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George Steiner
George Steiner| Foto:

Que renomados analistas políticos se surpreendam com a sublevação de grupos nacionalistas e o recrudescimento de discursos xenófobos deveria ser, isto sim, surpreendente. Ainda que equivocada, a resposta ao momento por que passa a Europa é a reação quase natural à dissolução do espírito europeu, cercado de todos os lados: à esquerda, por uma compreensão econômico-jurídica e de bem-estar social do continente, centralização tecnocrática das decisões de grandes e pequenos, de etnias e religiões, de economia e política; à direita, pela xenofobia e antissemitismo latentes entre líderes e liderados e pela rejeição islâmica às liberdades e às culturas dos povos sobre os quais pretende expandir sua influência.

A Europa, mais do que seus contornos territoriais, consiste numa comunidade a um só tempo una e múltipla, verdadeiro universo de caminhos e possibilidades; o que devemos lamentar é a dissolução desse ânimo ecumênico, que não se encaixa muito bem na moldura de organizações supranacionais, mas podia ser encontrado facilmente nas livrarias e nos cafés, porque “o café é um local de encontros e conspiração, de debate intelectual e de fofoca, pouso do flâneur e do poeta, ou do metafisico e seu caderno de notas. Está aberto a todos, mas é também um clube, maçonaria de reconhecimento político ou artístico-literário e de presença programática”.

Enquanto os burocratas em sentido estrito e os outros, ainda mais perigosos, burocratas do pensamento, gritam de parlamentos e programas televisivos suas platitudes, e propõem remédios tão letais quanto as doenças, George Steiner, quase silencioso, observa a tudo com indisfarçável melancolia. Não com perplexidade porque, para quem viu a terra arder e tremer com o advento do nazismo e a vitória do comunismo, o espanto é vedado e a inocência foi para sempre perdida. Seus detratores acusam-no de ser um saudosista excêntrico, elitista vagamente demagogo.

Mas se há alguma verdade nessa depreciação, há muita verdade no depreciado. Ele tem, sim, suas razões. E lamentar por alguma coisa, quando já ninguém se importa com nada, é virtude das mais altas. Não bastasse ser professor, num tempo em que ensinar e aprender não interessa a ninguém, Steiner sempre foi, antes qualquer outra coisa, um mestre. Não um mestre como tantos outros, como quem ensinasse do alto de títulos e pedantismo; sobretudo – um mestre de leitura. O judeu erudito, que ama igualmente a música e o silêncio, prefere conduzir o leitor aos grandes, mais do que opor obstáculos críticos e construir barricadas hermenêuticas.

George Steiner é Virgílio para quem o lê. Com suavidade própria de quem não precisa – e nem saberia – gritar platitudes de parlamentos e programas televisivos, seus livros muito mais conversam do que propõem. Não existem, em sua fala, os resíduos da autoridade a que estamos acostumados. Como se apenas nos convidasse a esse exercício tão necessário quanto difícil, nesses tempos cheios de som e fúria, da conversação. É um dos poucos homens, um dos últimos homens, que insiste, que assume, que encarna o verdadeiro sentido de ser europeu. Não o sentido dos fanatismos nacionais inventados anteontem, nem o do multiculturalismo feito de má consciência, mas aquele do verdadeiro manancial de utopias e erros, de línguas e dialetos que traduzem alguma esperança comum. Peregrino, nostálgico do absoluto, indo e voltando com passo vagaroso entre Jerusalém e Atenas, depois de Babel e da morte da tragédia, George Steiner talvez seja o nosso último bípede.

No último dia 23 de abril completou 90 anos.

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