda Mendonça e Antônio Palocci escreveram a carta; Lula assinou.), o establishment progressista se comoveu, Lula foi eleito. Se Lula conseguiu, qualquer um consegue. Se José Dirceu é democrata, qualquer um é democrata.

O deputado terá de ser, na presidência, muito mais relevante do que foi no Congresso. Que monte uma equipe técnica, e que sua conversão ao liberalismo econômico não se revele oportunismo eleitoral nem arranjo improvisado; Paulo Guedes é seu fiador e nada lhe faltará. (Ando preocupado com essa cara de quem mordeu limão, do Paulo Guedes. Espero que seja apenas chatice e tédio, e não prenúncio de separação precoce.) Que ele condene, com veemência, o ímpeto violento de muitos de seus militantes mais desnorteados, e contenha, com veemência igual, o fricote de militares em torno do poder civil. Pior do que Bolsonaro é o bolsonarismo rasteiro que se coagulou à sua volta, a legitimação da truculência. Ele tem de reafirmar o apreço à liberdade de expressão e crítica, e respeitar a Constituição sem adversativas nem ambiguidades. É seu papel. É sua responsabilidade. Menos que isso é pouco.

E menos que isso é pouco porque o Brasil não é um país de 50 milhões de fascistas. Quem vota em Bolsonaro vota em alguém que hoje comunica ou representa – ainda que, para meu gosto, represente mal – um conjunto de valores e de expectativas que não contavam na esfera pública: segurança e justiça, crescimento econômico, redução dos gastos públicos, privatizações e uma composição mais equilibrada no STF. Tão delirante quanto imaginar que o comunismo está em toda parte é acreditar que somos todos uns neonazistas à espera de ocasião. Brasileiro é mole e indisciplinado: para ser comunista, para ser fascista. Contemos com (e reforcemos) isso.

Por fim, aos militantes de esquerda resta fazer o controle de qualidade dos políticos em quem costumam votar, e seria bom que também repensassem o vilipendiado sentido ético (reconhecem a palavra?) da política, depois de tanta e tamanha corrupção. Se Lula e o PT são tudo o que nos têm a oferecer, meus sentimentos sinceros e minhas sinceras despedidas: perderam o rumo da prosa e já foram tarde. PT saudações.

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